terça-feira, 26 de abril de 2011

A FILOSOFIA HEGELIANA DA HISTÓRIA


A FILOSOFIA HEGELIANA DA HISTÓRIA
1. O Sentido da História é a Realização da Liberdade.
Para Hegel o Absoluto (o Espírito, a Ideia, Deus) é o tema da Filosofia. Hegel não se limita a dizer que Deus é ou existe. Mostra como Deus ou o Absoluto toma consciência de que é absoluto ou realidade infinita. Ora uma realidade só prova que é infinita provando a si mesma que não é finita. Uma realidade para se definir concretamente exige a relação com a sua contrária, a identidade forma-se por meio das diferenças.
 Como é que o Absoluto prova a sua infinitude? Assumindo a forma do finito, de realidade histórica, espacio-temporalmente circunscrita. Por isso se o Absoluto, fosse concebido como realidade que transcende, que está absolutamente separada da história, do mundo, isto é, das realidades finitas, ele não tomaria consciência de si como Absoluto ou infinito, não se realizaria, não passaria de Absoluto em potência a Absoluto em acto.
A história, a manifestação do Absoluto no domínio do espaço e do tempo é a maneira de o Absoluto mostrar a si mesmo que é absoluto, isto é, a totalidade do real. Por outras palavras, a história revela progressivamente que nada existe fora do Absoluto, que este governa tudo, que não há limites ao seu poder.
A afirmação do Absoluto como realidade histórica é consequência da afirmação do Absoluto como realidade imanente, isto é, realidade que só existe efectivamente manifestando-se no domínio espácio-temporal. O Absoluto não é uma realidade que se realize como tal de forma imediata porque isso seria transformá-lo numa realidade que estaria dada de uma vez para sempre. Porque razão não pode ele ser uma realidade imediata (não mediata)? Porque razão não pode ele ser uma realidade fechada em si mesma? Porque só se realiza como Absoluto ou Infinito mediante o outro de si mesmo, mediante a assunção de formas finitas cuja realidade
consiste em serem constantemente ultrapassadas e nunca definitivas. Negada a absoluta transcendência do Absoluto, devemos dizer que o Absoluto faz-se e não simplesmente que é. O palco privilegiado desta realização é a História Universal. A vida do Absoluto desenvolve-se no seio da História. Quando dizemos que o Absoluto se realiza como absoluto devemos ter em atenção que o Absoluto é uma realidade espiritual. Ora, Para Hegel espírito e liberdade são realidades idênticas. Deste modo, a História deve ser perspectivada como um vasto movimento de realização ou actualização da liberdade. Assim, quanto mais a liberdade está presente no mundo humano ou histórico tanto mais o Absoluto se absolutiza. A vida do Absoluto é inseparável da experiência humana da liberdade. Caso não houvesse lugar para a liberdade no domínio humano, o Absoluto seria uma realidade abstracta sem vida.
Esta correlação significa que mediante a história o Absoluto se torna para si aquilo que é em si. Em si mesmo, o Absoluto é aquilo que é, mas não tem consciência efectiva de o ser.
 Como é que o Absoluto toma consciência de que é o fundamento que torna inteligível toda a realidade histórica? Tornando-se presente nessa realidade, ou seja, reconhecendo progressivamente que toda e qualquer figura histórica é um momento da sua vida, uma etapa na progressiva consciencialização de que toda a história é a sua história.
Não se esgotando em nenhum dos momentos históricos aos quais é imanente, o Absoluto vai adquirindo consciência de que é uma imanência total, ou seja, que todas as etapas históricas são as formas finitas mediante os quais o infinito se realiza, se actualiza, se conhece a si mesmo. Sendo o Absoluto a razão divina, deve-se dizer que a história é governada pela razão e que devemos ultrapassar uma visão superficial que a transformaria no lugar do caos e da arbitrariedade. A história tem um sentido, uma finalidade racional: a afirmação do Absoluto como realidade livre, ou seja, como realidade que transforma todo e qualquer obstáculo aparentemente exterior numa negação que o Absoluto constantemente nega ou ultrapassa. Podemos dizer que através da história se vai suprimindo progressivamente a distância entre o Absoluto e o mundo humano. Sabemos que o Absoluto deve ultrapassar a fixação em si mesmo e tornar-se imanente. Ora esta imanência não se realiza de forma imediata mas historicamente.
Assim o que significa tornar-se imanente? Significa que há um processo de realização do Absoluto mediante o qual este se revela a si próprio como incluindo os vários momentos históricos no seu seio. O mundo humano torna-se um conteúdo imanente ao Absoluto. Eis o segredo da História: para o Absoluto, torna-se imanente ao mundo é tornar o mundo imanente a si, ou seja, quando o Absoluto se manifesta na história ele transforma-a num conjunto de momentos, que são momentos da sua vida. É nisto que consiste o progresso na consciência da liberdade. Tornando a história um conteúdo que lhe é imanente, o Absoluto ultrapassa todo e qualquer limite exterior.
Reencontramos então uma das afirmações fundamentais da filosofia hegeliana: o Absoluto é a totalidade do real sob ~ forma de devir, ou seja, o Absoluto transforma-se, mediante a imensa odisseia histórica, na totalidade do real. Marcando a sua presença no mundo histórico o Absoluto faz deste a sua presença viva.
Qual a relação entre esta odisseia do Absoluto e a experiência histórica do Homem?
Sabemos já que a efectiva realização do Absoluto é inseparável da realização do Homem como ser livre, ser que não está dividido consigo mesmo. Hegel tinha clara consciência desta cisão. Há no homem uma vocação metafísica, uma aspiração ao Absoluto. Se o Absoluto for concebido como transcendente ao mundo ou à história, a aspiração do Homem é fonte de infelicidade e pode conduzir à alienação, isto é, à negação do mundo e à procura ilusória do além. A sede de Absoluto transforma-se em vivência infeliz a partir do momento em que o homem procura, fora do mundo, algo que está fora do seu alcance. Instala-se o conflito entre este mundo e o outro, entre o mundo terrestre e o reino dos céus (reino espiritual), entre o homem como ser corpóreo e o homem como ser espiritual. Para Hegel, este conflito ou ruptura do homem consigo próprio só pode ser ultrapassado ou resolvido se for vencido o fosso entre o Absoluto (Deus) e o mundo. Esta reconciliação entre Deus e o mundo leva ao reencontro do homem com o mundo, com Deus e com o outro homem. A partir do momento em que o Absoluto é visto como realidade que se realiza na história, a aspiração do homem ao Absoluto deixa de ser uma quimera porque a realização do Absoluto é inseparável da realização da liberdade do Homem. Em suma, a História é concebida de uma forma teleológica, ou seja, como tendo uma finalidade que é a progressiva revelação do Absoluto como sendo e sabendo ser toda a realidade. Por outro lado, a história é uma teodiceia porque
tudo o que nela acontece se justifica como tendo um sentido divino.
A História é um vasto processo, um movimento de progresso que apresenta, sob a aparência superficial do caos e da arbitrariedade dos acontecimentos, os diferentes graus de realização da liberdade, ou seja, de absolutização do Absoluto. Quanto mais a liberdade está presente no mundo humano tanto mais o Absoluto se reconhece como tal, tanto mais efectiva, clara e transparente é a sua consciência de si. Em linguagem religiosa, que Hegel várias vezes utiliza, pode-se dizer que Deus conhece-se no homem, que o "reino de Deus" é também constituído pelo homem.
A razão divina manifesta-se, realiza-se progressivamente, nas criações humanas. Quanto mais o homem é livre, ou seja, se reconhece a si como homem, tanto o mais o Absoluto se absolutiza, i. e, se desaliena, reconhece o mundo como presença de si ou espelho da sua glória. Liberdade do homem e realidade efectiva do Absoluto são termos correlativos.

