quarta-feira, 22 de abril de 2015

PREPARAR O EXAME NACIONAL DE FILOSOFIA




MATÉRIA DO 11.º ANO
ÍNDICE

MÓDULO 3 ‒ Filosofia e racionalidade argumentativa
UNIDADE 1 ‒ Argumentação e lógica formal

CAPÍTULO 1 ‒ Noções elementares de lógica (2-10)

CAPÍTULO 2 ‒ Percurso A – A lógica aristotélica (11-25)

UNIDADE 2 ‒ Argumentação e retórica

CAPÍTULO 1 ‒ O discurso argumentativo: diversos tipos de argumentos (45-53)

CAPÍTULO 2 ‒ O discurso argumentativo: mais algumas falácias informais (54-69)

CAPÍTULO 3 ‒  A retórica e a procura da adesão do auditório (70-70)

CAPÍTULO 4 ‒ Argumentação e filosofia (71-82)


MÓDULO 4 ‒ O conhecimento e a racionalidade científico-tecnológica
UNIDADE 1 ‒ Descrição e interpretação da atividade cognoscitiva

CAPÍTULO 1 ‒ O que é o conhecimento (83-93)

CAPÍTULO 2 ‒ Análise comparativa de duas teorias do conhecimento: o racionalismo de Descartes (94-109)

CAPÍTULO 3 ‒ Análise comparativa de duas teorias do conhecimento: O empirismo de David Hume (110-132)

UNIDADE 2 ‒ O conhecimento científico

CAPÍTULO 1 ‒ Conhecimento vulgar e conhecimento científico (133-133)

CAPÍTULO 2 ‒ Ciência e construção: validade e verificabilidade das hipóteses (134-144)

CAPÍTULO 3 ‒ Racionalidade e objetividade da ciência (145-169)

MÓDULO 3
Filosofia e racionalidade argumentativa
UNIDADE 1
Argumentação e lógica formal
CAPÍTULO 1
Noções elementares de lógica


1. O que é a lógica?
A lógica é o estudo da validade dos argumentos.
2. Que tipos de validade existem?
Há, em termos gerais, dois grandes tipos de validade: a validade dedutiva e a validade não dedutiva.
3. O que as distingue?
A validade dedutiva de um argumento depende exclusivamente da sua forma lógica. A validade não dedutiva não depende unicamente da forma lógica, mas também do conteúdo e do contexto da argumentação.
4. A que tipo de argumentos estão associados estes tipos de validade?
A validade dedutiva está associada aos argumentos dedutivos. A validade não dedutiva está associada aos argumentos não dedutivos, como é o caso dos argumentos indutivos, por analogia, e de outros que iremos estudar.
5. O que é um argumento dedutivamente válido?
É um argumento em que a verdade das premissas – suposta, imaginada ou de facto – implica a verdade da conclusão. Esta é uma consequência lógica daquelas.
6. Em que condições podemos considerar que um argumento não dedutivo é válido?
Um argumento não dedutivo é válido quando: 1. A verdade das premissas torna mais provável do que improvável a verdade da conclusão e 2. A verdade das premissas é relevante para que aceitemos a conclusão.
7. O que são argumentos?
Os argumentos são inferências em que certas proposições denominadas premissas visam defender, apoiar ou sustentar a verdade de uma outra – a conclusão.
8. Como são constituídos os argumentos?
Os argumentos são constituídos por uma determinada ligação entre proposições.
9. O que são proposições?
As proposições são ideias ou pensamentos expressos através de frases declarativas (atribuem, declaram ou constatam) com sentido que podem ser verdadeiras ou falsas, isto é, que têm valor de verdade.
10. O que distingue os argumentos das proposições?
Apenas as proposições podem ser verdadeiras (ou falsas); apenas os argumentos podem ser válidos (ou inválidos). Em lógica, é incorreto dizer que um argumento é verdadeiro ou que uma proposição é válida.


EXERCÍCIOS
I
Das frases a seguir apresentadas, indique, se for o caso, as que exprimem proposições. Justifique a sua resposta.

1. Ó Madonna, não cantas nada!
Proposição. Declara-se que Madonna é má cantora.
2. Portugal já foi alguma vez campeão do mundo de futebol? Não. Nunca.
Proposição. Responde-se à pergunta dizendo que Portugal nunca foi campeão do mundo de futebol.
3. Basta ir ao Brasil uma semana para saber que é um país tropical.
Proposição. Afirma-se que o Brasil é um país tropical, o que é uma frase declarativa, neste caso, verdadeira.
4. Deus me livre!
Não se trata de uma proposição, mas de uma frase exclamativa.
5. Ser rico é ser poderoso.
R.: Proposição. Declara-se que os ricos são poderosos.
6. Os insetos voam e por isso são aves.
Trata-se de um argumento cuja premissa implícita é: Tudo o que voa é ave.
P1 – Tudo o que voa é ave.
P2 – Os insetos voam.
C – Logo, os insetos são aves.
7. Ser artístico implica ser belo.
R.: Proposição. Apesar da partícula «implica» não ser um argumento, diz-se simplesmente que as coisas artísticas são belas.
8. Impostos não! São um roubo!
 Apesar das exclamações, o que se quer dizer é isto: Os impostos são um roubo. É portanto uma proposição.

II
Distinga argumentos de não argumentos.
1. Que enunciados contêm um argumento?
a) César é meu aluno há três anos. Nestes três anos, nada evoluiu. Continua a cometer os mesmos erros.
b) Não somos livres porque algumas vezes não fazemos o que queremos.
c) A maioria dos jovens portugueses pratica sexo sem preservativo. Esse é o resultado de um estudo recente sobre hábitos sexuais dos nossos adolescentes. Não se conhece ainda a reação de entidades governamentais e não governamentais.
A alínea c) é uma descrição de um facto. A alínea a) é um argumento porque se justifica a não evolução de César dizendo que continua a cometer os mesmos erros. A alínea b) é também um argumento porque se justifica a ausência de liberdade afirmando que esta consiste em fazer o que queremos e isso nem sempre acontece.
III
Clarifique os argumentos seguintes.
1.1. Porque todos os crimes são violações da lei, o roubo é uma violação da lei.
 Neste argumento, não temos indicador de conclusão, mas um indicador de premissa («Porque»). A partir desta indicação, podemos reconstituir o argumento na forma clássica ou padrão:
            Premissa: Todos os crimes são violações da lei.
            Premissa: O roubo é um crime.
            Conclusão: Logo, o roubo é uma violação da lei.


1.2. As mulheres grávidas não deviam fumar, dado que o tabaco pode prejudicar o desenvolvimento do feto.
Não temos neste argumento indicador de conclusão, mas indicador de premissa («dado que»). O que está depois deste indicador é a premissa, e o que está antes é a conclusão.
Esquematizando:

Premissa: O tabaco pode prejudicar o desenvolvimento do feto.
Conclusão: Logo, as mulheres grávidas não deviam fumar.

1.3. Trezentas mil pessoas foram ao Rock in Rio, e isso leva-me a pensar que não há crise económica em Portugal.
a)     Qual é a conclusão de este argumento?
«Isso leva-me a pensar» pode traduzir-se pela expressão «Por conseguinte», o que nos indica que a conclusão é «Não há crise económica em Portugal». Uma das premissas está presente e é «300 mil pessoas foram ao Rock in Rio». A outra premissa (subentendida) será «Se 300 mil pessoas foram ao Rock in Rio, então Portugal não está em crise económica». Esta premissa pode formular-se também do seguinte modo: «Um país em que 300 mil pessoas foram ao Rock in Rio não é um país em crise económica».
b) Apresente o argumento.
P 1 ‒ Se 300 mil pessoas foram ao Rock in Rio em Lisboa, então não há crise económica em Portugal.
P 2 – 300 mil pessoas foram ao Rock in Rio em Lisboa.
C – Logo, não há crise económica em Portugal.

