sexta-feira, 16 de novembro de 2012

DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA KANTIANA

DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA KANTIANA
DIÁLOGO 1
O que significa fundamentação da moral
JÚLIO – Olá.
ANA  - Tudo bem?
JÚLIO – Comigo está mas o meu pai está insuportável. Emprestou cinco mil euros a um amigo e agora o tipo não dá notícia há meses. Não se consegue encontrá – lo. Se calhar emigrou. Cinco mil euros ...
ANA – Que aborrecimento. O teu pai tem razão em estar aborrecido. Olha na semana passada o meu professor falou de um caso semelhante para nos esclarecer sobre o que no manual se chama fundamentação da moral.
JÚLIO – Fun..... quê?
ANA – Fundamentação da moral.
JÚLIO – Ah! Estudei isso o ano passado. Trata – se de saber qual é o critério que permite distinguir o certo do errado quando falamos de acções morais.
ANA – Essa palavra critério....
JÚLIO – É fácil. O critério é a base em que nos apoiamos para dizer que uma acção é boa ou não. Tal como os edifícios têm alicerces, as nossas avaliações têm de se basear em alguma coisa. Essa base é o critério.
ANA – Imaginemos então que uma pessoa mente como foi o caso, ao que parece, da pessoa a quem o teu pai emprestou dinheiro. Como se aplica aqui isso a que chamas critério?
JÚLIO – Conheces aqueles provérbios populares como « A árvore conhece – se pelos frutos» e « As boas intenções fazem as boas acções(tornam boas as acções)»? Claro que conheces. Se olhares bem, temos aqui dois critérios. Um critério é a intenção com que alguém age e o outro critério é o que resulta do que fazemos – as consequências da acção.
ANA – Então se eu aplicar o critério da intenção, se basear a avaliação do que o amigo do teu pai fez na intenção com que agiu, direi que agiu erradamente porque agiu com a intenção de prejudicar alguém. Mentiu para conseguir o empréstimo.
JÚLIO – Se baseares a avaliação dessa acção nas suas consequências dirás que as consequências foram más para o teu pai e boas para o seu suposto amigo.
ANA – Espera aí! Então em que ficamos? Parece que estás a dizer que a acção é boa e má ao mesmo tempo?
JÚLIO – Não é bem isso. Contudo para esclareceres o assunto terás de estudar duas teorias que eu estudei o ano passado: a teoria deontológica de Kant e a teoria utilitarista de Mill.
ANA – Já estou a ficar assustada com esses palavrões.
JÚLIO – Noutras disciplinas encontrei «palavrões» bem piores. Não é nada do outro mundo.

DIÁLOGO 2
A distinção entre acções conformes ao dever e feitas por dever.
ANA – Olá Júlio! Já se resolveu aquele problema dos cinco mil euros?
JÚLIO – Não. Voaram e não sabemos onde foram parar. Deixemos isso. Como vai a filosofia?
ANA – Começámos a dar a ética de Kant. E já estou a ter dificuldades. Não percebo aquela distinção entre acções conformes ao dever e acções por dever ou que cumprem o dever por dever. Não é suficiente cumprir o dever? Se não roubo, não minto e não mato, não é isso suficiente para agir moralmente bem? É preciso mais alguma coisa? Não há tanta gente neste mundo que age contrariamente ao dever? Não deveríamos contentar – nos com o fato de que há pessoas que fazem o que devem fazer seja qual for o motivo? Se pago os impostos que devo pagar, que importa saber se é por receio de ter problemas com o fisco?
JÚLIO – Calma. Não creio que estejas a leste do assunto. Estás já a criticar Kant. De certeza que percebeste a distinção de que falaste. O que não percebeste é por que razão Kant a apresenta.
ANA – Então eu digo – te o que percebi. As acções conformes ao dever são acções que cumprem o dever por interesse, ou como o nosso professor disse, com «segundas intenções».
JÚLIO – Certo. Se não roubas um objecto que muito desejas por receio das eventuais consequências – ser descoberto e castigado – é evidente que cumpres o dever (não roubas) , respeitas uma norma que proíbe roubar. Contudo, só cumpres o dever por medo das consequências, por interesse em evitar problemas. O motivo, a razão de ser da tua acção não é o cumprimento do dever. Para Kant, a tua acção não tem neste caso valor moral porque o cumprimento do dever depende de algo. Ora, para ele, tens de respeitar essa norma  - « Não roubes» - por si mesma.
ANA – Quer dizer que a acção somente tem valor moral se o respeito pelo dever – pelo que é correcto fazer – for absoluto. A pessoa que age em conformidade com o dever é a que precisa de uma razão suplementar para cumprir o dever. Parece incapaz de fazer uma coisa unicamente porque essa é a coisa correcta a fazer. Cumpre o dever pensando também no que pode ganhar com isso – consciência tranquila, evitar censuras, ter boa reputação, não arranjar problemas, etc.
JÚLIO – Quem age por dever cumpre o dever por dever e não por interesse. Diz a si mesma «É meu dever fazer isto e ponto final.». Não precisa de sobremesa para comer o prato principal.
ANA – Que rica comparação…
JÚLIO – Pois. A vontade que decide agir por dever é a vontade para a qual agir correctamente é o único motivo na base da sua decisão. Imagina que a tua turma organiza uma viagem de finalistas e que confiam de tal maneira em ti que não vão investigar quanto se ganhou em rifas e outras actividades para financiar a campanha. Qual é o teu dever? Não retirar nada para ti. Ao fazer isto fazes o que é correcto.
ANA – Mas mais importante do que isso é por que razão decidi fazer o que é correcto. Se guardei bem o dinheiro dos colegas com receio de posteriormente ser descoberta ou para ser elogiada pela minha honestidade agi em conformidade com o dever. Se guardei o dinheiro simplesmente porque essa era a ação correcta agi por dever, ou seja, só houve um motivo a influenciar a minha acção: fazer o que devia ser feito. A moralidade da sua acção depende do motivo ou da razão pela qual agiu honestamente.
JÚLIO – Exacto. Estás a ver como afinal percebeste!
ANA – Espera um pouco. Há uma coisa que ainda me faz confusão. Por que razão Kant insiste tanto nesta distinção tão rigorosa?
JÚLIO – Em primeiro lugar, Kant quer deixar claro que mais importante do que cumprir o dever é a forma ou a maneira – o motivo e a intenção – como cumprimos o dever. Em segundo lugar, Kant quer mostrar que se não houver obrigações absolutas, se o cumprimento do dever depender dos nossos bons sentimentos, dos nossos interesses, ou mesmo do nosso carácter, a moralidade das acções ficará ao sabor das circunstâncias. Se não tivermos bons sentimentos ou mesmo compaixão pelos outros, cumpriremos o dever? Se não for do nosso interesse cumpriremos o dever?

DIÁLOGO 4
A lei moral e o dever
ANA – Júlio, que relação há entre a lei moral e o cumprimento do dever como deve ser?
JÚLIO – A relação é simples e creio que estás somente a querer confirmar o que já sabes.
ANA – Pode ser que sim.
JÚLIO – Segundo Kant, a lei moral é uma regra geral, um princípio que está na consciência de todo qualquer ser racional. Com efeito, ela é a lei imanente à consciência moral do sujeito que age. Caso eu não cumpra a lei moral, i. e., se, em determi­nada situação, a minha acção não se inspirar única e simplesmente no respeito pela lei mo­ral mas se deixar influenciar por interesses e inclinações, não serei por isso levado a tribu­nal. Assim, por exemplo, posso pagar impostos para evitar problemas. Por não ter valor moral (a acção é realizada não por ser considerada boa em si mesma mas como meio para evitar aborrecimentos) essa acção não deixa de ter valor legal. Falando em termos exclusi­vamente morais, i. e., tendo em consideração simplesmente a intenção e não o resultado, a forma como se agiu e não o que se fez, eu sou o juiz e o réu.
ANA – Não compliques.
JÚLIO – Hum… Olha a lei moral diz – nos como devemos cumprir o dever. Exige que a vontade domine as inclinações sensíveis - desejos, interesses e sentimentos – e cumpra o dever de forma pura. Ouvir a voz da lei moral é ficar a saber como cumprir de forma moralmente correcta o dever. Essa lei diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer circunstância cumprir o dever pelo dever».
ANA – Certo mas diz – me que relação há entre a lei moral e as regras mais concretas que nos ensinaram que era errado não respeitar tais como não roubar, não matar inocentes e não mentir. Que diferença há entre estas normas e a dita lei moral?
JÚLIO – Fizeste bem em falar de normas morais como «Não deves mentir»; «Não deves matar»; «Não deves roubar». A lei moral, segundo Kant, diz-nos como cumprir esses deveres, qual a forma correcta de os cumprir. Assim sendo, é uma lei puramente racional e puramente formal. Não é uma regra concreta como «Não matarás!» mas um princípio geral que deve ser seguido quando cumpro essas regras concretas que proíbem o roubo, o assassinato, a mentira, etc.
ANA – Deixa ver se fui boa aluna…. Eh,eh. Quem apresenta esta obrigação absoluta  «Age por dever!» à minha vontade? A razão.
Que nome dá Kant ao princípio ético fundamental que exige que eu cumpra o dever sempre por dever, sem qualquer outra intenção ou motivo? Kant dá -lhe o nome de lei moral.
As acções feitas por dever são assim acções que cumprem o que a lei moral exige.
JÚLIO – Eu bem sabia que só querias umas luzes sobre o assunto.
Temos na nossa sociedade um conjunto de normas morais que nos dizem aquilo que devemos fazer, tais como “Não mentir”, “Não roubar”, “Não matar”, “Não agredir física e psicologicamente o outro”..., normas essas que a maioria das pessoas da sociedade cumpre. Mas por que é que as cumprem? Ou melhor, de que modo as cumprem? Ora, normalmente cumprem-nas (cumprem o dever), não pela obediência a elas mesmas, mas por interesse (o que para Kant não serve).
Para Kant, a sociedade apenas me diz o que devo fazer, mas não como o devo fazer, com que intenção devo cumprir o dever. Isso é a minha consciência que me diz através da lei moral.




