sábado, 26 de fevereiro de 2011

KANT 5 - A RESPOSTA À QUESTÃO O QUE É O HOMEM?

A resposta à questão «O que é o homem?»
Para Kant o campo da filosofia engloba quatro questões:
"l — Que posso eu saber?
2 — Que devo eu fazer?
3 — Que me é permitido esperar?
4 — Que é o homem?"
Segundo o filósofo alemão as três primeiras questões remetem para a última en­contrando nesta o seu fundamento.
A questão antropológica comanda as outras, está na sua génese ou origem. Por isso mesmo as três primeiras perguntas são "ramificações" ou diferentes modalidades de formu­lação de um só problema: "O que é o homem?" Perguntar pelo homem naquilo que o define essencialmente é inquirir sobre as suas possibilidades enquanto sujeito que visa conhecer sobre o seu dever como sujeito racional e sobre o que lhe é permitido esperar.
1. QUE POSSO SABER?
O conhecimento humano não pode ultrapassar o plano dos fenómenos: só conhecemos o que podemos intuir e só nos é possível intuir dados sensíveis.
As categorias do entendimento são funções sintéticas que apesar da sua origem não em­pírica só podem objectivar os dados que a sensibilidade recebeu, porque só os dados sensí­veis são objectos para um sujeito. Deste modo, a síntese causal que o entendimento efectua é imanente, não pode prolongar-se para fora do plano dos objectos espácio-temporais.
Assim as questões fundamentais da razão (Deus, liberdade e imortalidade) nunca terão resposta científica. Aquilo que verdadeiramente interessava conhecer é-nos inacessível.
A metafísica é uma vocação natural da razão humana. Esta não se satisfaz com o conhe­cimento dos objectos empíricos, procurando o acesso ao incondicionado, ao plano metafí­sico. Perguntando se o acesso cognitivo às realidades metafísicas é possível, Kant vai efec­tuar uma crítica, isto é, uma análise das condições de possibilidade a priori do conhecimento humano (Investigação Transcendental). Essa investigação irá conduzi-lo a uma doutrina dos limites da razão, isto é, à afirmação de que a razão fora da referência aos objectos empíricos não pode constituir conhecimentos. Como é a razão o juiz e o réu desta investigação podemos dar-lhe o nome de autocrítica da razão pura.
Se o conhecimento absoluto — metafísico — é impossível a vontade ou o desejo de um tal conhecimento não se pode extirpar ou anular. Queremos o absoluto, é esse o nosso des­tino como seres racionais. Não podendo tornar as realidades metafísicas cognoscíveis esta­mos "condenados" a uma procura indefinida do Absoluto, a uma "peregrinação" interminá­vel. Enquanto sujeito epistémico ou cognoscente o homem é uma tarefa sempre por cumprir: conhece cada vez mais adequadamente o que pode conhecer querendo conhecer o que não pode. As ideias da razão são a expressão dessa "falha", dessa "carência": ao repre­sentarem o Absoluto como algo que nunca está dado, impelem o entendimento para uma busca permanente que ficará sempre confinada ao horizonte espácio-temporal embora ele se comporte como se fosse possível atingir a Causa última, absoluta, incondicionada, de todas as coisas.
Assim, no plano teórico ou do conhecimento, o homem é um ser finito (limitado) insa­tisfeito com essa finitude. A perfeição — o conhecimento absoluto — é um ideal irrealizá­vel que o homem impõe a si mesmo para fazer avançar o conhecimento possível. A dou­trina kantiana do conhecimento revela que o homem é uma "inquietação insanável", uma essencial abertura ao Absoluto (ao Infinito) um ser destinado a aproximar-se sempre da per­feição sem nunca a poder atingir.