2.Deus, o Absoluto, é o Espírito do Mundo.
O Absoluto, o Espírito divino enquanto se manifesta na História, assumindo diversas figuras que se suprimem progressivamente umas às outras no seu isolamento, tem o nome de Espírito universal ou Espírito do mundo (der Weltgeist.J A História é o processo mediante o qual o Espírito do mundo atinge cada vez mais explícita consciência de si como livre, i. e, cada vez mais impregna o mundo de espiritualidade.
As entidades que a filosofia da história põe em evidência são os povos: são eles os verdadeiros actores históricos e não os "grandes homens", aqueles a quem Hegel chama "indivíduos histórico-mundiais".
Não devemos, ao dizer que o povo, "o indivíduo que é um mundo", é o veículo do Absoluto, confundir povo e massa. Povo designa aqui uma totalidade orgânica, uma realidade espiritual que se exprime na religião, ciência, arte, costumes, símbolos, mitos. Tudo o que é próprio de um povo é resultado do seu espírito, por exemplo, a sua constituição política. Por isso, ao dizer que o Absoluto, o Espírito do mundo, encarna em determinados povos que o exprimem de uma forma específica devemos dizer que ele se concretiza no Espírito de um povo (VolksgeistJ, a que também se pode chamar Espírito Nacional. Os espíritos nacionais são momentos da actualização do espírito mundial ou universal.
Em cada época histórica um determinado povo exprime de forma mais adequada a realidade do Absoluto, isto é, realiza o mais alto grau de liberdade, possível no seu tempo, e quando dá, no centro do palco histórico, o seu lugar a outro isso não é o resultado de uma decisão moral, de um juízo moral, mas expressão de que tudo tem o seu tempo e que esse povo, atingido o seu zénite, deixou de ser expressão vital do Absoluto.
"Cada povo não pode jazer época (ocupar o "centro" da História) senão uma só vez. A respeito do seu direito absoluto, que consiste em ser o representante do grau mais elevado do Espírito do mundo, os espíritos dos outros povos não têm direito e, tal como aqueles cuja época passou, já não contam na História"(Hegel, Filosofia do Direito, § 347).
A morte de um povo, o seu desaparecimento nos bastidores do palco histórico, é transição para a vida de outro povo. Cada povo, por necessidade intrínseca à própria História, é o protagonista de uma determinada fase ou forma de civilização.
"Graças a esta generalização da noção bíblica de "povo eleito': a História aparece como um vasto movimento de progresso orientado de Oriente para Ocidente e apresentando os diferentes graus de realização da liberdade. Como diz Hegel: «O Oriente sabia e sabe somente que um só é livre, o mundo grego e romano que alguns são livres, o mundo germânico que todos são livres».

3. A Astúcia da Razão Divina
O Espírito do Mundo (O Absoluto enquanto realidade imanente e não transcendente) encarna sucessivamente nos povos cujo espírito mais alto grau de liberdade vai realizando. O Espírito de um povo, por seu lado, encarna em certos indivíduos que desempenham um papel historicamente assinalável. É o caso de Júlio César, Alexandre Magno, Napoleão. Estes indivíduos julgam ser os autores do papel de relevo que desempenham na História. Contudo não passam de actores cujo papel foi determinado pelo Absoluto. Cumprem esse papel quer se apercebam disso ou não.
O Espírito universal que emerge da dialéctica dos espíritos nacionais opera através de indivíduos humanos. Qual o sentido desta afirmação? O de que o Absoluto usou, utilizou certos indivíduos de uma forma historicamente assinalável. Estes, procurando de facto concretizar os seus interesses, os seus fins particulares, realizam uma finalidade universal (cumprem o destino do Absoluto) sem disso terem consciência. Encarnam inconscientemente, sem conceito filosófico, uma finalidade que lhes é superior. Acerca deste tema, da instrumentalização do particular pelo universal (Absoluto). Hegel fala de "astúcia da Razão". o objectivo da manifestação histórica do Absoluto é universal: a realização universal da liberdade. Os indivíduos históricos procuram realizar as suas ambições, os seus interesses pessoais ou particulares. São, em suma, dominados pelas suas paixões. Ora, as paixões, as ambições das grandes figuras históricas são usadas como instrumento pelo Espírito, pela Razão, e ilustram, exibem a astúcia da Razão. Fossem quais fossem os motivos particulares que levaram Júlio César a praticar determinados actos, eles tiveram uma' importância que transcendeu a sua compreensão e a sua intenção. A Razão, na sua astúcia, usou as paixões e ambições desse grande homem para transformar a República no Império elevando o espírito
romano ao cume do seu desenvolvimento. Sem o saber contribuiu para que se desse uma extensão do conceito de liberdade, ao dar a cidadania romana a todos os súbditos do império. Os seus actos acabaram por gerar algo que não estava, conscientemente, nos seus planos.
Os indivíduos realizam inconscientemente, perseguindo interesses subjectivos, aquilo que é objectivamente necessário. Tais são os grandes homens: realizam por "instinto" aquilo que o seu tempo reclama.
Dominados pelas suas paixões e ambições e não pela razão, os indivíduos não tem consciência clara de que são um instrumento de actualização ou de realização da Razão divina. Não sabem que da sua acção resulta algo diferente daquilo que eles projectaram, julgam que só se realizam os seus interesse e não se apercebem de que realizam um objectivo universal, algo que estava para além dos seus objectivos e das suas consciências. Mediante as paixões a racionalidade da História cumpre-se.
As grandes personagens históricas viveram para realizar a sua paixão e «dessa acção resulta algo diferente daquilo que eles projectam e atingem, daquilo que eles sabem e querem imediatamente; realizam os seus interesses, mas com isso produz-se algo que se escondia no interior e do qual as suas consciências não se apercebiam e não estava nos seus objectivos» (Hegel, A Razão na História).
A astúcia da Razão governa o mundo e a desrazão é o instrumento da sua actualização e desenvolvimento. Os homens são «os instrumentos e os meios de algo mais elevado, mais vasto, que eles ignoram e realizam de modo inconsciente».
Compreende-se assim que Hegel negue, rejeite o moralismo piegas que considera as paixões e os interesses como obstáculos ao bem e à moralidade. Para Hegel, a História, lugar de revelação do Absoluto, está para além do bem e do mal.
Há em Hegel um elogio da paixão («Nada de grande se faz no mundo sem paixão») não por ela em si mesma mas pelo que, inconscientemente, a suscita. As objecções de que as ambições, os interesses particulares, as paixões, em suma, são fontes de conflitos, ou seja, são prejudiciais, só são válidas ao nível da existência particular ou privada. Perdem sentido num plano mais amplo, como é o da história universal.

1 comentário:

  1. "Os germânicos sabem que todos os homens são livres". Nossa, até parece que outro povo não poderia ter chegado a mesma conclusão. Talvez até tivesse chegado, mas sem receber devida atenção e crédito. Que bom que os europeus de hoje em dia não chegam mais a tal presunção, que nem aquele sacana do Fichte.

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