DIÁLOGO 4
Obrigações absolutas e não – absolutas.
ANA – Falámos da lei moral que ordena que cumpramos o dever por dever e logo de seguida aparece um outro termo chamado imperativo categórico. Que relação há entre o imperativo categórico e a lei moral? A lei moral é um imperativo categórico?
JÚLIO – Em vez de dizeres que a lei moral é um imperativo categórico é mais correcto dizeres que a lei moral tem a forma de um imperativo categórico. É que há muitos imperativos categóricos concretos ou particulares («É proibido fumar», «Não roubes!», «Não mintas!», etc.) e a lei moral é um mandamento especial.
ANA – OK. Mas o que significa dizer que a lei moral tem a forma de um imperativo categórico.
JÚLIO – Significa que tem a forma de uma obrigação absoluta. Obrigação categórica e absoluta são termos equivalentes. A lei moral é uma lei que nos diz qual a forma correcta de cumprir o dever. Mas não nos diz nada de concreto, ou seja, não diz «Não roubes», «Não mintas» e «Não mates inocentes indefesos». Diz – nos a forma correcta de cumprir esses deveres. A forma correcta é: respeitar absolutamente esses deveres. Matar, roubar e mentir são proibições absolutas e devemos evitar a sua infracção não porque tenhamos medo das consequências, não porque tenhamos medo de Deus e dos seus castigos eternos mas simplesmente porque é o nosso dever, a coisa correcta a fazer. A lei moral diz – nos que é nossa obrigação absoluta fazer o que é correcto e ponto.
ANA – Por isso é que tem a forma de um imperativo categórico. Ordena que se cumpra o dever incondicionalmente. Ordena que se cumpra o dever absolutamente. Se não minto devo fazê – lo em toda e qualquer circunstância, sempre. A lei moral como imperativo categórico ordena  que independentemente das consequências mas não de forma irresponsável se faça o que é correcto.
JÚLIO – É isso.
ANA – Kant insiste muito em que cumprir o dever é uma obrigação absoluta.
JÚLIO -    Falar em moral consiste em falar em certas obrigações que temos para connosco e para com os outros. Mas existem dois tipos de obrigações. As obrigações que adquirimos apenas em certos casos, em função dos nossos desejos ou projectos, e as obrigações que teremos sempre, sejam quais forem os nossos desejos, sejam quais forem os nossos projectos.
ANA – Dá - me um exemplo
   JÚLIO -   Só tenho a obrigação de estudar medicina na condição de quer ser médico. Caso mude de ideias e abandone o projecto de vir a ser médico, também a obrigação de estudar medicina desaparece. Apenas adquiro a obrigação de saber o código da estrada se quiser tirar a carta de condução. Se não for esse o meu projecto (ou não for esse o meu desejo), esta obrigação deixa de existir.
ANA – A essas obrigações que dependem de condições dá Kant o nome de imperativos hipotéticos. Se, por hipótese, quiser ser médica então é meu dever estudar medicina, se quiser ser campeã olímpica é minha obrigação obter os mínimos para participar e treinar imenso. Mas se não quiser nada disso, as obrigações não têm cabimento.
JÚLIO – Isso mesmo. A palavra “imperativo” quer dizer obrigação; por outro lado, com a palavra “hipotético”, Kant está a referir-se às obrigações que adquirimos apenas na condição – ou hipótese – de termos um certo desejo ou projecto, mas não sempre.  
ANA – Deixa ver se percebi.   A obrigação de salvar uma pessoa do afogamento, se estiver ao nosso alcance fazê-lo, é absoluta, não é hipotética. Não depende de termos certos desejos, projectos ou sentimentos particulares. O mesmo acontece com a obrigação de não tratar os outros apenas como meios e sim como pessoas.
JÚLIO – Está percebido.
ANA – Mas diz – me. Há uma coisa que ainda não entendi. Por que razão insiste tanto Kant na ideia de que há obrigações absolutas. O autor que estamos agora a estudar – Stuart – Mill – afirma que não há obrigações morais absolutas.
JÚLIO -  Se a moral consistisse em seguir regras hipotéticas, teríamos a obrigação, por exemplo, de cumprir a palavra dada apenas em certas condições, mas não sempre. Esta obrigação dependeria, digamos, do desejo de ficarmos bem vistos aos olhos de Deus ou aos olhos dos outros, do desejo de agradar a alguém, etc. Se agradar a Deus ou aos outros deixasse de nos preocupar, a obrigação de cumprir com a palavra dada simplesmente desapareceria. Ora, não é isso que acontece. Continuamos a ter o dever de cumprir a palavra dada quer isso nos agrade quer não. 
ANA – É difícil não lhe dar razão. É por isso também que Kant diz que a moralidade – o cumprimento do dever não pode depender de sentimentos por melhores que eles sejam.
JÚLIO – Bem visto.Kant considerava ainda que a moralidade não é uma questão de bons sentimentos. Nós temos sentimentos de simpatia em relação a umas pessoas, mas não em relação a todas, e há, até, quem nos seja de certo modo indiferente. Se as nossas obrigações morais dependessem de termos ou não bons sentimentos, teríamos tendência para tratar as pessoas de maneira muito diferente, consoante o que sentíssemos por elas, mesmo que essas pessoas estivessem nas mesmas condições.
        ANA -   O nosso professor deu este exemplo:alguém precisa urgentemente de ajuda e eu estou em condições de dar essa ajuda. Se a pessoa que necessita de ajuda despertasse em mim um sentimento favorável, eu teria a obrigação de a ajudar; mas, se os meus sentimentos fossem outros, a obrigação de ajudar deixaria de existir. Ora, isto não parece correcto. Kant pensava que eu teria a obrigação de ajudar em ambos os casos. Se alguém se está a afogar e eu estou em condições de o evitar, a minha obrigação é ajudar, quer a vítima desperte em mim excelentes sentimentos ou me seja indiferente. A obrigação de ajudar não pode, portanto, estar dependente dos sentimentos dos agentes.
JÚLIO - Um sentimento de simpatia pode levar-nos a desejar ajudar. Mas, de um ponto de vista moral, não é o desejo de ajudar que está em causa. O que está em causa é a obrigação. Para se ver a diferença, basta pensar que alguém pode sentir-se na obrigação de ajudar a mãe a lavar a louça do jantar em vez de ir calmamente passear, e não ter muita vontade (ou o desejo) de o fazer. Infelizmente, podemos reconhecer que temos uma obrigação e não sermos capazes de a respeitar. Mas a obrigação não desaparece só por não sermos capazes num certo momento de a respeitar ou por não desejarmos fazê-lo. A obrigação continua a existir, e nós continuamos a ser responsáveis por ela.