2.  O QUE DEVO FAZER? (COMO DEVO AGIR?)
Devo agir de uma forma puramente racional e desinteressada, i. e., por puro e simples respeito pela lei moral, que é uma lei da razão pura prática. É este o imperativo categórico do homem . Ao respeitar a lei moral — ao agir por dever — não respeito uma lei abstracta mas a pura racionalidade que está na sua origem: respeito a minha própria racionalidade, o meu "carácter inteligível", a minha autonomia. A lei moral exige que o homem não esteja ao serviço das suas inclinações sensíveis, considera imperativo categórico do homem não subordinar aquilo que o define como pessoa — a razão autónoma — a factores empíricos (paixões, egoísmos, interesses, afectos).
A lei moral exige ser absolutamente respeitada. A vontade que aja de uma forma pura­mente racional será a única vontade com valor moral. Contudo, não sendo o homem um ser puramente racional, o puro e simples respeito pelo carácter formal da lei moral é para o ho­mem um dever e um devir, ou seja, nunca um dado adquirido, mas sempre um esforço de aperfeiçoamento moral, cuja meta ideal é a santidade. Esse esforço tem o nome de virtude e é indefinido. Como a lei moral exige a pureza e a racionalidade do agir (a perfeição moral), e ela é para o homem inalcançável, o destino do homem deve ser uma caminhada sem fim em direcção à perfeição.
Tal como no plano do conhecimento vemos que no plano moral a perfeição é o "tê-los", a finalidade ideal que se procura. No plano moral a procura da perfeição — da pu­reza e da racionalidade absolutas da acção — é um dever, um imperativo categórico: o ho­mem deve transcender o sensível, tudo o que é empiricamente condicionado, para se tornar cada vez mais homem, i. e., ser dotado de um valor absoluto (pessoa). No plano do conheci­mento estavam em jogo realidades absolutas colocadas fora do homem, exteriores e que se tratava de atingir, enquanto que no plano moral o absoluto que, deve procurar realizar é o homem como ser plenamente autónomo e racional integrado numa comunidade de pessoas.
A moral kantiana exige do homem a insatisfação face ao excessivo papel da sensibi­lidade na sua vida moral. O esforço de aperfeiçoamento moral do homem consiste numa libertação sempre recomeçada em relação à sua condição animal (com particu­laridades muitas vezes mais brutais e bestiais do que noutras espécies), numa luta per­pétua contra a decadência e a desumanidade.
3.  O QUE ME É PERMITIDO ESPERAR?
O esforço de aperfeiçoamento moral — a tentativa de transcendência do sensível, a ten­tativa de suprimir as inclinações sensíveis enquanto princípios determinantes do agir — torna legítimo esperar uma recompensa. Cada homem tem direito a esperar a felicidade na medida em que dela se tornou digno. Essa esperança é inseparável da crença na existência de Deus, exigida por razões de ordem moral. Assim, segundo Kant, a religião será um "anexo da moral", será uma religião nos limites da simples razão.
A esperança do homem numa vida mais humana, num futuro em que o mundo corres­ponda às exigências da vontade racional, indica que a actividade do homem é finalizada ou teleologicamente orientada, i. e., visa determinados fins. Sendo a natureza e a história os campos concretos dessa actividade em que o homem aponta para si mesmo um aperfeiçoa­mento moral, elas não podem ser a negação de toda e qualquer ideia de finalidade. Na natu­reza, quer reflictamos sobre a beleza natural quer sobre a organização dos seres vivos, po­demos contemplar indícios de finalidade. Ora na medida em que pensamos legitimamente — sem pretensões à objectividade científica — a natureza como se fosse finalizada, como se agisse segundo fins (sendo o fim supremo o homem como ser moral) temos razão sufici­ente para esperar que as acções humanas visando o reino dos fins (o reino da moralidade e do respeito absoluto pela pessoa humana — fim em si mesmo) têm alguma hipótese de se realizar neste mundo. Este "reino dos fins", esta comunidade autenticamente humana, é um projecto, uma tarefa histórica, um longo e tortuoso percurso. Em termos juridico-políticos tem o nome de "paz perpétua" entre os Estados e os homens sob a administração de uma "sociedade das nações", baseada no direito internacional e não na força. Não sendo a reali­zação perfeita da moralidade, porque o antagonismo regrado entre os homens não desapa­rece, o "Estado cosmopolita" representa um progresso moral do homem. A história da hu­manidade, apesar de todo o seu registo de crueldade e vilanias, autoriza-nos uma esperança nas tendências morais da espécie humana. Torna-se legítimo esperar que as relações entre os diversos Estados possam um dia ser regidas pela razão moral.