1.4. Portugal está em crise económica porque não soube aproveitar o dinheiro que veio da Europa.
a)     Identifique a premissa explícita, a conclusão e a premissa implícita deste argumento.
O indicador «porque» é um indicador de premissa, ou seja, a seguir vem uma premissa, a saber: Portugal não soube aproveitar o dinheiro que veio da Europa. O que se pretende justificar? Que Portugal está em crise económica. Há uma premissa subjacente. Qual? Esta: Se Portugal tivesse sabido aproveitar o dinheiro que veio da Europa, então não estaria em crise económica.

b) Apresente o argumento.
Podemos reconstituir o argumento desta forma:
P 1 ‒ Se Portugal tivesse sabido aproveitar o dinheiro que veio da Europa, então não estaria em crise económica.
P 2 – Portugal não soube aproveitar o dinheiro que veio da Europa.
C – Logo, Portugal está em crise económica.

1.5. Tendo sido tão desorganizados, não admira que tenhamos perdido o jogo.
a)     Identifique a tese defendida.
O que se pretende provar? Pretende-se mostrar por que razão perdemos o jogo. Que razão é apresentada? A desorganização da equipa. Esta será a premissa explícita. A conclusão será: «Perdemos o jogo». Por outras palavras, diz-se Perdemos o jogo porque fomos uma equipa desorganizada. Qual é a premissa subentendida? Esta: Equipas desorganizadas não ganham jogos.
b)     Apresente o argumento.
Eis a reconstituição do argumento:
 P1 – Equipas desorganizadas não ganham jogos.
 P2 – Fomos uma equipa desorganizada.
 C – Logo, perdemos o jogo.
IV

Validade dedutiva e validade não dedutiva
1
Assinale com V ou F as seguintes afirmações:
a) A conclusão de um raciocínio válido tem de ser verdadeira. F
b) Não podemos construir argumentos válidos a não ser com premissas e conclusão de facto verdadeiras. F
c) O objetivo da lógica formal é determinar se entre as premissas e a conclusão há uma relação de consequência lógica e de que depende essa relação. V
d) Um raciocínio pode ser correto, apesar de partir de premissas falsas. V
A conclusão de um argumento pode ser uma consequência lógica das premissas, mesmo que as premissas sejam falsas.
e) O conceito de validade diz respeito à relação que se estabelece entre as proposições do argumento e a realidade factual. F
Falso, porque é isto que carateriza o conceito de verdade.
f) A verdade ou a falsidade de uma proposição depende da sua relação com a realidade. O mesmo acontece com a validade de um argumento dedutivo. F
g) Quando dizemos que a validade de um argumento dedutivo não depende do conteúdo das proposições que o constituem, estamos a dizer que há argumentos válidos com premissas verdadeiras, argumentos válidos com premissas falsas e argumentos inválidos com premissas verdadeiras. V
h) Para determinar se um argumento é ou não válido, não é relevante que as premissas e a conclusão sejam de facto verdadeiras, mas se, imaginando que as premissas são verdadeiras, se pode ou não deduzir dessas premissas uma conclusão falsa. Se pode, é inválido. Se não pode, não é. V

2
2.1. Podemos dizer que os argumentos são verdadeiros ou falsos?
Não. Os argumentos são válidos ou inválidos, bons ou maus, fracos ou fortes, mas nunca verdadeiros ou falsos. Falsas ou verdadeiras podem ser as premissas ou a conclusão, ou seja, as proposições que constituem o argumento.
2.2. Em que consiste a validade de um argumento?
 A validade de um argumento tem a ver com a relação entre o valor de verdade das premissas e o valor de verdade da conclusão. Em termos gerais, a validade de um argumento significa que as premissas sustentam e apoiam logicamente a conclusão.
2.3. Em termos gerais, de que tipos de validade podemos falar?
Há, em termos gerais, dois tipos de validade: a validade própria dos argumentos dedutivos e a validade caraterística dos argumentos não dedutivos.
2.4. O que são argumentos dedutivos?
São argumentos cuja validade depende exclusivamente da sua forma lógica.
2.5. O que são argumentos não dedutivos?
São argumentos cuja validade não depende unicamente da sua forma lógica.
2.6. O que carateriza um argumento dedutivamente válido?
Um argumento dedutivamente válido é um argumento com a seguinte caraterística:
Se as premissas forem verdadeiras, então a conclusão também tem de ser verdadeira.
Por outras palavras, se, por exemplo, for verdade que todos os portugueses gostam de cerveja e se for verdade que Miguel é português, então segue-se necessariamente das premissas apresentadas que é verdade que Miguel gosta de cerveja.
Para avaliar a validade de um argumento dedutivo, não importa saber se as premissas ou a conclusão são de facto verdadeiras. O que importa é saber se, supondo ou imaginando que as premissas são verdadeiras, a conclusão pode ser considerada uma consequência necessária das premissas.
2.7. O que é a validade dedutiva?
É a qualidade de um argumento em que é logicamente impossível as premissas serem verdadeiras e a conclusão ser falsa.
2.8. Um argumento pode ser dedutivamente válido tendo premissas e conclusão falsas?
Sim. Ex.: Um mês tem 365 dias.
 Um ano tem 31 dias
 Logo, um mês é maior do que um ano.
2.9. Um argumento dedutivo pode ser inválido tendo premissas e conclusão verdadeiras?
Sim.
Ex.: Bocelli é um cantor.
 Todos os tenores são cantores.
 Logo, Bocelli é italiano.

2.10. Será que o argumento seguinte dedutivamente válido? Justifique.
  Todos os portugueses são filósofos.
Barak Obama é português.
Logo, Barak Obama é filósofo.
R.: É válido. Apesar de as premissas e a conclusão serem falsas, verificamos que as premissas implicam a conclusão, ou seja, esta segue-se daquelas. Dadas as premissas, a conclusão só pode ser esta. Deriva necessariamente das premissas. Se assumirmos que não há português que não seja filósofo, assumir que Barak Obama é português implica que é filósofo.
3
Mostre se os seguintes argumentos são dedutivamente válidos, ou seja, se as premissas obrigam a aceitar a conclusão.

3.1. Dado que Miguel é «Peixes», segue-se que nasceu em março.
Argumento dedutivamente válido porque a conclusão é suportada pelas premissas, seguindo-se dela sem margem para dúvidas.
Todos os nativos do signo «Peixes» nasceram em março. Miguel é nativo do signo «Peixes». Logo, Miguel nasceu em março.
3.2. As estatísticas revelam que 86% das pessoas que se vacinam contra a gripe não a contraem. João vacinou-se contra a gripe há dois meses. Logo, João ficará imune à gripe que agora atinge tanta gente.
Este argumento não é dedutivamente válido porque parte-se da premissa de que algumas (muitas mas não todas) pessoas que se vacinam contra a gripe não a contraem. Do facto de João se ter vacinado pode inferir-se que provavelmente não será afetado por essa doença, mas as premissas não garantem absolutamente a verdade da conclusão. Só seria dedutivamente válido se a premissa inicial dissesse: «Todo aquele que se vacina contra a gripe não a contrai».
3.3. Esta caixa registadora contém mais de 50 moedas. Dez moedas tiradas ao acaso tinham datas anteriores a 1945. Logo, as moedas da caixa terão datas anteriores a 1945.
É provável que as moedas tenham datas anteriores a 1945, mas pode também haver nessa caixa moedas posteriores a 1945. O que é verdade no que respeita a dez moedas não é necessariamente verdadeiro para as restantes. O raciocínio generaliza uma observação que nada garante não poder ser desmentida por observações posteriores. Não há qualquer necessidade lógica na passagem das premissas à conclusão. As premissas não obrigam a aceitar a conclusão. Por isso, não é um raciocínio dedutivamente válido.
3.4. Os dois argumentos seguintes são dedutivamente válidos?
1
2
José Saramago e António Lobo Antunes são escritores famosos.
Logo, José Saramago é um escritor famoso.
José Saramago e António Lobo Antunes são arquitetos famosos.
Logo, José Saramago é um arquiteto famoso.

Os dois argumentos são válidos. A validade do segundo não é afetada pelo facto de, ao contrário do primeiro, ser constituído por proposições falsas. Imaginando um mundo em que Saramago e Lobo Antunes fossem arquitetos, a premissa seria verdadeira e daí seguir-se-ia que a conclusão teria de ser verdadeira. Tendo a mesma forma dedutivamente válida, os dois argumentos são válidos ou as duas formas argumentativas são válidas.
                                                                  MÓDULO 3
Filosofia e racionalidade argumentativa
UNIDADE 1
Argumentação e lógica formal
CAPÍTULO 2
Percurso A – A lógica aristotélica

1. O que é um silogismo categórico?
É um argumento dedutivo formado por três proposições que afirmam ou negam algo sem restrições, ou seja, incondicionalmente.
2. Que termos o constituem?
O silogismo categórico é formado por três termos: maior, médio e menor.
3. O que distingue o termo médio do termo maior?
O termo médio só pode ocorrer nas premissas, ao passo que o termo maior aparece numa das premissas e é predicado na conclusão.
4. O que distingue o termo médio do termo menor?
O termo médio só pode ocorrer nas premissas, ao passo que o termo menor aparece numa das premissas e é sujeito na conclusão.
5. Que tipo de proposições podem surgir num silogismo categórico?
Num silogismo categórico, podem surgir quatro tipos de proposições: universais afirmativas (A), particulares afirmativas (I), universais negativas (E) e particulares negativas (O).
6. O que significa dizer que um termo está distribuído? O que significa dizer que não está distribuído?
Quando um termo está tomado em toda a sua extensão, dizemos que está distribuído ou que tem extensão universal. Quando um termo está tomado em parte da sua extensão, dizemos que não está distribuído ou que tem extensão particular.
7. Nas proposições de tipo A, I, E e O, como estão distribuídos o sujeito e o predicado?
Numa proposição universal afirmativa, o sujeito está distribuído ou é universal, mas o predicado é particular (não está distribuído). Numa proposição universal negativa, o sujeito está distribuído ou é universal, e o predicado também (está distribuído). Numa proposição particular afirmativa, o sujeito não está distribuído e o predicado também não. Numa proposição particular negativa, o sujeito não está distribuído, mas o predicado está.

SILOGISMO CATEGÓRICO
PROPOSIÇÕES TÍPICAS DO SILOGISMO CATEGÓRICO

PM – Todos os portugueses são europeus.
Pm – Todos os alentejanos são portugueses.
C – Logo, todos os alentejanos são europeus.
Termo médio portugueses (termo das duas premissas).
Termo maior – europeus (predicado da conclusão. Acompanha o termo médio na premissa maior, que lhe deve o nome).
Termo menor – alentejanos (sujeito da conclusão. Acompanha o termo médio na premissa menor, que lhe deve o nome).


Tipo A – Universal afirmativa.
Todos os portugueses são europeus.
Tipo E – Universal negativa.
Nenhum alemão é português.
Tipo I – Particular afirmativa.
Alguns animais são mamíferos.
Tipo O – Particular negativa.
 Alguns animais não são mamíferos.

FORMAS VÁLIDAS DO SILOGISMO CATEGÓRICO

1.ª
FIGURA
2.ª
FIGURA
3.ª
FIGURA

4.ª
FIGURA
Modos Válidos

AAA


EAE


AAI


AAI


EAE


AEE


IAI


AEE


AII


EIO


AII


IAI


EIO


AOO


EAO


EAO




EIO


EIO





OAO



Modos fracos

EAO

AAI
AEO

EAO

AEO


Regras para avaliar a validade dos silogismos categóricos


1. Só se admitem três termos e usados sem ambiguidades (a infração a esta regra origina a falácia dos quatro termos ou do equívoco).
2. O termo médio só deve aparecer nas premissas.
3. Os termos maior e menor não podem ter, na conclusão, maior extensão do que nas premissas. Devem estar distribuídos nas premissas se estiverem distribuídos na conclusão, ou seja, não podem ser universais na conclusão e particulares nas premissas (a infração da regra origina a falácia da ilícita maior ou a falácia da ilícita menor).
4. O termo médio deve ter extensão universal – estar distribuído – pelo menos em uma premissa (a infração da regra origina a falácia do termo médio não distribuído).
5. Premissas afirmativas pedem conclusão afirmativa. (De duas premissas afirmativas não se pode tirar conclusão negativa.)
6. De duas premissas negativas nada se pode concluir.
7. De duas premissas particulares nada se pode concluir. (O termo médio não é universal em nenhuma.)
8. A conclusão segue sempre a parte mais fraca: será negativa se houver uma premissa negativa e particular se houver uma premissa particular.













FALÁCIA DOS QUATRO TERMOS
FALÁCIA DA ILÍCITA MAIOR
FALÁCIA DA ILÍCITA MENOR
FALÁCIA DO TERMO MÉDIO NÃO DISTRIBUÍDO
Comete-se esta falácia quando se viola a regra 1: Só pode conter três termos, e cada termo deve ter o mesmo significado ao longo do argumento.
Exemplo desta falácia:
Todos os bancos são instituições financeiras.
Algumas peças de mobiliário são bancos.
Logo, algumas peças de mobiliário são instituições financeiras.
Explicação:
Banco tem dois significados diferentes, pelo que designa dois termos diferentes.
Comete-se esta falácia quando se viola parte da regra 3 referente ao termo maior: O termo maior não deve ter maior extensão na conclusão do que nas premissas (um termo deve estar distribuído nas premissas se estiver distribuído – se for universal – na conclusão).
Exemplo desta falácia:
Todos os cães são mamíferos.
Nenhum gato é cão.
Logo, nenhum gato é mamífero.
Explicação:
Na premissa, mamíferos é predicado de uma afirmativa, pelo que é particular. Na conclusão, é predicado de uma negativa, pelo que é universal. Tem assim mais extensão na conclusão do que na premissa.
Comete-se esta falácia quando se viola parte da regra 3 referente ao termo menor: O termo menor não deve ter maior extensão na conclusão do que nas premissas.
Exemplo desta falácia:
Todos os leões são seres vivos.
Alguns mamíferos não são leões.
Logo, nenhum mamífero é ser vivo.
Explicação:
 Na premissa, mamíferos está quantificado claramente como particular. Alguns é um quantificador particular. Na conclusão, está quantificado como universal, tem mais extensão na conclusão do que na premissa.
Comete-se esta falácia quando se viola a regra 4: O termo médio deve ter extensão universal pelo menos em uma premissa (o termo médio deve estar distribuído pelo menos uma vez).
Exemplo desta falácia:
Todos os tablets são portáteis.
Todos os telemóveis são portáteis.
Logo, todos os telemóveis são tablets.
Explicação:
Portáteis é predicado de duas premissas afirmativas, pelo que é particular em ambas. Devia ser universal pelo menos numa delas.






Notas importantes
 1 – Dizer que um termo está distribuído é dizer que tem extensão universal.
 2 – O termo médio pode ser universal nas duas premissas. O que não pode é ser particular nas duas. Tem de ser universal – estar distribuído – pelo menos numa delas.
3 – O termo maior pode ser universal na premissa e na conclusão. Pode ser também particular na premissa e particular na conclusão. Pode ser igualmente universal na premissa e particular na conclusão. O que não pode é ser particular na premissa e universal na conclusão.
4 – O termo menor pode ser universal na premissa e na conclusão. Pode ser também particular na premissa e particular na conclusão. Pode ser igualmente universal na premissa e particular na conclusão. O que não pode é ser particular na premissa e universal na conclusão.
5 – Nas proposições do tipo E e O – universais negativas e particulares negativas –, o predicado é sempre universal. Nas proposições do tipo A e I – universais afirmativas e particulares afirmativas –, o predicado é sempre particular.

AS FALÁCIAS FORMAIS MAIS IMPORTANTES: AS FALÁCIAS DO TERMO MÉDIO NÃO DISTRIBUÍDO, DA ILÍCITA MAIOR E DA ILÍCITA MENOR
TÉCNICA PARA AS DETETAR
As falácias formais – defeitos na forma do raciocínio – mais importantes na lógica dita aristotélica são estas:


Termo médio não distribuído
Ilícita maior
Ilícita menor
O termo médio não tem extensão universal em nenhuma das premissas.
O termo maior tem mais extensão na conclusão do que na premissa.
O termo menor tem mais extensão na conclusão do que na premissa.

Considere o seguinte silogismo:
Todos os filósofos são pessoas com espírito crítico.
Algumas pessoas com espírito crítico são cientistas.
Logo, alguns cientistas são filósofos.

Perguntemos: Que falácia comete este silogismo?
Comete a falácia da ilícita maior?
Identifiquemos o termo maior. O que define o termo maior é ser o predicado da conclusão. O termo maior é filósofos.
Vejamos qual a sua extensão quer na premissa quer na conclusão. Vemos que na primeira premissa ‒ Todos os filósofos são pessoas com espírito crítico – ele está quantificado universalmente ou tem extensão universal. Está distribuído.
E na conclusão? Na conclusão ‒ Logo, alguns cientistas são filósofos ‒ tem extensão particular. Dizer que alguns cientistas são filósofos equivale a dizer que alguns filósofos são cientistas. Lembre-se que predicado de proposição afirmativa é, regra geral, particular.
Assim, o termo maior – filósofos – é universal na premissa e particular na conclusão. Não se comete portanto a falácia da ilícita maior porque o termo maior não tem mais extensão na conclusão do que na premissa.
Um problema está resolvido. O termo maior passou no teste. Vamos assinalar esse facto a verde.
Todos os filósofos são pessoas com espírito crítico.
Algumas pessoas com espírito crítico são cientistas.
Logo, alguns cientistas são filósofos.

Passemos a outro problema. Comete a falácia da ilícita menor?
Identifiquemos o termo menor. O que define o termo menor é ser o sujeito da conclusão. O termo menor é cientistas.
Vejamos qual a sua extensão quer na premissa quer na conclusão. Vemos que na segunda premissa ‒ Algumas pessoas com espírito crítico são cientistas – ele tem extensão particular. Dizer que algumas pessoas com espírito crítico são cientistas equivale a dizer que alguns cientistas são pessoas com espírito crítico. Lembre-se que predicado de proposição afirmativa é, regra geral, particular.
E na conclusão? Na conclusão ‒ Logo, alguns cientistas são filósofos ‒ tem extensão particular. O quantificador é alguns.
Assim, o termo menor – cientistas – é particular na premissa e particular na conclusão. Não se comete portanto a falácia da ilícita menor porque o termo menor não tem mais extensão na conclusão do que na premissa.
Mais um problema está resolvido. O termo menor passou no teste. Vamos assinalar esse facto a verde.
Todos os filósofos são pessoas com espírito crítico.
Algumas pessoas com espírito crítico são cientistas.
Logo, alguns cientistas são filósofos.

Como se perguntou que falácia comete este silogismo, antevê-se que é a falácia do termo médio não distribuído. É verdade, mas temos de justificar essa afirmação.
Vejamos qual a extensão do termo médio em ambas as premissas. O termo médio é «pessoas com espírito crítico». Na premissa maior é particular porque dizer que todos os filósofos são pessoas com espírito crítico equivale a dizer que algumas pessoas com espírito crítico são filósofos. Lembre-se que predicado de proposição afirmativa é, regra geral, particular.
Na premissa menor, o quantificador alguns indica-nos que o termo médio – pessoas com espírito crítico – está quantificado particularmente, tem extensão particular.
Assim, vemos que o termo médio é particular em ambas as premissas. Ora, devia ser universal pelo menos em uma. Este silogismo é inválido ou falacioso. O termo médio não está distribuído ou não tem extensão universal em nenhuma premissa.
O termo médio não passou no teste. Assinalemos esse facto a vermelho.
Todos os filósofos são pessoas com espírito crítico.
Algumas pessoas com espírito crítico são cientistas.
Logo, alguns cientistas são filósofos.
O termo médio pode ser universal nas duas premissas. O que não pode é ser particular nas duas. Tem de ser universal – estar distribuído – pelo menos em uma delas

EXERCÍCIOS
ATIVIDADE 1
1. Considere o seguinte silogismo:
Todos os poemas são obras literárias.
Todos os sonetos são poemas.
Logo, todos os sonetos são obras literárias.
1.1. De que tipo de silogismo se trata? Porquê?
Trata-se de um silogismo categórico porque é um argumento dedutivo constituído por proposições que, neste caso, afirmam algo sem restrições ou condições. O silogismo categórico tem e só deve ter três termos: maior, médio e menor.
1.2. Identifique o termo médio. Justifique.
O termo médio é poemas porque se repete nas premissas e estabelece a ligação entre os dois outros termos.
1.3. Identifique o termo maior. Justifique.
O termo maior é obras literárias porque é o predicado da conclusão.
1.4. Identifique o termo menor. Justifique.
 O termo menor é sonetos porque é o sujeito da conclusão.

2. O que distingue as proposições de tipo A das proposições de tipo E?
Nas proposições de tipo E – universais negativas –, nega-se um determinado predicado a todos os membros da classe representada pelo sujeito. Nas proposições de tipo A – universais afirmativas –, atribui-se um determinado predicado a todos os membros da classe representada pelo sujeito, ou seja, afirma-se que esse predicado convém a toda a classe representada pelo sujeito.
3. O que distingue as proposições de tipo O das proposições de tipo I?
Nas proposições de tipo O – particulares negativas –, nega-se um determinado predicado a alguns membros da classe representada pelo sujeito. Nas proposições de tipo I – particulares afirmativas –, atribui-se um determinado predicado a alguns membros da classe representada pelo sujeito.

6. O que significa colocar as proposições do silogismo categórico na forma-padrão?
Colocar as proposições do silogismo categórico na forma-padrão significa dar às proposições a seguinte estrutura:
quantificador...... sujeito....... cópula ...... predicado.

7. Dê um exemplo.
Ex.: A – Proposição que não se encontra na forma-padrão:
Não há português que não seja patriota.
B – Proposição colocada na forma-padrão:
Todos os portugueses são patriotas.
Todos é o quantificador. Portugueses é o sujeito. São é a cópula. Patriotas é o predicado.
ATIVIDADE 2
1. Como se descobre a extensão do predicado – se é particular ou universal – de uma proposição quando essa extensão não está explicitada?
Quando o predicado de uma proposição não está explicitamente quantificado, aplicam-se as seguintes regras de descoberta da sua extensão:
a) o predicado de uma proposição afirmativa é particular;
b) o predicado de uma proposição negativa é universal.
Nas proposições – na forma canónica ou padrão – do silogismo categórico, só o sujeito está explicitamente quantificado, dado que é imediatamente antecedido por um quantificador (Todos, Alguns, Nenhuns). O predicado não está explicitamente quantificado, pelo que a sua extensão tem de ser explicitada. Note-se que estas regras não valem para o caso das definições essenciais.

2. Coloque as proposições seguintes na forma-padrão do silogismo categórico e explicite a extensão do predicado.
2.1. Não há português que seja espanhol.
Forma-padrão: Nenhum português é espanhol. Predicado de uma negativa é universal. Se nenhum português é espanhol, todos os espanhóis são excluídos da classe dos portugueses.

2.2. O que é cetáceo é igualmente mamífero.
Forma-padrão: Todos os cetáceos são mamíferos. O termo predicado – mamíferos – é particular porque predicado de afirmativa é particular. Alguns dos mamíferos são cetáceos, mas nem todos os mamíferos o são, como é o caso dos seres humanos.

2.3. Ser europeu não é uma caraterística de quem nasceu no Canadá.
Forma-padrão: Nenhum canadiano é europeu. O termo predicado – europeu – é universal porque predicado de negativa é universal. Se nenhum canadiano é europeu, todos os europeus são excluídos da classe dos canadianos.

2.4. Há pessoas que são ambiciosas e ao mesmo tempo invejosas.
 Forma-padrão: Algumas pessoas ambiciosas são invejosas. O termo predicado – invejosas – é particular porque predicado de afirmativa é particular. Algumas pessoas invejosas são também ambiciosas.

2.5. Se é canadiano então é norte-americano.
Forma-padrão: Todos os canadianos são norte-americanos. O termo predicado (norte-americanos) é particular porque predicado de afirmativa é particular. Alguns dos norte-americanos são canadianos, mas nem todos o são, como é o caso dos habitantes dos Estados Unidos da América. Se todos os canadianos são norte-americanos, nem todos estes são canadianos.

2.6. Existem europeus que são protestantes.
Forma-padrão: Alguns europeus são protestantes. O termo predicado – protestantes – é particular porque predicado de afirmativa é particular. Se ser protestante é caraterística de alguns europeus, ser europeu é caraterística de alguns protestantes.

2.7. É próprio de um triângulo ser um polígono de três lados.
Forma-padrão: Todos os triângulos são polígonos de três lados. Aqui temos uma exceção porque se trata de uma definição explícita e essencial. O termo predicado – polígonos de três lados – é universal porque é suficiente e necessário ser polígono de três lados para ser triângulo. Todos os triângulos são polígonos de três lados, e todos os polígonos de três lados são triângulos. Quer o termo sujeito quer o termo predicado são universais.

2.8. Só há gatos que não têm asas.
Forma-padrão: Nenhum gato é alado. O termo predicado – alado – é universal porque predicado de negativa é universal. Se nenhum gato é alado, todos os animais que têm asas – alados – são excluídos da classe dos gatos.

2.9. Ninguém é sábio, exceto se for inteligente.
Forma-padrão: Todos os sábios são inteligentes. O termo predicado – inteligentes – é particular porque predicado de afirmativa é particular. Se ser inteligente é caraterística de todos os sábios, nem todos os inteligentes são sábios.


III
ATIVIDADES DE AVALIAÇÃO DE SILOGISMOS CATEGÓRICOS

ATIVIDADE 1
Corrija os silogismos seguintes.
1. Todo o touro tem chifres.
Touro é um signo.
Logo, um signo tem chifres.
Silogismo inválido – falácia dos quatro termos – porque touro é um conceito com dois significados distintos: animal e signo.
Correção possível:
Todo o touro é animal que tem chifres.
Lampeiro é um touro.
Logo, Lampeiro é animal que tem chifres.

2. Todos os mortais são humanos.
 Todos os humanos são psicólogos.
 Todos os psicólogos são mortais.
O termo menor psicólogos tem extensão universal na conclusão e particular na premissa, dado que é predicado de uma proposição afirmativa. Por outras palavras, está distribuído na conclusão, mas não está na premissa. Comete-se a falácia da ilícita menor.
Correção possível:
Todos os humanos são mortais.
Todos os psicólogos são humanos.
Logo, todos os psicólogos são mortais.

3. Todos os cães são animais.
Todos os gatos são animais.
Logo, todos os cães são gatos.
O termo médio como predicado de duas afirmativas é particular. Não sendo tomado em toda a sua extensão (não sendo universal), não está distribuído em nenhuma das premissas. Comete-se, pois, a falácia do termo médio não distribuído.
Correção possível:
Todos os animais são cães.
Todos os gatos são animais.
Logo, todos os gatos são cães.

ATIVIDADE 2
Coloque os silogismos categóricos seguintes na forma-padrão, corrija-os de modo a torná-los válidos e identifique a sua figura e modo.
1. Qualquer virtuoso é justo.
Não há virtuosos que não sejam altruístas.
Logo, todos os altruístas também são justos.
Forma-padrão: Todos os virtuosos são justos. Todos os virtuosos são altruístas. Logo, todos os altruístas são justos.
O silogismo é inválido porque ocorre a falácia da ilícita menor. O termo altruístas na conclusão está distribuído e não está distribuído na premissa menor. A correção origina um silogismo de 3.ª figura, modo AAI:
Todos os virtuosos são justos. Todos os virtuosos são altruístas. Logo, alguns altruístas são justos.
2. Nem um único ditador é virtuoso.
Os opositores à liberdade são ditadores.
Logo, os opositores à liberdade são virtuosos.
Forma-padrão: Nenhum ditador é virtuoso. Todos opositores à liberdade são ditadores. Logo, todos os opositores à liberdade são virtuosos.
Silogismo inválido porque não segue a parte mais fraca. A conclusão tem de ser negativa. A correção dá origem a um silogismo de 1.ª figura, modo EAE.
Nenhum ditador é virtuoso. Todos opositores à liberdade são ditadores. Logo, nenhum opositor à liberdade é virtuoso.

3. O justo é virtuoso.
Determinados homens são virtuosos.
Logo, qualquer homem é justo.
Forma-padrão: Todo o justo é virtuoso. Alguns homens são virtuosos. Logo, todo o homem é justo.
Silogismo inválido porque, mais uma vez, não segue a parte mais fraca (falácia da ilícita menor). A correção fornece-nos um silogismo de 2.ª figura, modo AOO:
Todo o justo é virtuoso. Alguns homens não são virtuosos. Logo, alguns homens não são justos.
4. Os céticos moderados não são dogmáticos.
 Alguns dogmáticos são filósofos.
Logo, existem filósofos que são céticos moderados.
Forma-padrão:
Nenhum cético moderado é dogmático. Alguns dogmáticos são filósofos. Logo, alguns filósofos são céticos moderados.
Silogismo inválido porque não segue a parte mais fraca. Corrigido, dá origem a um silogismo de 4.ª figura, modo EIO:
Nenhum cético moderado é dogmático. Alguns dogmáticos são filósofos. Logo, alguns filósofos não são céticos moderados.

ATIVIDADE 3
Identifique as falácias cometidas nos silogismos seguintes.
1. Todos os céticos são críticos.
 Nenhum cético é dogmático.
 Logo, nenhum dogmático é crítico.
Falácia da ilícita maior. O termo maior surge distribuído na conclusão, enquanto na premissa maior, como predicado de uma proposição de tipo A, tem extensão particular.

2. Todos os filósofos são indivíduos problematizadores.
Alguns indivíduos problematizadores são cientistas.
Logo, alguns cientistas são filósofos.
Falácia do termo médio não distribuído. O termo médio indivíduos problematizadores em ambas as premissas tem uma extensão particular.

3. Os céticos moderados são céticos.
Alguns céticos são céticos radicais.
Logo, os céticos radicais são céticos moderados.
Falácia da ilícita menor. O termo menor (céticos radicais) surge não distribuído na segunda premissa e está distribuído na conclusão.

4. Alguns filósofos da ciência são falsificacionistas.
Qualquer popperiano é falsificacionista.
Logo, todos os popperianos são filósofos da ciência.
Falácia do termo médio não distribuído. O termo médio (falsificacionista), enquanto predicado de proposições afirmativas, tem sempre extensão particular.

5. Todos os socialistas são democratas.
Algumas pessoas são socialistas.
Logo, todas as pessoas são democratas.
O silogismo é inválido e comete a falácia da ilícita menor, dado que o termo menor (pessoas) não está distribuído na premissa e surge distribuído na conclusão.

6. Os racionalistas são defensores da supremacia da razão.
Nenhum racionalista é empirista.
Logo, nenhum empirista é defensor da supremacia da razão.
O silogismo é inválido e comete a falácia da ilícita maior, porque o termo maior (defensores da supremacia da razão) não está distribuído na premissa maior e está distribuído na conclusão.


MÓDULO 3
Filosofia e racionalidade argumentativa
UNIDADE 2
Argumentação e retórica
CAPÍTULO 1
O discurso argumentativo: diversos tipos de argumentos

1. O que distingue essencialmente um argumento dedutivo de um argumento não dedutivo?
Os argumentos dedutivos são argumentos cuja forma lógica é decisiva para avaliarmos a sua validade. São argumentos cuja forma garante a verdade da conclusão, no caso de as premissas serem também verdadeiras. Os argumentos não dedutivos são argumentos cuja forma lógica não é decisiva para avaliarmos a sua validade. São argumentos em que da verdade das premissas não implica a verdade da conclusão.

2. Quais são os principais tipos de argumentos não dedutivos?
Os principais tipos de argumentos não dedutivos são os argumentos indutivos (generalizações e previsões), os argumentos por analogia e os argumentos de autoridade.

3. O que são argumentos indutivos?
São argumentos cuja validade depende de outros fatores (contexto e conteúdo) que não simplesmente a sua forma lógica.

4. O que significa dizer que um argumento indutivo é válido?
Quem aceita que se possa chamar válidos aos argumentos indutivos afirma que um argumento indutivo é válido quando a verdade das premissas nos dá boas razões para considerar mais provável do que improvável a verdade da conclusão sem que isso exclua a possibilidade de ser falsa.