DIÁLOGO 5
As duas mais importantes formulações do imperativo categórico: a fórmula da lei universal e a fórmula da humanidade. Para que servem estas fórmulas e qual a sua relação.
ANA – Olá Júlio, agradeço a tua paciência comigo. Depois de distinguir imperativos hipotéticos de categóricos – obrigações relativas de obrigações absolutas – Kant apresenta duas fórmulas sobre como devemos agir. Para quê?
JÚLIO – Se bem me lembro essas fórmulas são testes da moralidade das nossas acções. Sempre que agimos e queremos saber se estamos a agir de forma moralmente correcta devemos ter presentes essas fórmulas. Se não as respeitamos a nossa acção não tem valor moral. Por qual queres começar?
ANA – Comecemos pela segunda: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como meio.
JÚLIO – Há quem lhe chame também fórmula do respeito pelos direitos da pessoa humana.
ANA – O que se entende aqui por humanidade?
JÚLIO – Creio que é a pessoa humana.
ANA – Mas o que é isso de pessoa?
JÚLIO – Lembro – me de um programa de inspiração cristã que passava ao domingo na TV e que se intitulava Toda a gente é pessoa. Pessoa significa um ser racional que tem valor absoluto. Um ser humano pode ter mais inteligência do que outro, ser mais útil à sociedade mas todos são humanos e por isso nenhum vale mais do que outro. Essas comparações só se fazem entre coisas. Todos merecem respeito absoluto pelos seus direitos. Dez, duzentas ou duas mil vidas humanas não valem mais do que uma.
ANA – Um ser humano não é uma simples coisa ou objecto. Este copo aqui em cima da mesa é uma coisa, um objecto. O seu valor é relativo, ou seja, depende – tal como esta caneta ou o automóvel que está ali estacionado, de mim. Se me apetecer trocar de automóvel vendo aquele e compro outro. Se não usar o copo para beber ele não serve para nada. Se a caneta começar a falhar ou se gostar mais de outra deito – a fora ou deixo de a usar. As coisas são instrumentos ao nosso serviço como a televisão que tens na sala. Os seres humanos uma vez que são pessoas não podem ser coisas. Têm, como Kant diz, dignidade, valor absoluto. As pessoas não são ou não devem ser objectos que pura e simplesmente usamos, vendemos ou trocamos.
JÚLIO – É muito importante esta noção de pessoa na ética kantiana. Como pessoa o ser humano tem direitos que, em circunstância alguma podem ser violados ou infringidos. A ética kantiana parece a ética de um fanático do dever mas mais do que isso é a ética dos direitos da pessoa humana. Isto marca uma grande diferença entre Kant e Mill, como irás ver.
ANA – Vamos em pormenor a essa famosa fórmula. Comecemos por esta parte: simultaneamente como fim e nunca apenas como meio. Aqui diz – se que podemos usar os outros mas…
JÚLIO – Mas nunca os reduzindo à condição de meios ou instrumentos ao serviço dos nossos interesses, taras e manias. A fórmula não proíbe as pessoas de serem meios umas para as outras porque, se o proibisse, proibiria qualquer prestação de serviços. A lei moral não proíbe um comerciante de usar os seus clientes para prosperar, mas, se ele enganar nos preços e não devolver dinheiro esquecido pelos clientes, está a tratá-los apenas como meios, instrumentos ou objectos.

ANA – Se tiver uma dor de dentes, uso o dentista para me tratar. Só o transformaria num simples meio se não lhe reconhecesse o direito de receber pelo seu trabalho e ridiculamente dissesse que cumpriu a obrigação de me aliviar e saísse do consultório sem pagar. Imagina que alguém me ajudou numa situação financeira difícil. Mais tarde essa pessoa passa por situação financeira semelhante à minha. Supõe também que posso ajudá – la. Se não o fizer estou no fundo a transformá – la num instrumento que me foi útil e que agora não sendo necessário eu descarto. Não é correcto. Eu tinha o dever de a ajudar e ela o direito moral de ser ajudada.
JÚLIO – A escravatura é uma violação dramática desta fórmula. Um escravo é um ser sem direitos, uma coisa, uma propriedade de alguém. O «senhor» é o dono absoluto dessa vida humana. Pode fazer o que quiser dele tal como tu fazes o que quiseres dos teus cosméticos ou da bola de andebol que tens no terraço. Podes vendê – la, oferecê – la. O que bem entenderes.
ANA – E o racismo?
JÚLIO – Embora diferente, o racismo é também uma violação da fórmula do respeito pela humanidade ou pela pessoa humana. Enquanto pessoas os seres humanos têm valor intrínseco absoluto, isto é, dignidade. Todos temos direitos iguais. Não deve ser violada a nossa integridade física e moral, devemos poder circular livremente, ter direito a exprimir as nossas ideias e a dar – mo – nos uns com os outros. O racismo – como foi o caso do Apartheid na África do Sul – transforma algumas pessoas em cidadãos de segunda classe, retira humanidade aos seres humanos.

ANA – Há uma passagem - tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem – que me intriga.

JÚLIO – Esta fórmula não fala só de respeitar os outros. Diz que nenhum ser humano se deve tratar a si mesmo apenas como um meio. A prostituição, o masoquismo são exemplos de violação desta norma, mas, mesmo quando desrespeitamos directamente os direitos dos outros, como no caso da escravatura, da violação, do roubo e da mentira, estamos também a abdicar da nossa dignidade. Quem faz dos outros objectos torna – se desumano, também perde a sua dignidade ou humanidade.
ANA – Esta fórmula parece uma Declaração Universal dos Direitos Humanos.
JÚLIO – Não estás a dizer disparate nenhum. Tratar os seres humanos como humanos e iguais em direitos é o lema. Kant lança as bases de uma ética da pessoa – dos direitos absolutos da pessoa humana – e, no essencial, as Declarações dos Direitos e do Cidadão de 1789 – século a que Kant pertenceu – e a dos Direitos Universais de 1948 retomam esses princípios. O ser humano é um fim – em – si (não é um simples meio, instrumento ou coisa que se pode usar de qualquer maneira), é uma pessoa, um ser com valor absoluto. Digo – te uma coisa que porventura o teu professor referiu: Kant é um filósofo imensamente influente e não só no plano da ética. Em Kant o ideal comanda a existência do humana em todas as suas dimensões. É o ideal de uma acção puramente racional num ser humano inclinado para o mal, o ideal de um conhecimento absoluto num ser humano limitado e o ideal de uma paz perpétua entre seres cuja história de milhares de anos apresenta um oásis de paz de 300 anos – e não consecutivos. Só houve paz durante esses anos…
No plano das relações internacionais propôs a constituição de uma Federação Mundial de Estados sub­metida ao Direito Internacional. Esta seria a forma adequada, a condição sem a qual se torna­ria impensável o ideal de racionalidade e moralidade na relação entre os seres humanos de estados e culturas diferentes. Competiria a uma "Sociedade das Nações" administrar a "paz perpétua" entre os Estados. E não podemos negar que a ideia cosmopolita de uma "Sociedade das Nações" não tenha conhecido alguns ténues lampejos de realização. A seguir à Primeira Guerra Mundial uma Sociedade com esse nome foi fundada — é a antepassada da ONU — inspirando-se no projecto kantiano da "Paz Perpétua".
ANA – Lembro – me de ter ouvido algo parecido. Mas vamos à segunda fórmula: «Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, lei universal». Primeiro o que é uma máxima?

JÚLIO – Para avaliar moralmente uma acção – para saber se é moralmente correcta ou incorrecta – devemos dar especial atenção ao motivo ou intenção do agente. Ora, segundo Kant, o motivo do agente é indicado pela máxima segundo a qual este age. Imagina que encontras uma pulseira de ouro. Se a devolveres com a esperança de obter uma recompensa, a máxima segundo a qual ages será esta: «Vou devolver algo que encontrei porque acredito que vou ser recompensado por o fazer.». Se a devolve por ter receio de ser descoberto e eventualmente punido, a máxima será esta: «Vou devolver algo que encontrei porque acredito que posso ser descoberto e punido se não o fizer.» Como pode ver, uma mesma acção – devolver algo encontrado – pode seguir máximas diferentes, ou seja, pode haver diferentes motivos para a realizar. Por isso mesmo, conforme o motivo ou a razão que nos leva a proceder de um certo modo, assim a máxima terá valor moral ou não.

ANA – Uma máxima é pois uma regra de acção que nos indica o motivo por que fazemos algo. Para Kant, a avaliação moral de um acto depende da máxima do agente. E o que significa universalizar a máxima?

JÚLIO – Pode dizer – se que é tornar pública, dar a conhecer aos outros a intenção com que ajo.

ANA – Só que há aquela expressão «como se» …

JÚLIO – Creio que quer dizer o seguinte: devo adoptar uma máxima que possa ser válida não só para mim mas para todos os outros agentes morais. Devo agir como se estivesse ser um modelo a seguir. A moral é um conjunto de regras que reflectem várias obrigações particulares; cumprir a palavra dada, não mentir, não tirar a vida a pessoas inocentes, não roubar, respeitar os direitos dos outros, etc. Ao agir de acordo com estas regras (e outras do mesmo tipo) estamos a seguir mandamentos universalizáveis, isto é, mandamentos que desejamos que todos sigam e respeitem.
          Pelo contrário, mentir, roubar, matar pessoas inocentes, etc. não são actos moralmente permissíveis. Porquê? Bem, segundo Kant, por razões semelhantes às que impedem o egoísta de querer que todos sejam como ele. Tal como desejar que os outros ajam egoisticamente é contrário aos interesses do egoísta, desejar que todos mintam tem igualmente consequências contraditórias. 
ANA – Se bem entendo a questão é esta: Como posso eu saber que a máxima da minha acção é moralmente correcta ou incorrecta? Submetendo-a a uma prova que teste a possibilidade de a universalizar, isto é, de a fazer valer não só para mim como para todos os seres racionais.

JÚLIO – Isso. Imagina que uma pessoa com problemas financeiros decide pedir dinheiro emprestado. Sabe que não pode devolver o dinheiro que lhe for emprestado, mas prometê-lo – mentir – é a única forma de obter aquilo de que precisa. A máxima da acção poderia enunciar-se assim “Se isso servir os teus interesses, não devolvas dinheiro emprestado ao seu dono.”

ANA – No fundo, a máxima ou regra é esta “Mente sempre que isso for do teu interesse”. Universalizada a máxima estaríamos como que a dá - la a conhecer a todos. O que aconteceria a seguir? Ninguém confiaria em ninguém, é claro. Mas a mentira só é eficaz se as pessoas confiarem umas nas outras. É preciso que eu confie no António, por exemplo, para me deixar enganar por ele. Mas se eu souber que todos mentem sempre que isso lhes convenha, deixarei de confiar nos outros. Mentir tornar-se-á inútil porque não irei acreditar em nada do que possam dizer-me. Por estranho que pareça, ao exigir que todos mintam, estou a tornar a mentira impossível. A regra “Mente sempre que isso for do teu interesse” não pode ser transformada numa lei universal.
JÚLIO – Repara bem nas consequências disto: só as máximas que são universalizáveis têm valor moral. Se as máximas sem valor moral não são universalizáveis, tal implica que a nossa obrigação moral básica consiste em praticar apenas as acções que todos os outros possam ter como modelo. É esta obrigação, portanto, que estaria por trás das nossas normas morais particulares.  A lei moral proposta por Kant, pelo contrário, não prescreve qualquer conteúdo preciso. É puramente formal. Isto é: limita-se a dizer, seja qual for o conteúdo da acção, qual a forma a que deve obedecer a regra nela exemplificada: ser um modelo capaz de ser imitado por todos os seres racionais. 
ANA - Para saber, em cada circunstância da vida, se a acção que queremos praticar está, ou não, de acordo com a moral, temos de perguntar se aquilo que nos propomos fazer poderia servir de modelo para todos os outros. Se faltar a uma promessa, não é algo que todos possam imitar, então temos a obrigação de não o fazer, por muito que isso nos possa custar; se mentir não serve de modelo para os outros, então não temos o direito de abrir uma excepção apenas para nós. Etc.
JÚLIO - O imperativo categórico é o teste que permite verificar se uma máxima pode ser uma norma moral universal, uma regra a que todos devem obedecer. É moralmente errado agir segundo máximas que não podem ser universalizadas, ou seja, é moralmente incorrecto abrir uma excepção para nós próprios quando sabemos que não podemos querer que todos ajam como nós.

ANA –  Ouve lá, não serás por acaso professor de filosofia?

JÚLIO – Eh, eh. Consegues topar a relação entre as duas fórmulas?
ANA – Parece – me que sim. Continuando com o mesmo exemplo. Quem pede dinheiro emprestado sem intenção de o devolver está a tratar a pessoa que lhe empresta dinheiro. É evidente que está a tratá-la como um meio para resolver um problema e não como alguém que merece respeito, consideração. Pensa única mente em utilizá-la para resolver uma situação financeira grave sem ter qualquer consideração pelos interesses próprios de quem se dispõe a ajudá-lo.
Sempre que fazemos da satisfação dos nossos interesses a finalidade única da nossa acção, não estamos a ser imparciais e a máxima que seguimos não pode ser universalizada. Assim sendo, estamos a usar os outros apenas como meios, simples instrumentos que utilizamos para nosso proveito.

JÚLIO – Isso.

ANA - Quando decido independentemente de quaisquer interesses, isto é, quando sou imparcial e adopto uma perspectiva universal, obedeço a regras que, a bem dizer, criei ao
mesmo tempo para mim e para todos os seres racionais. Agir de forma puramente desinteressada é ao mesmo tempo agir segundo uma máxima universalizável – são os interesses e egoísmos que nos dividem – e respeitando o valor absoluto dos outros – só o egoísmo e os interesses nos levam a instrumentalizar os outros.

JÚLIO – Esta conversa deixou – me cansado. Vou beber qualquer coisa. Também queres?

ANA – Sim e por hoje chega de Kant. E promete que não vais falar do FMI.
JÚLIO – Está bem, está bem.      

DIÁLOGO 6
A intenção e as consequências: a boa vontade.
ANA – Hoje terminámos a ética kantiana e começámos a estudar o utilitarismo. Durante a aula dei comigo a pensar num acontecimento histórico, o lançamento de bombas atómicas sobre as cidades de Hiroshima e Nagazaki em 1945. Depois do que já aprendi creio que percebo por que razão a ética kantiana não é consequencialista nem utilitarista e porque valoriza tanto a intenção.
JÚLIO – Então hoje mudamos de lugar. É a tua vez de me esclareceres.
ANA - Quando o presidente americano Harry Truman decidiu lançar a primeira bomba atómica sobre a cidade japonesa de Hiroxima, matando de uma vez só mais de cem mil pessoas (civis inocentes), cometeu ou não um atentado contra a moral? Truman queria pôr fim à guerra o mais depressa possível e obrigar o governo japonês a render-se. Quis evitar a perda de muitos milhares de soldados e civis que teria lugar se a guerra se prolongasse. Lançar a bomba sobre Hiroxima tinha previsivelmente melhores consequências do que não o fazer. Se o valor moral das acções depender apenas das consequências, Truman não cometeu qualquer crime. A sua acção foi a correcta.
JÚLIO – Kant argumentaria: mas, para salvar a vida de muitos milhares de pessoas, Truman sacrificou a vida de outras pessoas inocentes. Será que é moralmente aceitável usar as pessoas como se fossem apenas coisas de que podemos dispor à vontade para os nossos fins – como se fossem instrumentos ou objectos? Se pensarmos que não são apenas as consequências que contam, se pensarmos que tratar as pessoas como pessoas – e não como simples meios – é a nossa obrigação moral básica, Truman agiu mal.

ANA - Kant defendia que o valor moral das acções depende unicamente da intenção com que são praticadas. Além disso, pensava que a única intenção capaz de dar valor moral a uma acção é a de cumprir o dever pelo dever. O nosso dever é nunca tratar as pessoas como simples instrumentos. E é este dever que é necessário ter em mente quando escolhemos as nossas acções.
JÚLIO - Kant teria pensado que Truman não reconheceu à população de Hiroxima a dignidade de pessoas; em vez disso, usou-as como um simples meio para obter o fim da guerra, e, portanto, agiu erradamente.
ANA - Para os defensores das éticas deontológicas como é o caso da de Kant, o valor moral das acções não depende apenas das consequências. Outros factores têm de ser considerados: por exemplo, os direitos dos envolvidos.
JÚLIO - De acordo com a perspectiva deontológica, maximizar o bem-estar não é permissível sempre que fazê-lo implique violar um direito. Isso distingue radicalmente a ética kantiana da ética utilitarista. Truman violou um direito fundamental das pessoas – o direito à vida. As teorias deontológicas entendem a moral como um conjunto de restrições – ou direitos – centrados no agente. Estes direitos impõem limites ao que é permissível fazer para maximizar o bem-estar. Para poupar a vida de muitos milhares de pessoas, caso a guerra continuasse e dado que os japoneses só se rendiam mortos, Truman mandou matar alguns milhares de inocentes. Segundo Kant, uma vida não pode ser trocada por outra porque cada vida tem um valor absoluto.
ANA - John Stuart Mill, um filósofo inglês do século XIX, foi um crítico severo de Kant e um dos mais famosos defensores de uma moral consequencialista. Mill pensava que o que conta são as consequências das acções e que temos a obrigação moral de optar sempre pela acção que melhores consequências tenha para todos os envolvidos, ou que evite a maior quantidade de sofrimento possível. Ora, foi precisamente esta exigência que a decisão de Truman parece ter tido em conta. Se forem as consequências de uma acção que contam, poderemos condenar Truman por ter feito o que fez?
JÚLIO – Kant pensa que sim. Certas acções, apesar de poderem ter boas consequências ou serem úteis, não devem ser praticadas. O lançamento da primeira bomba atómica sobre a população civil de Hiroxima teve a consequência de evitar um número maior de baixas se a guerra tivesse continuado. No entanto, isto não justifica tirar a vida a pessoas inocentes.
Matar pessoas inocentes é sempre errado, sejam quais forem as consequências.
Kant pensava que sem conhecermos as intenções dos agentes não podemos determinar o valor moral das acções. Por muito boas ou por muito úteis que sejam as suas consequências, uma acção pode não ter valor moral.
ANA – É difícil não concordar com Kant. Imagina que a tua tia conduz o seu automóvel pelas ruas de uma cidade. Subitamente, um pneu rebenta e o carro desgovernado atravessa uma faixa para peões atropelando e ferindo gravemente duas pessoas. Imagina um outro caso: um bandido, fugindo da polícia, atravessa faixa a alta velocidade vê dois peões, atropela - os e fere - os gravemente. As duas acções tiveram o mesmo resultado mas diremos que são iguais? É claro que não. A sua tia não atropelou e feriu intencionalmente os transeuntes. Simplesmente não pôde controlar o carro e mesmo que vá ter de pagar os prejuízos causados não diremos que agiu mal. Não cometeu nenhum crime. Diferente é o caso do bandido. Viu os peões mas querendo fugir da polícia, não hesitou em atropelá – los. A sua acção foi intencional e apesar de o resultado ter sido igual, todos diremos que a sua acção foi má. O seu comportamento foi criminoso.
JÚLIO – Contudo, de boas intenções está o inferno cheio….
ANA – O nosso professor referiu este exemplo: Numa obra de Stefan Zweig narra – se o seguinte episódio: O capitão Tomi Hoffmiller foi convidado de honra para uma festa numa bela casa. Noite dentro apercebe – se de que não dançou com a filha do seu ilustre hóspede. Tentando remediar a falta de atenção dirige – se à moça e convida – a para dançar. É nesse momento que a moça começa a chorar descontroladamente e sofre um colapso. Tomi fica a saber, para sua enorme surpresa, que a moça não podia andar.
JÚLIO - Na perspectiva de Kant, a intenção de Tomi foi boa, quis fazer o que era correcto. De um ponto de vista moral, isso é o que conta. O filósofo alemão não teria dificuldade alguma em admitir que as consequências da acção do capitão foram más. Contudo, moralmente falando, as consequências não contam.

ANA - O valor moral das acções decorre da intenção com que são praticadas.

JÚLIO – Se a intenção for cumprir o dever pelo dever então a vontade do agente recebe o nome de boa vontade.

ANA – A boa vontade é a vontade das pessoas boas.

JÚLIO – Não necessariamente. Para Kant, a boa vontade não tem a ver com o carácter das pessoas. Tem a ver com a intenção que está na base da acção. Agir moralmente não é necessariamente sinónimo de ser bondoso. É agir com uma só intenção: fazer o que é correcto. É reconhecer que há obrigações morais que são absolutas porque não estão sujeitas a quaisquer excepções, mesmo que respeitá-las tenha consequências negativas para todos. Kant, para evitar confusões, diz mesmo que quem cumpre o dever sem qualquer outra intenção, mesmo que o faça aborrecido ou, como diz o povo, de «má vontade», é mais digno de apreço do que quem o cumpre porque gosta de o fazer. No primeiro caso, o esforço contra o que nos afasta do cumprimento puro do dever é maior.

ANA – Então o conceito de boa vontade é um conceito que permite fazer a ligação entre todos os grandes temas da ética de Kant.

JÚLIO – Explica lá melhor. Não estou a ver.

ANA - É uma vontade que cumpre o dever respeitando absolutamente a lei moral, ou seja, cuja única intenção é cumprir o dever. É uma vontade imparcial, que age segundo regras ou máximas que podem ser seguidas por todos porque não violam os interesses de ninguém. É uma vontade que respeita todo e qualquer ser humano considerando – o uma pessoa e não uma coisa ou um meio ao serviço deste ou daquele interesse. É uma vontade autónoma porque decide cumprir o dever por sua iniciativa e não por receio de autoridades externas ou da opinião dos outros.
JÚLIO – Ena pá, está bem visto. (O autor deste diálogo pede desculpa por eventual auto – elogio).
ANA – Para encerrar a conversa em beleza falta dar um pouco mais de atenção ao conceito de autonomia ou de vontade autónoma. Quando decido independentemente de quaisquer interesses, isto é, quando sou imparcial e adopto uma perspectiva universal, obedeço a regras que criei ao mesmo tempo para mim e para todos os seres racionais. Uma vontade autónoma é uma vontade puramente racional, que faz sua uma lei da razão, lei presente na consciência de todos os seres racionais. Ao agir por dever obedeço à voz da minha razão e nada mais.

JÚLIO - Mas se eu, por exemplo, cumprir o dever de não mentir por considerar que essa é a vontade de Deus, como está expresso nos dez mandamentos, não estarei a agir de uma forma moralmente correcta?

ANA - Kant responderá que não. Nas questões morais a vontade do ser humano não é um meio para o cumprimento da vontade de um outro ser. Kant julgava que a religião não pode estar na base da moral pela seguinte razão: os seres humanos são livres e, portanto, autónomos. Ser autónomo significa que dependemos apenas de nós próprios – e não dos outros ou das circunstâncias – para orientarmos a nossa vida. Ser autónomo, pensava Kant, implica agir com base em critérios ou regras que somos nós próprios a ditar, de acordo com a nossa consciência. Se as regras morais nos fossem impostas de fora, por Deus, não haveria autonomia, não seríamos nós a ditar as regras. Portanto, não seríamos realmente livres.

JÚLIO – Mas não se diz frequentemente que ser religioso e devoto é ser boa pessoa. Não se desconfia dos ateus?

ANA – Não acredito que ser religioso seja necessário para ser boa pessoa. O problema é que como já te disse o valor moral das acções não depende de se ser boa pessoa ou não. Depende da forma como cumprimos o dever seja qual for o nosso carácter. E também se deve dizer que ser adepto da ética kantiana não implica ser ateu, não acreditar na existência de Deus. Kant não era ateu. Kant separou a moral da religião. É uma grande revolução. No lugar de Deus estão os direitos da pessoa humana. Isso é que é sagrado respeitar. Para saber o que devo fazer não preciso de Deus, não preciso de afirmar nem de negar a sua existência. Basta ouvir a voz da minha razão.
O agente moral é autónomo quando age por dever, ou seja, quando a sua máxima passa o teste do imperativo categórico e se torna regra segundo a qual todos podem agir. O agente autónomo aceita a lei moral, não porque alguma autoridade externa o convenceu ou porque receia as consequências de não a aceitar. Aceita-a porque a lei é criada por si mesmo quando as escolhas morais são imparcial e desinteressadamente determinadas pela sua razão. É ao mesmo tempo legislador e sujeito dessa lei. A ética kantiana não admite autoridades morais externas e superiores à razão. A autonomia é a unidade entre o que a razão ordena e o que a vontade quer.

JÚLIO - A palavra de ordem é ser um modelo para os outros e não «Agradar a Deus» ou a outro tipo de autoridade. É nossa obrigação cumprir o dever porque isso é justo e não porque terá boas consequências. Uma pessoa pode obedecer aos mandamentos de Moisés apenas por ter receio que Deus a castigue, e não por pensar que os mandamentos são realmente justos. Quando o cumprimento do dever não é motivo suficiente para agir tendo de se invocar razões externas como o receio das consequências, o temor a Deus, etc., a vontade submete-se a autoridades que não a razão. Por isso, a sua acção é heterónoma, incapaz de respeitar incondicionalmente o dever. Todas as éticas de tipo consequencialista são, para Kant, heterónomas, reduzem a moralidade a um conjunto de imperativos hipotéticos.

ANA – Por falar em consequencialismo, para a próxima falaremos de Stuart – Mill se já não estiveres farto disto.

JÚLIO – Combinado. Veremos também quem nos parece mais persuasivo e convincente.






DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA UTILITARISTA DE STUART - MILL

DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA UTILITARISTA DE JOHN STUART – MILL
DIÁLOGO 1
As consequências é que contam
ANA – Vamos à nossa conversa sobre Mill. Estás disposto a isso Júlio?
JÚLIO – Vamos a isso. Parece mais fácil do que Kant?
ANA – Parece mas as aparências podem iludir. Os filósofos são todos complicados.
JÚLIO – Como começaram?
ANA -  Começámos por esclarecer que a ética de Mill era consequencialista.Enquanto para Kant avaliar a moralidade das nossas acções era perguntar pela razão por que agimos de uma determinada forma, pela intenção com que fazemos aquilo que fazemos, (sendo a ação moral em Kant aquela que cumpre ou respeita o dever pelo próprio dever), em Mill, perguntar pelo valor moral da ação, é perguntar pelas suas consequências.
JÚLIO - Isso significa que …
ANA – Uma acção é moralmente boa ou má devido às suas consequências.
JÚLIO  – Se as consequências forem boas …
ANA– A acção é moralmente boa.
JÚLIO  – Se as consequências forem más ou não tão boas como podiam ser…
ANA – A acção não tem valor moral, ou melhor, não é moralmente correcta. Ás vezes, uma acção não é moralmente correcta por ter más consequências mas porque poderia ter tido melhores consequências.
JÚLIO – Mas atenção: isto só nos diz que a teoria de Mill é consequencialista. Falta saber porque tem o nome de utilitarismo.
ANA – Certo.Trata – se de saber o que significa mais precisamente dizer que uma acção tem boas ou más consequências?
JÚLIO – Só um momento. O telemóvel toca...
ANA – Atende.
JÚLIO – Lamento Ana mas vou ter de ir a casa. Uma inundação.
ANA – Deixaste alguma coisa aberta. Um descuido com más consequências e nada útil.
JÚLIO – Brinca, brinca. Inté.
ANA – Até breve.

DIÁLOGO 2
O princípio de utilidade
ANA – Então Júlio, novidades? Muitos estragos com a inundação?
JÚLIO – Nem por isso. Algumas coisas que não sabem nadar ficaram a nadar mas o importante é que a água não passou para a casa dos vizinhos. Só uma parte da escada ficou alagada.
ANA – Ainda bem. O teu descuido podia ter tido piores consequências.
JÚLIO – Foi a falar de consequências que nos despedimos. Continuemos.Segundo Kant testamos a correcção moral de uma ação baseando-nos no motivo ou intenção do agente e não nos resultados objectivos da acção. Muitas pessoas pensam que por mais indesejáveis que sejam os resultados de um acto a boa intenção do agente deve contar na avaliação do que fez. Mill discorda completamente: evitar que uma pessoa se afogue é sempre bom independentemente da motivação de quem salva. A motivação ou a intenção nada tem a ver com a moralidade da acção. Só tem a ver com o carácter do agente.
ANA – O nosso professor deu o seguinte exemplo: Durante a visita a um museu um dos visitantes percebe de que dois funcionários estão com dificuldades em mudar de lugar um quadro muito famoso e valioso. Imediatamente apressa-se a ajudá-los mas infelizmente tropeça num tapete e choca com um dos funcionários derrubando-o. O quadro cai com estrondo e fica muito danificado.
JÚLIO - O visitante agiu com boa intenção mas as consequências da acção foram desastrosas. Será que podemos considerar a sua ação moralmente correcta pois agiu com boa intenção ou devemos considerá-la como moralmente incorreta porque as consequências foram más?
ANA - A resposta de Mill seria que a ação foi moralmente incorrecta. Por quê? Porque segundo a sua perspectiva consequencialista um acto deve ser julgado pelas suas consequências. Se as consequências forem boas a acção é boa, se forem más a acção é má.
JÚLIO – E agora voltamos à questão em que ficámos: Mas o que significa mais precisamente dizer que uma acção tem boas ou más consequências?
ANA - Uma acção tem boas consequências se, dadas as alternativas disponíveis, dela resultar a maior felicidade, bem-estar ou prazer (ou pelo menos mais felicidade do que infelicidade) para o maior número possível de pessoas que por essa acção são afectadas. No exemplo dado um grande número de visitantes do museu será privado do prazer de contemplar o famoso quadro e o visitante solidário terá de responder pelos prejuízos involuntariamente causados.
JÚLIO - Então uma acção é boa se for útil.
ANA - Ser útil significa que dela resulta o maior bem – estar ou felicidade para o maior número de pessoas. Repara que no acidente que aconteceu no museu, apesar da boa intenção de quem quis ajudar, o resultado foi mau para muitas pessoas: a que vai ter de reparar parte dos estragos que causou, as pessoas que não poderão ver o quadro durante algum tempo e os responsáveis pelo museu que poderão ver diminuir o número de visitantes. Falta também saber se o quadro poderá ser restaurado.
JÚLIO - O meu irmão que não gosta de visitar museus não ficaria nada aborrecido com tudo isso.
ANA - Mill não está a pensar no teu irmão quando diz que a acção teve más consequências.
JÚLIO - O que eu penso é que Mill considera que a acção teve más consequências para várias pessoas mas não para as que não se interessam por museus. Essas não foram afectadas pelo que aconteceu.
ANA -  De acordo. Para Mill uma acção é boa se tiver boas consequências – ou as melhores consequências possíveis -  para o maior número possível de pessoas a quem ela diz respeito. Mill não diz todas as pessoas porque isso seria absurdo. As pessoas que como o irmão do Carlos não gostam de museus não vão lamentar o que aconteceu ao famoso quadro. Não são directa ou indirectamente afectadas, não sofrem o impacto que a desastrada intervenção do visitante teve.
JÚLIO - O que Mill está a dizer é que a utilidade é o que torna uma acção moralmente valiosa. O critério da moralidade de um acto é o princípio de utilidade. Este princípio é o teste da moralidade das acções.
ANA - Uma acção deve ser realizada se e se só dela resultar a máxima felicidade possível para as pessoas ou as partes que por ela são afectadas, ou que recebem directa ou indirectamente o impacto que a acção provoca.
JÚLIO - O princípio de utilidade é por isso conhecido também como princípio da maior felicidade. A ideia central do utilitarismo é a de que devemos agir de modo a que da nossa acção resulte a maior felicidade ou bem - estar possível para as pessoas por ela afectadas. Uma acção boa é a que é mais útil, ou seja, a que produz mais felicidade global ou, dadas as circunstâncias, menos infelicidade. Quando não é possível produzir felicidade ou prazer devemos tentar reduzir a infelicidade.
ANA – Parece fácil e simples.
JÚLIO – Mas o problema é aplicar este princípio. Nem sempre é fácil.
ANA – Contudo, o princípio de utilidade é, muitas vezes, um bom guia para as nossas decisões.
JÚLIO – Gostava que me esclarecesses.
ANA – Repara que eu não estou a afirmar que o princípio de utilidade é uma receita que aplicamos tranquilamente, sem qualquer angústia ou dúvidas. Agir seja com base em que princípio for, envolve frequentemente riscos.
JÚLIO – Agora é que preciso que me esclareças mesmo....
ANA – Vou tentar. Imagina que alguém tem uma doença que envolve a realização de uma complexa cirurgia.
Uma operação A permite a cura completa, mas apenas 30% dos pacientes a ela sujeitos sobrevivem; uma operação B permite a recuperação apenas parcial, a 50%, embora sem envolver quaisquer riscos para a vida dos pacientes. Imaginemos que um médico decide sujeitar um paciente à operação A e que este sobrevive. Terá o médico, de um ponto de vista utilitarista, agido bem?
JÚLIO – É para eu responder? Eu penso que, de acordo com o princípio da maior felicidade ou bem – estar possível, o médico, embora correndo mais riscos, agiu bem.
ANA – E porquê?
JÚLIO – Porque a cura completa do paciente corresponde ao máximo de bem estar possível (dado o paciente ter sobrevivido).  A operação A não devia ter sido realizada. O cálculo da utilidade esperada aconselha a preferir a operação B. E se a operação tivesse corrido mal? Utilitarista – O risco é a minha profissão.
ANA – Tomar decisões é quase sempre complicado.
JÚLIO – Por falar em complicações  tens de ir ao dentista como me disseste.
ANA – Espero que o dentista contribua para a minha felicidade e bem – estar.
JÚLIO – Tem calma. Por falar em felicidade vai ser esse o tema da nossa próxima conversa.
DIÁLOGO 3
O PRINCÍPIO DE UTILIDADE, A FELICIDADE GERAL E A FELICIDADE INDIVIDUAL.
ANA – Sabes Júlio, esta teoria  utilitarista não me agrada muito. Ter sempre de pensar na felicidade, no prazer ou no bem-estar do maior número possível de pessoas! Se o meu pai me dá um automóvel em vez de apoiar com esse dinheiro uma campanha contra o cancro, é justo dizer que ele agiu mal?
JÚLIO -  Segundo Mill sim. Se o teu pai desse dinheiro para essa luta contra o cancro muito mais pessoas seriam beneficiadas.
ANA – Mas ao comprar o carro o meu pai também beneficiaria muitas pessoas. Pagaria impostos, ajudaria os trabalhadores da empresa porque vendendo mais um carro a empresa teria mais lucro e não haveria demissões…
JÚLIO - Hum…Mas ajudar quem precisa de tratamento …. Há muito mais pessoas precisando de ajuda no tratamento contra o cancro do que a precisar de trabalho na empresa que fabricou e vendeu o carro.
ANA – Acho que a acção do meu pai não foi má, não teve más consequencias.
JÚLIO – Seria melhor ajudar os que sofrem daquela doença. Não foi a melhor acção possível. O teu pai poderia ter agido melhor. A boa ação é a melhor acção possível. A que beneficia o maior número possível de pessoas. O que custava ao teu pai dar o dinheiro do carro para a luta contra uma doença que mata tanta gente?De um ponto de vista utilitarista, dadas as circunstâncias e as alternativas disponíveis o teu pai não agiu correctamente.
ANA – É mais importante a felicidade dos outros do que a minha?
JÚLIO – Mill não diz isso.
ANA - Imagina que tenho muito dinheiro no banco. Devo, na perspectiva utilitarista, retirá – lo todo do banco e dá – lo a pessoas necessitadas contribuindo assim para uma maior felicidade geral?
JÚLIO – Seria absurdo. Mill nunca defendeu tal coisa. Se estivesse aqui, dir – te – ia o seguinte: «Quando se trata de decidir o que é moralmente correcto fazer, não deve ter em conta somente o seu bem-estar. Deve ponderar sobretudo que consequências a sua acção vai ter no bem-estar das pessoas por ela afectadas. A sua felicidade não conta mais do que a felicidade dessas outras pessoas. E quando me refiro a outras pessoas não abro excepções para as pessoas de que mais gosta, para familiares e amigos. Deve ser imparcial quando delibera o que vai fazer».
ANA – Então o utilitarismo não defende que que, em nome da felicidade geral, considerasse meu dever entrar em bancarrota.
JÚLIO - Na verdade, o utilitarismo não defende que deva abdicar de mim em nome da felicidade geral ou de um aumento de felicidade global. A acção correcta é sem dúvida a que maximiza a felicidade, a que contribui para a maior felicidade para todos, incluindo eu - o agente. A minha felicidade é tão importante como a felicidade dos outros – não é mais nem menos importante. Por outro lado, a relativa miséria em que eu ficaria – suponhamos que sem casa, sem dinheiro para comer – superaria a felicidade criada por dar a uma grande quantidade de pessoas uma pequena quantidade de dinheiro. Embora o utilitarismo afirme que alguns sacrifícios são moralmente exigidos não defende que devo sacrificar tudo pelos outros. Com efeito, se dou tudo não poderei continuar a ajudar os necessitados o que reduziria a quantidade global de felicidade.
ANA – HUM... Mesmo para defender o utilitarismo utiliza – se um critério utilitarista....
JÚLIO – Voltemos ao caso do carro que o teu pai te comprou. O teu pai devia ter pensado mais nos outros do que em ti. Precisavas mesmo do carro?
ANA – Dá imenso jeito. E não achas que o meu pai tem o direito de fazer o que bem entende com dinheiro que ganha e gasta? Mais uma teoria que me parece exagerada. Pensar sempre na felicidade geral. É de ficar doida. Que dizer dos meus projectos pessoais, dos meus gostos particulares e das minhas distracções, dos meus compromissos e obrigações familiares?
Supõe que gosto de ouvir música e dedico algum tempo por dia a esse prazer. Não poderia fazer outra coisa? É claro que sim. Poderia envolver-me em actividades que tendem a atenuar o sofrimento dos milhões de pessoas que neste mundo vivem miseravelmente. Haveria mais felicidade global. Ao ouvir música sou a única pessoa que está a beneficiar ou pelo menos há actividades alternativas que beneficiam mais pessoas. Imagina que vou ao cinema com o meu namorado. Devo perguntar se nesse momento não poderia desenvolver uma actividade mais útil para um maior número de pessoas? E se gosto de história desejando ser investigador devo renunciar e seguir uma carreira científica (médica, engenheira) porque o meu país precisa de profissionais qualificados nessa área? Seria mentalmente desgastante pensar sempre no bem - estar do todo e em beneficiar o maior número possível em tudo o que fazemos. Estariam arruinadas as nossas relações pessoais e as nossas obrigações familiares.