4. O QUE É O HOMEM?
O homem é um ser dominado pelo desejo de absoluto.
No plano do conhecimento o absoluto para o qual o homem se encaminha é a causa úl­tima ou incondicionada de tudo; no plano moral o absoluto assume a figura da perfeição moral, do completo e total acordo entre a vontade do homem e a lei pura da sua razão; no plano político-histórico o absoluto é simbolizado pela "paz perpétua", forma de vida entre as nações conforme às exigências da razão e graças à qual se desenvolveriam todas as dis­posições ou potencialidades que fariam do homem um ser humano.
O que define o homem, ser racional finito, é o facto de estando ciente da sua fini-tude, a projectar em direcção ao infinito: dentro dos limites que constituem a sua con­dição finita o homem é constante ultrapassagem de si mesmo. É uma finitude sequiosa de absoluto, uma racionalidade em devir. Pode dizer-se que o homem é habitado por uma "nostalgia metafísica". Ele age como se os ideais longínquos e inacessíveis que coloca pe­rante si mesmo fossem realizáveis, agindo assim como se a finitude que o caracteriza não fosse um dado mas uma condição que deve ser constantemente testada. Assim, o homem é um ente que está permanentemente a inventar-se a si mesmo: a sempre renovada "aposta no ideal", seja em que plano for, é, para o homem, sinal de que não é uma realidade definida mas um processo infinito de realização. O cumprimento integral de si mesmo é sempre algo a fazer, uma tarefa inacabada, uma "finalidade sem fim".
O homem é aquele ser enigmático que, uma vez que nunca está realizado, constantemente pergunta a si mesmo "o que sou eu?".
Como se pôde ver ao longo da exposição sobre a filosofia kantiana, o discurso sobre o homem (a antropologia) insistiu na sua dimensão moral: o destino supremo do homem é cumprir-se como ser racional livre.
A lei moral é venerada porque é uma lei da liberdade cujo cumprimento eleva infinita­mente o valor do homem como pessoa. O homem está submetido a uma dupla legalidade: natural e moral, e falar de dois mundos (numénico e fenoménico) é falar de dois modos de ser do homem. Se o homem pertencesse unicamente ao mundo natural, em que cada acto está submetido à causalidade necessária e se define como efeito previsível de uma causa an­terior, a liberdade não faria sentido e o homem seria uma simples criatura animal. É a cons­ciência da presença da lei moral em mim que me permite pensar as minhas acções como li­vres, como resultado de uma decisão voluntária e não como um simples efeito de uma causa precedente. A lei moral eleva-me acima do determinismo natural, revelando que o homem tem um modo de ser independente da animalidade.
O respeito pela lei moral permite que eu me compreenda como membro de um reino dos fins, isto é, como pertencendo a uma comunidade de seres racionais que só se submetem às suas próprias leis. Se agir moralmente me revela como livre e membro de uma comunidade de seres racionais ou pessoas, então podem considerar-se todos os seres desprovidos de ra­zão como coisas, meios, isto é, como realidades que só possuem um valor relativo. Só a lei moral me faz compreender que não sou uma coisa, mas uma pessoa, que não me reduzo ao estatuto de ser natural ou fenoménico e daí a veneração que, segundo Kant, ela provoca. Em nome dela é legítima a revolta contra a tirania política e económica, contra tudo o que nega os direitos do homem.
Kant nunca põe em causa os direitos do conhecimento científico, mas nesse plano o homem só se conhece como objecto. Só a lei moral permite ao homem descobrir-se como ser livre e responsável, como senhor dos seus próprios actos e é essa determina­ção moral do homem que dá ao mundo um valor, um sentido.
