quinta-feira, 14 de julho de 2011

Kierkegaard e o caso Abraão


Kierkegaard e o caso Abraão
Abraão é a figura bíblica que para Kierkegaard simboliza o que é ser verdadeiramente indivíduo ou autenticamente cristão. Ele é o exemplo paradigmático do homem religioso. O «caso Abraão» permite-nos compreender, segundo Kierkegaard, que a interioridade nem sempre se pode traduzir em termos exteriores, que ela é, em muitos casos, vocação profunda que nos deixa absolutamente sós com nós próprios e com Aquele em que acreditamos. Dado o seu carácter excepcional, Abraão não é o paradigma do homem ético: para ele o Absoluto não é o universal, mas sim o Deus singular e pessoal com o qual dialoga.
Pela sua fé, Abraão sente-se obrigado a obedecer a Deus. Este ordena-lhe que sacrifique o seu filho Isaac. Se colocasse a lei moral acima de Deus, Abraão não acreditaria que tal ordem pudesse emanar de Deus. Contudo, como herói da fé, coloca a obediência a Deus acima de tudo. Ultrapassando o plano da moral pura e simplesmente humana, Abraão encontra-se a sós com a sua consciência, perante Deus. Para a sua decisão não há outra justificação senão a obediência a Deus.
No plano puramente moral, a sua conduta é absolutamente incompreensível e injustificável: aos olhos dos homens, Abraão seria um assassino. Perante Deus, na relação absoluta, puramente individual e interior com o Absoluto, Abraão é um crente. Existe assim uma «suspensão teológica» da ética porque se dá, na fé, uma relação absoluta (não mediada pela lei moral) entre o indivíduo e Deus. Este é a «excepção absoluta» que justifica essa excepção que é a fé, ou seja, o sentir-se acima de tudo um indivíduo obrigado a obedecer a Deus.
Nesta relação pessoal, interior e privada com Deus, o indivíduo, que estava habitualmente submetido ao geral, é-lhe agora superior, reivindica a sua individualidade, deixa de ser um indivíduo entre outros para se tornar único, porque é único para Deus. É pela fé que' o homem se realiza como indivíduo.
 O sacrifício que Deus lhe exige deixa Abraão irremediavelmente só com a sua vontade de crente. Não há lei moral que lhe possa valer, porque aquele que acredita verdadeiramente em Deus sabe que as suas ordens são absolutas e não podem ser medidas pelos padrões da razão humana.
A experiência de Abraão, o Cavaleiro da Fé, é um drama que o indivíduo (Abraão) vive no mais profundo da sua alma, escapando à percepção dos outros. Dá-se, assim, na experiência da fé, na vivência religiosa, a revelação da «interioridade escondida», a revelação da absoluta singularidade do indivíduo. O homem da fé está irremediavelmente só perante Deus e, assim, realiza, crendo até aos limites do absurdo, a sua individualidade e espiritual idade.
A fé comporta um factor de risco que revela a grandeza, a finitude e a dependência daquele que crê. O homem de fé entrega-se nas mãos de Deus, compreende de uma forma aguda que não é o autor de si mesmo. Pela grandeza daquilo em que se crê se mede a grandeza do homem. Aquele que crê em Deus é o maior de todos.
Nota-se aqui uma profunda diferença entre Kant e Kierkegaard. O homem ético, segundo Kant, aproximava-se de Deus na medida em que obedecia à lei moral. Esta era um absoluto. No fundo, não havia outro dever, segundo Kant, a não ser o de obedecer à lei moral. Perante esta autonomia e absolutização da lei moral, Kierkegaard reivindica o dever absoluto de obedecer a Deus. Não quer negar o valor da lei moral, mas simplesmente subordiná-la ao dever absoluto do homem de obedecer a Deus. Perante este dever absoluto para com o Absoluto a lei moral toma-se algo relativo.
«O paradoxo da fé consiste precisamente em que o indivíduo é superior ao geral, de modo que o indivíduo determina a sua relação com o geral pela sua referência ao Absoluto e não a sua referência ao Absoluto pela sua relação com o geral.»
A moral, ao contrário do que sucedia em Kant, subordina-se à religião, à fé não racional. O que Kierkegaard rejeita é uma moral autónoma ou imanente à maneira de Kant. A moral surge da relação essencial do homem com Deus. Não se trata, contrariamente ao que parece, de aboli-la mas de 'suspendê-la' como auto-suficiente e encerrada em si mesma. Ela é abertura a Deus como seu autêntico fundamento. Só Deus é o autêntico absoluto e obedecer-lhe é realizar o autêntico dever moral
Muitos teólogos e moralistas constituíram a figura bíblica de Abraão como modelo de fé, dada a sua fidelidade incondicional a Deus. Contudo, numerosas objecções quanto à moralidade ou exemplaridade do «caso Abraão» fizeram-se ouvir. Uma delas, publicada por Patrice Larroque, um ateu, em 1860, na obra Examen critique des doctrines de la religion chrétienne, dá o tom geral dessas críticas:
«Deus ordena a Abraão que vá imolar o seu jovem filho Isaac numa montanha. Imediatamente, Abraão dirige-se para o local indicado com a vítima. Vai executar a terrível ordem quando um anjo enviado por Deus o faz parar. Então, em vez de Isaac, seu adorado filho, Abraão sacrifica um cordeiro. Abraão é louvado e abençoado por ter obedecido imediata e cegamente. Esta história que nos dizem muito edificante é-o excessivamente pouco. Podemos perguntar o que é mais imoral, se a ordem que Abraão recebe ou a rapidez ou prontidão com que este se dispõe a executá-la. O facto de um pai matar o seu filho, e um filho inocente, seria um crime de primeiro grau. Esse facto não mudaria de natureza quer fosse executado numa montanha ou numa planície, quer fosse ordenado por Deus ou por um homem; com efeito, as acções são boas ou más pela natureza das próprias coisas e não pela vontade divina.
Diz-se que Deus queria somente pôr à prova a obediência de Abraão: Deus tinha a intenção de impedir a consumação do sacrifício que ordenava, como o acontecimento o prova. Tal justificação dá nisto: 'Deus fingia querer o sacrifício que ordenava e que se propunha impedir'. Para além de dissimular e de se divertir a brincar com um homem crente como Abraão, Deus comportar-se-ia como um daqueles tiranos
que exigem dos seus escravos que estejam sempre prontos, ao menor sinal, a fazer tanto o bem como o mal, dando assim prova de uma submissão absoluta e de uma obediência cega.»

A estas objecções a teologia racional procurou de imediato contrapor-se. Ei-las já claramente expostas e antecipadas em 1789 pelo abade Bergier:
«Isaac tinha 25 anos quando Deus, para pôr à prova Abraão, lhe ordenou que imolasse o seu filho. À primeira vista esta ordem parece indigna de Deus, mas o soberano senhor da vida e da morte pode encurtar ou prolongar os nossos dias como bem quiser. Se, por acidente ou por doença, tivesse terminado com os dias de Isaac, Abraão teria tido o direito de murmurar? Na verdade, um sacrifício de sangue humano teria sido um muito mau exemplo. Assim, Deus não permitiu que ele se consumasse.
Contentou-se com o facto de Abraão se ter disposto a obedecer sem reticências e redobrou as benesses com que já cumulara o Patriarca. Dir-se-á (objectar-se-á) que Deus, conhecendo o fundo dos corações e que, dada a sua omnisciência, prevê os nossos sentimentos futuros com tanta certeza como as nossas disposições presentes, não teria necessidade de submeter Abraão a uma tal prova. Isso é verdade; mas Abraão tinha de ser submetido a uma tal prova e o género humano tinha necessidade deste exemplo, para se aperceber de que Deus tem o direito de exigir de nós, quando lhe aprouver, sacrifícios heróicos, porque é suficientemente poderoso para os recompensar.
É, portanto, com razão que as Escrituras Sagradas elogiaram a fé e a coragem de Abraão, propondo-o como modelo; ele acreditou que Deus, que tem o poder de ressuscitar os mortos, faria antes um milagre em vez de faltar às suas promessas.»
[Abbée Bergier, Dictionnaire de théologie.]
Supondo que Kierkegaard conhecia estas objecções e estas defesas do «modelo Abraão», podemos, pelo que já sabemos, imaginar a sua reacção. Quanto ao autor ateu das objecções, Kierkegaard responderia que quem não crê em Deus não existe verdadeiramente e que existir autenticamente é crer apaixonadamente, de forma absoluta ou incondicional.
Aos teólogos racionalistas responderia que não sabem o que é ter fé em Deus. O seu veredicto seria radical: se Abraão tivesse calculado, raciocinado - como eles pensam que raciocinou -, em vez de obedecer absoluta e incondicionalmente, não seria o «Cavaleiro da fé», o símbolo da autêntica vivência religiosa. Abraão é o verdadeiro crente, acredita contra toda e qualquer razão, porque acreditar em Deus é acreditar no Desconhecido, no Incompreensível. Abraão deu prova de uma fé profunda porque não se apoiou em nenhum argumento, em nenhum cálculo.
Duvidou profundamente do sentido dessa ordem mas obedeceu, entregou-se, abandonou-se à incompreensível vontade de Deus porque isso é que define o autêntico crente: o paradoxo de navegar com confiança e ao mesmo tempo cheio de dúvidas no mar infinito da incerteza. o que deve reter o cristão do «Caso Abraão»? Que a fé é a relação com o infinitamente incompreensível e que a própria resolução de Abraão é tão impenetrável e incompreensível como a existência e a vontade de Deus. Crer não tem nada a ver com comentar «profissionalmente» a Bíblia porque, além de fé artificial ou rotineira, isso é fazer da palavra de Deus um negócio.
Para Kierkegaard a fé conduz o homem para lá da razão e de qualquer possibilidade de compreensão. A fé começa precisamente onde a razão acaba. Para crer autenticamente há que ultrapassar o plano da racionalidade e «dar razão» ao absurdo. Neste sentido, Kierkegaard adopta o que Tertuliano afirmara: «Credo quia absurdum», A fé apresenta-se como um paradoxo e um escândalo não assimiláveis pela razão, mas permite ao indivíduo religioso afirmar Deus e afirmar-se apaixonadamente a si mesmo.
A fé, como entrega apaixonada a Deus, ultrapassa os limites da razão. Abraão não raciocina:
«Não faz sentido, é absurdo, que Aquele que disse aos homens 'Não matarás' me mande matar e, escândalo dos escândalos, o meu filho, dádiva desse mesmo Deus.»
Crer em virtude do absurdo é um risco, entregar-se totalmente a Deus é um acto de coragem, já que os desígnios de Deus são insondáveis e o homem depende completamente da graça divina.
Mas acreditar é também ter confiança. Por isso a fé vence o desespero. Contudo, esta fé vitoriosa é simplesmente uma certeza interior ou subjectiva que está perfeitamente aliada à incerteza objectiva: não há garantias objectivas de que a fé nos salve. Simplesmente «tomamos isso por verdadeiro» e vivemos intensamente essa verdade subjectiva e imediata, não racional porque indemonstrável.
Kierkegaard acentua e exalta a grandeza e o risco em que a fé consiste. O 'Cavaleiro da fé' não conhece o repouso, a sua fidelidade é constantemente submetida a provas. O 'Cavaleiro da fé' é o indivíduo e unicamente o indivíduo que, sozinho na imensidade do universo, jamais ouve uma voz humana, caminhando sozinho com a sua enorme responsabilidade. Não tem outro apoio senão ele mesmo, sofre
por não poder fazer-se compreender, mas não sente nenhuma necessidade de chegar aos outros. É uma testemunha e não um mestre. A sua solidão não significa, contudo, que seja um eremita, um ser isolado do mundo. Enquanto crente vive incógnito (a fé é uma vivência interior, incomunicável), mas quanto ao seu aspecto exterior é um homem comum, como muitos outros.

2 comentários:

  1. Olá, Uma colaboração: a expressão correta é "Suspensão teleológica da moral" e não "suspensão teológica da moral". E isso porque Kierkegaard não aceita a moral como o telos, como o ponto máximo do pensamento.

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  2. Olá, Uma colaboração: a expressão correta é "Suspensão teleológica da moral" e não "suspensão teológica da moral". E isso porque Kierkegaard não aceita a moral como o telos, como o ponto máximo do pensamento.

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