JÚLIO - Uma das principais críticas dos adversários do utilitarismo é a de que exige demasiado do agente moral. Mas Mill, pelo menos, nunca disse que sendo a promoção do bem – estar geral o nosso dever fundamental deveríamos promovê-lo a todo o custo. O que ele pensa é que há nos seres humanos uma forte inclinação para ser egoísta. Eu primeiro, depois eu… depois os meus familiares e amigos e só a seguir o resto. Parece aquela situação em que se pede muitíssimo para pelo menos conseguir alguma coisa.
ANA – Isso parece – me impossível, quase desumano. Nem toda a gente vale o mesmo para mim.
JÚLIO - Seja como for o que Mill quer dizer é que se  trata, através da educação segundo o princípio de utilidade, de abrir um espaço amplo para que a inclinação para o bem geral se sobreponha com frequência cada vez maior ao egoísmo. O princípio da maior felicidade em Mill exige que cada indivíduo se habitue a não separar a sua felicidade da felicidade geral sem deixar de ter projectos, interesses e vida pessoal.
ANA – Espero que seja assim porque caso contrário....
JÚLIO – O Mill conseguiu irritar – te!
ANA – De que maneira... Já não chegava o Kant com a mania das mãos puras e limpas!
JÚLIO – Que te agrade ou não, Mill não entende por felicidade, apenas a felicidade do agente, mas a felicidade para o maior número possível de pessoas. Para que uma acção tenha valor moral, não é suficiente que a felicidade seja a do agente, mas é necessário que seja a felicidade das pessoas afectadas pela acção realizada.
Não há mal em as consequências dos teus actos satisfazerem os teus interesses desde que: a) não tenhas em vista só os teus interesses; b) Penses primeiro no bem – estar da maioria das pessoas a quem a acção pode mudar a sua situação.

ANA – Mas ser egoísta, pensar em mim e não nos outros, é errado?

JÚLIO – Segundo Mill é errado.E segundo Kant também. Para Kant, é moralmente errado que o agente abra excepções para si próprio e faça depender o cumprimento do dever da satisfação dos seus interesses e desejos. A imparcialidade é a palavra de ordem. Para Mill ter em conta o interesse geral e colocá-lo acima dos interesses exclusivos do próprio agente quando se decide o que fazer é condição fundamental da moralidade de um acto.

ANA – Não conseguimos ser assim.

JÚLIO – Não sei se somos todos egoístas mas o que estes dois autores nos dizem é que é moralmente errado ser egoísta e defender que todas as pessoas devem agir sempre em função dos seus próprios interesses. Devemos lutar contra uma fácil tendência humana: sermos egoístas. O egoísmo não pode estar na base da moral. A razão é muito simples: apenas um egoísta estaria interessado numa moral baseada no egoísmo; mas, na verdade, também não é do interesse do egoísta que os outros sejam como ele. Não é do interesse do egoísta transformar a sua atitude numa regra universal, ou seja, que todos seguissem.
ANA – De acordo. Mas parece – me que subtilmente se passa de um extremo a outro. Mas vamos lá recapitular para quem vai ler estes materiais de apoio.
JÚLIO – Estás a falar de quê?
ANA – Nada. Esquece. O imperativo moral utilitarista é este: Age sempre se maneira a produzir a maior quantidade possível de bem estar geral para o mundo (para todos os envolvidos).
JÚLIO - O objectivo da moral é contribuir para transformar o mundo num lugar melhor.A moralidade é acerca de como produzir as melhores consequências, e não acerca de boas intenções. As intenções apenas contam porque revelam o que queremos fazer. A exigência de imparcialidade e de universalidade está presente na moral utilitarista.
O bem-estar a promover não é apenas o do agente mas o de todos os envolvidos.
Uma consideração imparcial dos interesses implica que o modo de o bem estar ser distribuído não é importante em si mesmo.
Se ao optar por uma situação A, três pessoas ficam satisfeitas e duas não, e se ao optar por B apenas duas pessoas ficam satisfeitas e três não, o princípio utilitarista obriga a optar por A mesmo que o agente esteja entre as pessoas insatisfeitas.