Há um primado da acção sobre o conhecimento em Kant. O verdadeiro destino do ho­mem, que é a liberdade, cumpre-se não no plano teórico, mas sim no plano prático.
É porque o homem não pode deixar de pensar que é livre que o seu conhecimento se li­mita aos dados empíricos ou fenoménicos (conhecer a liberdade seria contraditório), que pensa a natureza como se ela agisse segundo fins e que a História, apesar das aparências, é orientada por uma finalidade de tipo moral.
A realização moral do homem é a finalidade essencial porque o que define o homem en­quanto tal é a liberdade que como já sabemos é inseparável da consciência da lei moral. A liberdade como ser do homem é uma tarefa, uma conquista e nunca um facto: é algo em cuja realização e triunfo devemos acreditar porque só assim poderemos passar de sub-ho-mens a homens autênticos. A filosofia moral kantiana caracteriza-se pela esperança na auto-realização do homem (da espécie humana). É uma "aposta no homem", uma con­fiança na sua capacidade de superar os muitos obstáculos que o impedem de ser au­tenticamente humano e de viver humanamente com os outros

Este humanismo kantiano encontrou eco, quase dois séculos depois (1980), numa entre­vista que o filósofo francês Jean-Paul Sartre concedeu, no final da vida, à revista Nouvel Observateur.
«Penso que a esperança faz parte do homem; a acção humana (...) visa sem­pre um objectivo futuro a partir do presente, onde a concebemos e onde a ten­tamos realizar; ela coloca o seu fim (a sua finalidade), a sua realização, no fu­turo, e, no modo como agimos, há a esperança, i. e., o facto de pôr uma finalidade como devendo ser realizada. (...) Cada homem, para lá dos fins teó­ricos ou práticos que tem a cada instante e que dizem respeito, por exemplo, a questões políticas e de educação, etc., para além disso, cada homem tem um fim, um fim que chamarei transcendente ou absoluto, e todas as outras finali­dades só têm sentido em relação a ele. (...)
Para mim, como sabes, não há essência a priori, logo o que o homem é não está ainda estabelecido. Não somos homens completos. Somos seres que pro­curamos chegar a relações humanas e a uma definição do homem. Estamos em plena luta neste momento e isso durará sem dúvida numerosos anos. Mas é preciso definir esta batalha: procuramos viver em conjunto, como homens: procuramos ser homens. (...) Por outras palavras, o nosso objectivo é chegar a um verdadeiro corpo constituído em que cada pessoa seria um homem e onde as colectividades seriam igualmente humanas.
O que penso é que, quando o homem existir verdadeira e totalmente, as suas relações com os seus semelhantes e o seu próprio modo de ser poderão consti­tuir o objecto daquilo a que poderemos chamar humanismo (...). Mas ainda não chegámos lá; nós somos, por assim dizer, sub-homens, isto é, seres que ainda não realizaram o seu objectivo, que talvez nunca o atinjam mas que ca­minham nessa direcção. (...) Se considerarmos que esses sub-homens têm em si princípios que são humanos, isto é, no fundo, certos germes que potenciam o homem e que, de certo modo, superam o próprio ser que é o sub-homem, en­tão pensar as relações entre os homens mediante princípios que hoje se im­põem pode receber o nome de humanismo. Há essencialmente a moral da rela­ção com o outro. (...) É precisamente o lado humano que se encontra no sub-homem — justamente os princípios que potenciam o homem — que inter­ditam que se use o homem como uma matéria ou um meio para obter um fim. E aí estamos precisamente no plano moral (da obrigação). (...) Não vivemos o homem senão como aquilo que de melhor há em nós, i. e., como o nosso es­forço para estarmos para além de nós mesmos (o esforço de transcendência ou ultrapassagem), no círculo dos homens. Homens que nós podemos assim prefigurar nos nossos melhores actos.»

4 comentários: