quarta-feira, 2 de março de 2011

SÍNTESE SOBRE O RACIONALISMO CRÍTICO KANTIANO


O racionalismo crítico de Kant
1.      Nem empirismo nem racionalismo tradicionais.
A teoria kantiana do conhecimento consiste numa ultrapassagem ou superação quer do empirismo, quer do racionalismo. Para Kant, o empirismo — que o filósofo alemão critica referindo-se essencialmente a David Hume — conduz ao cepticismo, à descrença na possi­bilidade do conhecimento científico ou objectivo. Pensar que o conhecimento se baseia ex­clusivamente — deriva — no que é dado pela experiência ou intuição sensível e não con­tém nada mais é ter uma concepção errada do conhecimento.
Embora baseado num modelo do conhecimento distinto do empirista, o racionalismo tradicional revela-se, também segundo Kant, insuficiente para fundamentar (mostrar como é possível) o conhecimento científico. A confiança excessiva do racionalismo tradicional nas capacidades da razão, a crença de que ela por si só, isto é, enquanto pura, pode conhecer, desprezando as­sim o contributo da sensibilidade, é criticada por Kant.
         2. Como é possível o conhecimento científico?
Kant efectua uma análise transcendental do conhecimento, ou seja, embora não des­preze o papel da experiência, pretende mostrar quais as condições de possibilidade a priori — não empíricas — do conhecimento. Mostrar como é possível o conhecimento — en­tenda-se o conhecimento científico ou epistémico — consistirá em responder à questão "O que posso conhecer?". Podemos desdobrar esta questão nas seguintes:
1.   Como começa o conhecimento?
2.   De onde deriva?
3.   Até onde pode ir? Quais os seus limites?
A doutrina kantiana pode resumir-se nas seguintes respostas:
A. Todo o conhecimento começa com a experiência.
Para haver conhecimento é preciso que haja coisas para conhecer e que entremos em contacto com elas, isto é, que algo nos seja dado. O contacto imediato com os objectos dá-se ao nível da sensibilidade, faculdade recep­tiva. A recepção das impressões tem como sua condição de possibilidade estruturas univer­sais e necessárias da sensibilidade: o espaço e o tempo. Assim, a recepção dos dados sensí­veis consiste na sua espacialização e temporalização.
Como começa o conhecimento
Espaço e tempo
  Objectos da intuição empírica
São formas de receber as informações ou impressões provenientes das coisas. Para as receberem tem de ser anteriores e independentes dessas impressões. São por isso a priori.
Sem estas formas a priori da sensibilidade não tínhamos intuição empírica ou experiência de nada. Só podemos dizer que algo acontece agora, depois de algo, aqui ou ali, à direita ou à esquerda se já estivermos «equipados» com as noções de espaço e de tempo. São a nossa única forma de intuir, de ter experiência das coisas.



São os dados que as formas do espaço e do tempo relacionam espacializando – os (acontecem num dado local) e temporalizando – os (acontecem num dado momento)
Os dados que a sensibilidade relaciona desta forma recebem o nome de fenómenos. Estes são os objectos da intuição sensível, isto é, condicionada pelas formas do espaço e do tempo.

B. O conhecimento científico não deriva da experiência, mas sim de certas formas a priori do sujeito que conhece.
Conhecer cientificamente é explicar, dizer por que razão algo acontece aqui e agora e não simplesmente que algo acontece aqui e agora. Ora, esta relação causal entre certos fe­nómenos só pode estabelecer-se se o sujeito estiver equipado com um conceito explicativo que é o conceito da causa. Este conceito é uma estrutura ou forma a priori do entendimento que ao "ser projectada" sobre dois fenómenos os relaciona transformando um em causa e o outro em efeito. Como o conceito de causa é uma forma do nosso entendimento e não algo que deriva das coisas e como sem ele não podemos estabelecer a relação causal ou necessá­ria que caracteriza o conhecimento científico devemos concluir que embora começando com a experiência a ciência deriva de formas a priori do sujeito. Sem o espaço e o tempo não podemos encontrar nada para conhe­cer, isto é, não podemos receber informações ou dados sensíveis. Sem as formas a priori do entendimento, sobretudo o conceito de causa, não podemos estabelecer entre os dados recebidos pela sensibilidade a relação causa - efeito que os permite explicar.
De que deriva o conhecimento
O conhecimento não deriva da sensibilidade

O conhecimento deriva do entendimento
A sensibilidade diz – nos que o fenómeno B(aquecimento de um objecto) aconteceu depois do fenómeno A( aumento de temperatura) num dado lugar mas só estabelece esta relação espacial e temporal entre as impressões sensíveis. Ora conhecer é explicar um fenómeno através de outro ou de outros.


O entendimento através dos seus conceitos a priori, em especial o de causa, explica um fenómeno através de outro ou de outros e assim permite constituir conhecimentos. Liga os fenómenos mediante relações de causa e efeito e por isso permite – nos saber que o fenómeno B se deve a acontecer A,  que não aconteceria sem este.
Só conhecemos os dados que a sensibilidade recebe mas não é a sensibilidade que os conhece.

C. O conhecimento científico, embora não derive da experiência, começa com ela e por isso só pode ser conhecimento de realidades empíricas ou sensíveis.
Se só por meio da sensibilidade o entendi­mento pode referir-se às coisas e encontrar a matéria do seu conhecimento devemos con­cluir que conhecer realidades que ultrapassem o plano espácio-temporal, que estão fora do alcance da nossa sensibilidade, é impossível. Essas realidades metafísicas (Deus, alma) não sendo objec­tos da nossa intuição não poderão ser também objectos de conhecimento científico.
A razão pura intervém no processo de conhecimento regulando o entendimento, dando--Ihe como regra agir como se fosse possível prolongar as ligações causais para lá da experiên­cia, isto é, em direcção à causa última que nos daria a chave do conhecimento de toda a realidade. A razão enquanto pura - desligada da experiência - só pode ter um uso legítimo ao apontar ao entendimento uma meta ideal da sua actividade cognitiva e deve humildemente aceitar essa limitação, porque caso contrário perder-se-á num oceano tempestuoso, contradizendo-se a si mesma e ficando à deriva.

O conhecimento tem limites
O entendimento só conhece os fenómenos                               
 A razão pura nada conhece mas não é inútil
O entendimento só pode conhecer explicando um fenómeno através de outro. Essa limitação tem a ver com dois factos: 1 - só a sensibilidade mediante as formas do espaço e do tempo espacializa e temporaliza as impressões sensíveis transformando – as em fenómenos e 2 – O entendimento não tem o poder de intuir – não entra em relação imediata com os objectos que vai conhecer – e depende por isso da sensibilidade para ter objectos que possa conhecer.
Assim todo o conhecimento humano é conhecimento de objectos que fazem parte do mundo natural ou sensível
Não há conhecimento puramente racional de nenhum objecto porque só a sensibilidade nos dá objectos para conhecer. A razão deixa ao entendimento a tarefa de conhecer o mundo mas pretende regular e orientar essa actividade do entendimento. Propõe ao entendimento um ideal que este deve tentar realizar: a explicação definitiva do conjunto dos fenómenos que constituem o universo. Tal ideal é irrealizável mas agir como se fosse possível realizá – lo leva o entendimento a procurar explicações cada vez mais amplas do mundo, ultrapassando fronteiras dentro do plano que nunca poderá legitimamente transpor: o plano dos objectos empíricos, os chamados fenómenos ou acontecimentos do mundo natural.





Conclusão
a)O conhecimento é possível?
Kant não duvida em momento algum da possibilidade do conhecimento. A sua questão é saber como ele é possível.
 b)A razão dá – nos conhecimentos da realidade independentemente da experiência?
Esclarecido o âmbito legítimo de aplicação do conhecimento, como ele começa e de onde deriva, podemos criticar a razão que pretende, no que respeita ao conhecimento, ser pura. O conhecimento exige o contributo da sensibilidade. Ao contrário de Descartes ,Kant não admite a possibilidade de um conhecimento puramente racional. A razão pura – desligada da experiência  - nada conhece porque nada encontra para conhecer. Só ligada à sensibilidade – e nesse caso tem o nome de entendimento - a razão pode conhecer objectos. Nenhuma faculdade pode conhecer seja o quer for sozinha, por si só. A teoria kantiana do conhecimento consiste numa ultrapassagem ou superação quer do empirismo, quer do racionalismo. Para Kant, o empirismo — que o filósofo alemão critica referindo-se essencialmente a David Hume — conduz ao cepticismo, à descrença na possi­bilidade do conhecimento científico ou objectivo. Pensar que o conhecimento se baseia ex­clusivamente no que é dado pela experiência ou intuição sensível e não con­tém nada mais é ter uma concepção errada do conhecimento. Na verdade, dizer que o conhecimento deriva da experiência impede-nos de dar conta, ou, melhor dizendo, de fun­damentar uma lei como a da queda dos corpos. Esta lei científica que, em geral, diz, "sem­pre que um corpo se encontra em queda livre, acelera 9 metros por segundo", não deriva da experiência. Esta é sempre particular; só nos diz o que acontece num dado momento e num certo lugar mas não o que acontece sempre. Ao apontar as insuficiências do empirismo, Kant não está a desvalorizar a experiência. Não se comporta como um racionalista tradicio­nal (metafísico). Para Kant, embora não derive da experiência ou intuição sensível, o co­nhecimento começa com a experiência.
Embora baseado num modelo do conhecimento distinto do empirista, o racionalismo tradicional revela-se, também segundo Kant, insuficiente para fundamentar (mostrar como é possível) o conhecimento científico. Para os racionalistas como Descartes, a razão é a única fonte de conhecimento verdadeiro. A razão pura, isto é, a razão desligada da sensibili­dade (da intuição empírica) é, para o racionalismo tradicional, a faculdade que, possuindo ideias inatas de toda a realidade, declara ser possível, através da pura e simples análise des­sas ideias, conhecer a realidade no seu todo. Esta confiança excessiva nas capacidades da razão, a crença de que ela por si só, isto é, enquanto pura, pode conhecer, desprezando as­sim o contributo da sensibilidade, é criticada por Kant.

3.Qual a extensão do nosso conhecimento? Até onde pode ir o nosso conhecimento? Podemos conhecer a realidade tal como é em si mesma?
Se só por meio da sensibilidade o entendi­mento pode referir-se às coisas e encontrar a matéria do seu conhecimento devemos con­cluir que conhecer realidades que ultrapassem o plano espácio-temporal, que estão fora do alcance da nossa sensibilidade, é impossível. Essas realidades metafísicas não sendo objec­tos da nossa intuição não poderão ser também objectos de conhecimento científico. O conhecimento científico, embora não derive da experiência começa com ela e por isso só pode ser conhecimento de realidades empíricas ou sensíveis (fenómenos).

c) Como é justificado o conhecimento?
Uma crença verdadeira será conhecimento e não uma mera opinião se aos nossos conceitos corresponder a intuição empírica adequada. Não se pode justificar a proposição «Deus existe» porque não lhe corresponde qualquer intuição empírica. Estamos equipados com estruturas que nos permitem conhecer – as formas do espaço e do tempo – dão objectos – e as formas do entendimento – conhecem objectos – desde que essa actividade não pretenda transcender o plano dos objectos naturais.
Se a propósito de Kant e Descartes se fala de fundamentação da ciência, te­mos de distinguir o tipo de fundamentação.
1 — Em Descartes temos uma fundamentação metafísica da ciência, isto é, uma fundação baseada em realidades metafísicas tais como Deus e alma (mas sobre­tudo Deus, que é o verdadeiro pilar do sistema científico que Descartes se propôs construir);
2 — Em Kant temos uma fundamentação transcendental e não transcendente do conhecimento científico, isto é, uma análise das condições a priori de possibili­dade do conhecimento científico que não remete para lá das faculdades humanas intervenientes na constituição da ciência (entendimento e sensibilidade e de algum modo a razão). A fundamentação da ciência esgota-se na análise das funções (sen­tido estrito) das faculdades que constituem o nosso poder de conhecer. Não há ne­cessidade de referência a uma garantia metafísica, no sentido tradicional do termo.
Descartes nunca julgou possível garantir, fazer repousar a certeza unicamente sobre o espírito humano. Daí a ambiguidade em falar do Cogito como primeiro princípio do sistema do saber e a necessidade imperiosa de, reconhecida a imperfeição deste, fundar o saber em Deus, ser perfeito e verídico. Com Kant essa ambiguidade desfaz-se...
 O fundamento e o valor da ciência encontram-se para Descartes fora do espírito humano (Deus), ao passo que em Kant se dá o contrário. Na questão «que posso saber?». Deus não desem­penha papel algum. A ciência humana não necessita de garantia divina. O problema Do conhecimento do mundo não é colocado para lá das forças do homem. Quer Deus exista ou não, a ciência em nada é afectada. Ela só depende do homem.

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