 No fundo, o utilitarismo diz-nos apenas o seguinte: avalia cada situação com toda a imparcialidade e escolhe a alternativa que mais benefícios traga a todos os que serão afectados pelas tuas acções.
ANA – Muito bem, não me parece um mau programa. Mas a estrita imparcialidade e a insistência nas consequências são discutíveis, muito discutíveis.
JÚLIO – Então discute.
ANA - Imagina que prometeste acompanhar a tua namorada a uma clínica onde ela irá realizar exames médicos. Para esse mesmo dia recebes um convite de um amigo para assistir a um concerto de beneficência a favor de uma instituição de acolhimento de menores que passa por graves dificuldades financeiras. Deves acompanhar a tua namorada ou ir ao concerto? Como para um utilitarista o que conta são as consequências e que de uma acção resulte o melhor estado de coisas a resposta seria ir ao concerto. Da acção de ir ao concerto resultará mais felicidade ou bem – estar no mundo – um melhor estado de coisas – do que da acção de acompanhar a sua namorada à clínica.
JÚLIO – Aonde queres chegar com esse exemplo?
ANA - Habitualmente diríamos que tinhas a obrigação de acompanhar a tua namorada à clínica porque o prometeste. Estás vinculado a essa promessa e, embora por vezes, por uma questão de prioridade tenhamos de ignorar algumas obrigações, as promessas são para cumprir.
JÚLIO - Segundo os críticos, o utilitarismo não convive bem com a ideia de obrigação moral ou de promessas porque estas remetem para o passado – para o que se prometeu ou para obrigações que contraímos. Uma doutrina que avalia as acções com base nas suas consequências, baseando – se no que delas irá eventualmente resultar, centra – se no futuro.
ANA - O problema do utilitarismo é o de que parece tornar incompreensível a noção de obrigação moral como algo que vincula agora um agente a algo não por causa das suas consequências mas simplesmente porque de facto temos obrigações morais.
JÚLIO – Mas também te digo que podia dar o dinheiro do ingresso no concerto, não ir ao concerto e acompanhar a minha namorada à clínica.
ANA – Para ficares bem com a tua consciência...
JÚLIO – Era uma solução.
ANA – A imparcialidade transforma – nos em máquinas de calcular as consequências das nossas acções. Desvaloriza determinados laços afectivos e obrigações que são importantes para a generalidade das pessoas. Falo das relações e obrigações que temos a respeito dos nossos familiares e amigos.
JÚLIO – Tenho uma certa dificuldade em não te dar razão.
ANA – Queres um exemplo? Supõe que aconteceu uma fuga de gás num prédio. Após uma explosão desencadeia – se um incêndio. Várias pessoas fogem a tempo de salvarem as suas vidas mas duas não o conseguem. Tendo assistido aos factos ficas saber que as duas pessoas são a tua mãe e um famoso cientista que está prestes  a descobrir a cura para uma doença muito grave. Só há tempo para salvar uma das pessoas em perigo. Só tu as podes  salvar e tens coragem para o fazer. Quem deves salvar?
JÚLIO - Na perspectiva utilitarista devemos ser imparciais para criar um estado de coisas melhor no mundo. Nesta ordem de ideias, entre uma mulher comum – é assim que a devemos considerar se formos imparciais - e o brilhante cientista parece claro que devemos salvar o cientista. Porquê? Não propriamente por já ter salvo a vida de muitas pessoas mas porque continuará com a sua descoberta a fazer o mesmo se sobreviver. Salvar o cientista produzirá um melhor estado de coisas – maximizará o bem – do que salvar a idosa senhora.
ANA – Só que a idosa senhora é a tua mãe que te criou, sofreu e se sacrificou por ti e que é uma pessoa especial, muito especial porque nela e com ela viveste experiências que não vives com mais ninguém. Sê utilitarista a ver se consegues!
JÚLIO – É um exemplo extremo, exagerado.
ANA – Pode acontecer – te. Nunca se sabe. O que eu quero salientar é o seguinte: esta teoria  desvaloriza estes laços e obrigações,  não lhes atribui significado moral relevante. Será possível abstrairmos, colocar de parte as exigências da nossa vida pessoal, o amor e o afecto quando tomamos decisões morais? Não é exigir demais? Se a imparcialidade está ligada à justiça, ao tratamento justo das pessoas e dos animais não – humanos não estaremos neste caso a ser demasiadamente imparciais, frios e cruéis, ao ponto de desprezarmos pessoas importantes e a quem muito devemos? Há pessoas que podem dizer muito à humanidade mas há outras que nos dizem muito mais a nós.
JÚLIO - Parece indiscutível que retirar certos afectos do centro da vida moral é exigir demais de seres que neles encontram sentido para as suas vidas.  Reconheço que tens razão embora salvaguarde a hipótese de estarmos a ser injustos com o Mill, ou seja, podemos não o estar a compreender bem.
ANA – Caso assim seja, as minhas desculpas mas se o estamos a compreender o problema é dele, melhor, da teoria utilitarista.

DIÁLOGO 4
O princípio de utilidade e as normas morais convencionais
JÚLIO - O utilitarismo é uma teoria bastante simples. No fundo, diz-nos apenas o seguinte: avalia cada situação com toda a imparcialidade e escolhe a alternativa que mais benefícios traga a todos os que serão afectados pelas tuas acções.
ANA - O utilitarismo é simples apenas na aparência. Aplicar o seu princípio na prática pode revelar-se extremamente complicado.
JÚLIO - Porquê complicado?
ANA - O utilitarismo implica que estejamos permanentemente a fazer cálculos complexos e a prever de cada vez que é necessário tomar uma decisão qual das opções trará mais benefícios prováveis e menos custos. Mas isto seria impossível.
JÚLIO - Confesso que não tinha pensado nisso. Será assim tão difícil?
ANA - É inevitável. Mas ainda que conseguíssemos fazer os cálculos necessários, viver numa sociedade utilitarista é pouco seguro.
JÚLIO - Não vejo porquê.
ANA - É que um utilitarista não hesitaria em mentir, roubar ou matar se fazê-lo, consideradas as coisas imparcialmente, tivesse melhores consequências do que prejuízos para a sociedade. Regras como “não devemos matar pessoas inocentes” não têm para ele qualquer importância. Tudo o que conta são as conveniências que cada situação nos impõe.
JÚLIO - Será que na ética utilitarista não há lugar para as regras morais comuns?Será que vale tudo desde que os fins justifiquem os meios?
ANA – O que é isso de regras morais comuns?
JÚLIO – São regras que nos proibem de matar inocentes, roubar e mentir, por exemplo. São regras partilhadas por uma certa comunidade de indivíduos e que devem ser cumpridas.
ANA – Para o utilitarismo a regra ou o princípio moral fundamental – e que está acima de todos os outros – é o princípio de utilidade. Quando duas normas morais entram em conflito, quando não sabemos qual devemos seguir como no caso de conflitos morais mais ou menos dramáticos, é ao princípio de utilidade que devemos recorrer. Além disso, e não menos importante, o princípio de utilidade é que justifica e dá sentido às normas morais convencionais. Devemos segui – las quando as consequências são boas.
JÚLIO - As normas morais como as que proíbem o roubo, o assassinato ou a mentira têm, para Mill, muito valor. As normas morais comuns estão em vigor em muitas sociedades por alguma razão. Resistiram à prova do tempo e em muitas situações fazemos bem em segui-las nas nossas decisões. Vendo bem as coisas, as regras da moral convencional que gozam de maior prestígio devem tal reputação ao facto de terem contribuído para a promoção do bem-estar da humanidade e da convivência harmoniosa, isto é, têm cumprido o critério utilitarista. Dizer a verdade é um acto normalmente mais útil do que prejudicial e por isso a norma «Não deve mentir» sobreviveu ao teste do tempo.
ANA - Contudo, não devem ser seguidas cegamente. Nas nossas decisões morais devemos ser guiados pelo princípio de utilidade e não pelas normas ou convenções socialmente estabelecidas. Para o utilitarista, as acções são moralmente correctas ou incorrectas conforme as consequências: se promovem imparcialmente o bem-estar, são boas. Isto quer dizer que não há acções intrinsecamente boas. Só as consequências as tornam boas ou más. Assim sendo, de acordo com o princípio de utilidade, não há, para o utilitarista, deveres que devam ser respeitados em todas as circunstâncias.