5. A validade indutiva admite graus? O que significa isso?
Considera-se que sim. Isso significa que um argumento indutivo válido pode ser mais forte ou mais persuasivo do que outro argumento indutivo válido. Como a relação entre a verdade das premissas e a verdade é de probabilidade, esta assume graus. A probabilidade de a conclusão ser verdadeira é em alguns argumentos indutivos superior à de outros. O que todos têm em comum é que nenhum garante absolutamente a verdade da conclusão. São argumentos de risco ou em que o risco de erro ou engano não pode ser completamente eliminado, mas unicamente controlado. Com efeito, a conclusão baseia-se em premissas que lhe conferem simplesmente um maior ou menor grau de probabilidade.

6. O que são generalizações?
São argumentos indutivos que consistem em tornar extensível a toda uma classe de objetos ou de seres uma caraterística (ou caraterísticas) observada num determinado número de casos considerados representativos. Convém evitar generalizações precipitadas. Devemos avaliar se as premissas que apoiam as nossas conclusões são suficientemente fortes para isso.

7. O que são previsões?
São argumentos indutivos em que se conclui algo acerca de um acontecimento futuro com base numa amostra considerada representativa.

8. O que são argumentos por analogia?
São argumentos que concluem que coisas diferentes, por serem semelhantes em certos aspetos, sê-lo-ão também noutros. Para que um argumento por analogia seja aceitável, deve cumprir duas condições: 1) Os objetos comparados têm de ser semelhantes nos aspetos relevantes e 2) O número de semelhanças entre os objetos comparados tem de ser significativo.

9. O que são argumentos de autoridade?
São argumentos que defendem a verdade de uma certa conclusão porque uma autoridade num dado assunto (uma ou várias pessoas, uma ou várias instituições) sustenta que ela é verdadeira. Para que este tipo de argumento seja aceitável, deve respeitar as seguintes condições: 1. A autoridade invocada tem de ser de facto um especialista reconhecido na matéria; 2. Não devem existir divergências significativas entre os especialistas sobre o assunto em causa; 3. As opiniões de quem é reconhecido como autoridade não devem ser condicionadas por interesses pessoais.

EXERCÍCIOS
1
Considere as afirmações seguintes e analise-as criticamente.
1.1. A lógica formal e a lógica informal podem contradizer-se: a segunda pode aprovar o que a primeira rejeita.
Não se trata de contradição, mas de complementação. Se a lógica dedutiva diz que o argumento é inválido, diz apenas que ele nunca poderá garantir a sua conclusão; dizer se, apesar de inválido, o argumento pode apoiar a conclusão é tarefa da lógica informal.

1.2. A lógica informal é necessária porque só o concreto, a experiência, pode garantir que as ideias estão bem relacionadas.
Só a lógica formal, dedutiva, pode garantir que as ideias estão bem relacionadas (supondo que estamos a falar de relações lógicas e não, por exemplo de «boas relações estéticas»). Argumentos baseados na experiência poderão fortalecer relações entre ideias, mas não as garantem. A necessidade da lógica informal tem de ser explicada de outra maneira, referindo a necessidade de abranger todo o campo da argumentação, considerando também os argumentos que de um ponto de vista dedutivo são ditos inválidos, mas que podem dar razões plausíveis para aceitar a conclusão.

1.3. A lógica forma é inútil por ser abstrata, não se ocupa de contextos práticos.
A lógica dedutiva não se ocupa de contextos práticos particulares porque se ocupa das regras gerais da validade que se aplicam… a todos os contextos práticos. É nesse sentido que é abstrata. Mesmo em contextos em que a lógica informal é mais relevante, o raciocínio dedutivo é indispensável. Basta notar que o raciocínio ou argumento com que aplicamos uma regra ou padrão informal a um argumento é ele mesmo um modus ponens. A analogia com a aritmética pode ser esclarecedora: a matemática não se ocupa de maçãs porque se ocupa de operações que fazemos com maçãs, laranjas, moedas…

2. Apresente um caso de argumento que possa ser usado para refutar a ideia de que a lógica formal esgota o domínio da argumentação.
Pode apresentar-se um argumento que, apesar de dedutivamente inválido, é bom de um ponto de vista indutivo. A resposta pode ser dada na base de uma crença simples como a de que «beber esta água não me vai fazer mal», desde que se faça acompanhar de razões (indícios) de que a situação em que a água vai ser bebida nada tem de anormal.

2
Assinale com verdadeiro (V) ou falso (F).
a) Argumentos em que a conclusão pode ser falsa, apesar de as premissas serem verdadeiras, denominam-se argumentos dedutivos. (F). Esta é uma forma de caraterizar os argumentos indutivos.
b) Damos o nome de argumentos indutivos aos argumentos cujas premissas podem tornar provável a conclusão, mas não asseguram a sua verdade. (V)
c) Apesar de não serem dedutivamente válidos, os argumentos indutivos podem ser bons. Um bom argumento indutivo é aquele em que as razões apresentadas (premissas) dão força à nossa crença de que a conclusão é verdadeira. Quando as premissas tornam pouco provável a verdade da conclusão, não estamos perante um bom argumento indutivo. (V)
d) Ao contrário dos argumentos dedutivos, os argumentos indutivos são argumentos de risco ou em que o risco de erro ou engano não pode ser completamente eliminado, mas unicamente controlado. Com efeito, a conclusão baseia-se em premissas que lhe conferem simplesmente um maior ou menor grau de probabilidade. (V)
f) Os argumentos indutivos são uma espécie de argumentos informais porque a verdade das premissas (ou da premissa) e a sua forma lógica não são suficientes para assegurar a verdade da conclusão. (V)
g) No caso dos argumentos indutivos, a validade não se baseia numa ligação necessária entre as premissas e a conclusão, pelo que a verdade desta é apenas provável. (V)

3
Responda às questões seguintes
3.1. Que tipo de argumentos indutivos estudou?
Os argumentos indutivos estudados foram a generalização e a previsão.

3.2. Defina indução por generalização. Exemplifique.
A indução por generalização consiste em tornar extensível a toda uma classe de objetos ou de seres uma caraterística (ou caraterísticas) observada num determinado número de casos considerados representativos. É o caso do raciocínio seguinte:
Todos os corvos observados até hoje são pretos. Logo, todos os corvos são pretos.
3.3. O que é um argumento por analogia? Exemplifique.
A analogia é um tipo de argumento informal que se baseia em comparações. Tira-se uma conclusão acerca de uma coisa (A) comparando-a com outra (B). Exemplo:
Os Mercedes são semelhantes aos BMW. Os Mercedes têm a caraterística de serem seguros. Logo, os BMW são carros seguros.
O princípio no qual se baseia o argumento por analogia é este: dados dois objetos ou entidades semelhantes (A e B), o que se diz ser verdade para A também é verdade para B.
3.4. O que são previsões indutivas? Exemplifique.
As previsões indutivas são argumentos em que se afirma o que vai acontecer no futuro a partir de uma amostra considerada representativa. Exemplo:
Todos os corvos até agora observados são negros. Logo, o próximo corvo observado será negro.
3.5. O que são argumentos de autoridade? Exemplifique.
Argumentos de autoridade são argumentos que fornecem como justificação para a conclusão o facto de ela ter sido emitida por uma pessoa ou instituição considerada qualificada na matéria. Exemplo:
A Comissão Europeia considera o Futebol Clube do Porto um exemplo. Logo, o Futebol Clube do Porto é um exemplo.

4
Identifique os seguintes argumentos informais.
1. Bertrand Russell, um reputado lógico, afirmou que os costumes sociais a respeito do sexo fora do casamento são nocivos e opressivos. Portanto, os costumes sociais a respeito do sexo fora do casamento são nocivos e opressivos.
Identifique este tipo de argumento e explique a condição, ou condições, que tem de respeitar para ser um bom argumento do ponto de vista informal.
Argumento de autoridade. Para que este tipo de argumentos seja bom, a autoridade evocada tem de ser, de facto, uma autoridade e não podem existir divergências entre os especialistas acerca da matéria.

2. «De acordo com o meu Epicuro… nada continua a existir depois da dissolução do ser vivo, e no termo “ser vivo” ele incluía tanto o homem como o leão, o lobo, o cão, e todas as outras coisas que respiram. Concordo com tudo isto. Eles comem, nós comemos; eles bebem, nós bebemos; eles dormem, e o mesmo fazemos nós. Eles geram, concebem, dão à luz, e alimentam os seus jovens da mesma forma que os nossos. Eles têm alguma capacidade de raciocínio e de memória, alguns mais do que outros, e nós um pouco mais que eles. Somos como eles em quase tudo; por fim, eles morrem e nós morremos – ambos de forma definitiva.»
Lorenzo Valla, On Pleasure, Nova Iorque, Abaris Books, 1977, pp. 219-221.
Identifique e explique em que consiste o argumento que o texto exemplifica.
Argumento por analogia. Os argumentos por analogia baseiam-se em comparações. Dadas duas entidades ou situações, A e B, com várias caraterísticas semelhantes, da observação de que A tem uma caraterística conclui-se que o mesmo se passa com B.

3. O BCP, O BPI, o BES, a GALP e a PT estão cotados em bolsa. Portanto, todas as grandes empresas portuguesas estão cotadas em bolsa.
Identifique este tipo de argumento e explique a condição (ou condições) que tem de respeitar para ser um argumento bom.
Trata-se de uma generalização por indução. Para que estes argumentos sejam bons, a amostra expressa pela premissa deve ser ampla e representativa.

4. «Podemos verificar que existe uma grande semelhança entre a Terra que habitamos, e os outros planetas, Saturno, Júpiter, Marte, Vénus e Mercúrio. Como a Terra, todos giram em torno do Sol, embora a distâncias e períodos diferentes. Como a Terra, recebem toda a sua luz do Sol. Como a Terra, vários rodam em torno do seu eixo e, desse modo, têm também a sucessão dos dias e das noites. Alguns têm luas, que servem para lhes dar luz na ausência do Sol, como a nossa Lua faz para nós. Como a Terra, estão todos, nos seus movimentos, sujeitos à mesma lei da gravitação universal. Com base nestas semelhanças não é irracional pensar que esses planetas, como a nossa Terra, sejam habitados por vários tipos de criaturas vivas.»
Thomas Reid, Essays on the Intellectual Powers of Man, Cambridge, John Bartlett, 1850, p. 16.
Identifique este tipo de argumento e explique a condição (ou condições) que tem de respeitar para ser um bom argumento do ponto de vista informal.
Este argumento é um argumento por analogia. Para que um argumento por analogia seja bom, deve cumprir três condições: 1) a amostra deve ser suficiente (quanto maior o número de objetos comparados maior a força do argumento); 2) o número de semelhanças deve ser suficiente (a força da analogia cresce com o aumento do número de semelhanças verificadas); 3) as semelhanças verificadas devem ser relevantes.

5. No Dictionary of Philosophy, Anthony Flew define «logicismo» como o ponto de vista segundo o qual a «matemática, e em particular a aritmética, faz parte da lógica». Portanto, o logicismo é isso.
Identifique este tipo de argumento e explique as condições que tem de respeitar para ser um argumento bom.
É um argumento de autoridade. Para que este tipo de argumento seja bom, deve respeitar as seguintes condições: as fontes devem ser autoridades na matéria e não pode haver discordância entre elas.

6. A esmagadora maioria das nozes deste saco que parti até agora estava estragada. Portanto, a próxima noz que tirar do saco também estará estragada.
Identifique e explique em que consiste o argumento que o texto exemplifica.
Este argumento é uma previsão indutiva. A partir de uma amostra considerada representativa, tira-se uma conclusão acerca de um acontecimento futuro.

5
Identifique a falácia cometida e elabore uma breve crítica
1. Augusto eliminou as dores com o comprimido X. Logo, se eu tomar comprimidos X, também as dores me vão passar.
Trata-se de um argumento por analogia (uma previsão por analogia). Parece que o argumentador apenas se baseou em duas semelhanças entre ele e o Augusto: o facto de ambos serem humanos e o facto de ambos terem dores. Portanto, a analogia falha sob todos os aspetos: o número de objetos comparados, a quantidade de semelhanças apontadas e, sobretudo, a irrelevância das semelhanças apontadas: cada ser humano tem a sua história clínica, as dores podem ter muitas e diferentes causas...
2. Há vários anos que tenho lucro com ações da empresa X. Vou continuar a comprar ações da empresa X e o meu lucro aumentará.
Trata-se de um argumento indutivo com uma amostra pouco lata, mas relevante pela relação entre o conteúdo das premissas e o da conclusão. No entanto, omite conhecimentos significativos para avaliar a conclusão, nomeadamente a evolução da empresa X e as tendências gerais da economia e da bolsa. Essa omissão torna o argumento difícil de aceitar.

3. Os subordinados são como os cães: se desde cedo os habituarmos a ordens bastante precisas e irreversíveis e obrigarmos sempre ao seu cumprimento, obedecer torna-se um hábito e, com o hábito, discussões e demoras deixam de existir.
Argumento por analogia que comete a falácia da falsa analogia.

4. «Mas poderá duvidar-se de que o ar tem peso quando temos o claro testemunho de Aristóteles afirmando que todos os elementos, exceto o fogo, têm peso?»
Galileu Galilei reproduzindo o discurso de um aristotélico.
Apelo a autoridade não qualificada, melhor dizendo, apelo não apropriado à autoridade. Há métodos científicos para resolver o problema e, por mais genuíno que tenha sido o génio científico de Aristóteles, numerosos também foram os seus erros (nada escandalosos numa fase de fraco desenvolvimento tecnológico). Mais do que isso: o confronto com os factos não pode ser substituído pelo que alguém, por mais renome que tenha, afirmou acerca dos elementos (terra, água, ar e fogo).
5. Deve haver algo de errado nesta teoria indeterminista defendida pelos partidários da mecânica quântica porque o próprio Einstein se lhe opôs dizendo que não podia acreditar que Deus jogava aos dados no que respeita aos fenómenos naturais.
Apelo não apropriado à autoridade. Os especialistas no assunto divergem.
6. O cancro do pulmão verifica-se frequentemente em pessoas que fumam. Logo, fumar é causa do cancro do pulmão.
Que haja uma correlação entre fumar e ter cancro é, hoje em dia, consensual. Mas isto não pode levar-nos a concluir que todos os que fumam têm ou terão cancro do pulmão. A correlação não é necessária. O argumento comete a falácia da generalização apressada ou inadequada.





MÓDULO 3
Filosofia e racionalidade argumentativa
UNIDADE 2
Argumentação e retórica
CAPÍTULO 2
O discurso argumentativo: mais algumas falácias informais

1. O que são falácias informais?
As falácias informais são argumentos em que as premissas não sustentam a conclusão devido sobretudo a deficiências no conteúdo. Por várias razões, que não têm exclusivamente a ver com a estrutura formal do argumento, não conseguem dar razões suficientes para que acreditemos na verdade da sua conclusão. As razões podem ser:
a) As premissas não são relevantes para a conclusão; b) as premissas não fornecem dados suficientes para garantir a conclusão; c) as premissas são formuladas em linguagem ambígua; c) o argumento pode ter premissas falsas; d) as razões que pretendem defender a conclusão não estão adequadas ao contexto da argumentação.

2. O que distingue as falácias informais das falácias formais?
Identificamos uma falácia formal avaliando exclusivamente a forma lógica de um argumento (dedutivo ou, em geral, formal). No caso das falácias informais, não podemos limitar-nos à análise da forma lógica do argumento. As falácias formais devem-se a defeitos na forma lógica. As falácias informais devem-se sobretudo a problemas no conteúdo e desadequação do argumento ao contexto argumentativo.

3. Em que consiste a falácia da petição de princípio?
A falácia da petição de princípio consiste em argumentar utilizando como prova o que se quer provar. A petição de princípio ocorre quando se justifica a conclusão usando a própria conclusão de uma forma mais ou menos disfarçada.

4. Em que consiste a falácia da petição do falso dilema?
A falácia do falso dilema consiste em argumentar apresentando duas alternativas como as únicas existentes, quando na verdade há mais alternativas.

5. Em que condições o apelo à ignorância é falacioso?
O apelo à ignorância é falacioso quando se considera erradamente que uma proposição é verdadeira por não termos provas de que é falsa; ou se considera erradamente que uma proposição é falsa por não termos provas de que é verdadeira.

6. Em que condições um argumento ad hominem é falacioso?
Em geral, atacar a pessoa que defende certas ideias e não as ideias que defende é falacioso. O meio mais frequentemente usado consiste em negar credibilidade à pessoa, julgando assim que as suas opiniões serão com isso refutadas e desvalorizadas.

7. O que carateriza a falácia da derrapagem?
A falácia da derrapagem ou da bola de neve consiste em apoiar a conclusão de um argumento numa série de premissas cuja razoabilidade vai sendo cada vez mais fraca. A conclusão do argumento apoia-se numa alegada cadeia de passos, mas não há razões suficientes para pensar que essa cadeia se verifica. Neste tipo de argumento, premissas apenas prováveis são enunciadas como se fossem certas, escondendo assim o facto de que a conclusão é necessariamente menos provável do que cada uma das suas premissas. Na verdade, a probabilidade de uma série de acontecimentos é sempre menor do que a probabilidade de cada acontecimento.

8. Em que consiste a falácia denominada «boneco de palha»?
 A falácia do «boneco de palha» consiste em distorcer e deturpar as ideias do adversário, julgando-se assim que se podem refutar ou que é mais fácil refutá-las.


Seis falácias informais
Falácia da derrapagem
A conclusão resulta de um suposto e improvável encadeamento de situações.
Ex.: Se és um apreciador de bons vinhos, então depois de um bom copo, beberás outro e outro e mais tarde ou mais cedo tornar-te-ás um alcoólico.
Falácia do falso dilema
Apresentam-se duas alternativas como sendo as únicas, ignorando ou tentando fazer com que se acredite que não há mais alternativas disponíveis.
Ex.: Ou és crente ou és ateu. Se não acreditas na existência de Deus, só posso concluir que és ateu.
Falácia da petição de princípio
Usamos como prova, aquilo que estamos a tentar provar: supõe-se a verdade do que se quer provar, ou seja, provamos a conclusão tendo como premissa a própria conclusão.
Ex.: Não falta ninguém, uma vez que está cá toda a gente.
Falácia do «boneco de palha»
Distorcem-se as ideias do adversário para as atacar mais facilmente. A tese do adversário é deturpada para ser atacada, mas isso significa que se falha o alvo.
Ex.: O João diz que para se protegerem certas espécies os Jardins Zoológicos são importantes. Então mais valia prenderem todos os animais.
Falácia do ataque à pessoa (ad hominem falacioso)
Ataca-se indevidamente a pessoa que defende certas ideias, julgando-se erradamente que isso é atacar as suas ideias.
Ex.: É impossível acreditar no que dizes. Como podes ter uma opinião inteligente sobre o aborto? Não és mulher, pelo que esta é uma decisão que nunca terás de tomar.
Falácia do apelo à ignorância (apelo falacioso à ignorância)
Transforma-se em prova a ausência de prova. Se não provarmos a falsidade de uma afirmação, então ela é verdadeira; se não provarmos a verdade de uma afirmação, então ela é falsa.
Ex.: 1. Ninguém provou que os fantasmas não existem. Logo, existem.
2. Nunca se observaram extraterrestres. Logo, não existem.




EXERCÍCIOS

I
Explique as falácias seguintes e dê exemplos.
1. Petição de princípio.
A petição de princípio ocorre quando, ao argumentarmos a favor de uma dada proposição, usamos essa mesma proposição como premissa, assumindo assim como verdadeiro na premissa o que se pretende provar na conclusão. Exemplo: «[É] absolutamente verdadeiro que se tem de acreditar na existência de Deus porque as Sagradas Escrituras a ensinam e, inversamente, que se tem de acreditar nas Sagradas Escrituras por provirem de Deus.» René Descartes, Meditações sobe Filosofia Primeira, Coimbra, Liv. Almedina, 1976, p. 84.

2. Falso dilema.
Esta falácia ocorre quando uma das premissas de um argumento é uma disjunção e apresenta duas alternativas como se fossem as únicas disponíveis, quando de facto há mais alternativas. Exemplo: Ou diminuímos o orçamento para a educação ou não seremos capazes de cortar a despesa pública. Mas temos forçosamente de diminuir a despesa do Estado. Logo, temos de cortar no orçamento para a educação.

3. Apelo indevido ou falacioso à ignorância.
A falácia do apelo à ignorância ocorre quando se considera uma proposição verdadeira por não haver provas de que é falsa; ou se considera uma proposição falsa por não haver provas de que é verdadeira. Exemplo: Como a ciência foi incapaz de dar uma explicação natural para a remissão do cancro do senhor António, essa remissão é um milagre.
4. Ad hominem (ataque falacioso à pessoa).
A falácia do ataque à pessoa ocorre quando, em vez de atacar o ponto de vista que a pessoa defende, se ataca a própria pessoa. Exemplo: A – A guerra colonial acabou há muito tempo, e as más relações entre Portugal e Angola são prejudiciais para ambos os países. B – Pois, e você ganha uma pipa de massa com a importação de diamantes.
5. Derrapagem (bola de neve ou declive ardiloso)
Esta falácia ocorre quando a conclusão de um argumento se apoia numa alegada cadeia de passos, e não há razões suficientes para pensar que essa cadeia se verifica. Por exemplo, quando, para mostrar que uma proposição, P, é inaceitável, se extrai uma sequência de consequências inaceitáveis de P. O argumento é falacioso quando pelo menos um dos seus passos é falso ou duvidoso. Exemplo: A descriminalização da canábis será apenas o começo. Isso vai conduzir a uma espiral de abuso de drogas fortes como a heroína e a cocaína.
6. Boneco de palha.
 Ocorre quando o orador distorce o ponto de vista do opositor com o propósito de mais facilmente o atacar e, destruindo esse ponto de vista assim distorcido, conclui que o ponto de vista que o seu opositor de facto defende foi refutado. Exemplo: Aquilo que os defensores da eutanásia querem é muito claro. Eles querem poder matar quem esteja muito doente. É por essa a razão me oponho à eutanásia.

II
Complete os espaços em branco.
Considera-se verdadeira uma afirmação porque não se provou que é falsa ou vice-versa. Trata-se do apelo falacioso à ignorância. Distorcem-se as ideias do adversário para se atacarem mais facilmente. Trata-se da falácia do boneco de palha. Consideram-se apenas duas alternativas, embora haja mais. Trata-se da falácia do falso dilema. Usa-se como premissa a própria conclusão. Trata-se da falácia da petição de princípio. Ataca-se a pessoa em vez da ideia que defende. Trata-se da falácia do ataque indevido à pessoa (ad hominem). A conclusão resulta de uma cadeia de passos que é duvidoso que se verifique. É a falácia da derrapagem.
III
Identifique a falácia cometida e selecione a opção correta.
1. Sou contra a pena de morte, porque a pena de morte tira a vida a uma pessoa.
 a) Petição de princípio.
 b) Ad hominem.
 c) Apelo à ignorância.
 d) Boneco de palha.
A conclusão «Sou contra a pena de morte» e a premissa «A pena de morte tira a vida a uma pessoa» expressam a mesma proposição, embora por intermédio de frases diferentes.
2. Ninguém provou a sua inocência. Logo, ela é culpada.
a) Derrapagem.
b) Falso dilema.
c) Apelo à ignorância.
d) Petição de princípio.
Usa-se a ausência de prova como prova.
3. «Quando uma oposição a única coisa que tem a dizer ao governo é que o governo é propaganda, é porque realmente não tem mais nada para dizer.» José Sócrates, TSF.
 a) Ad hominem, porque ataca-se a oposição em vez da tese que esta defende.
 b) Petição de princípio, porque a premissa é a mesma que a conclusão.
 c) Apelo à ignorância, porque do facto de a oposição só ter uma coisa a dizer se conclui que não tem mais nada a dizer.
d) Falso dilema, porque se assume que a oposição só tem duas opções, dizer que o governo é propaganda ou nada dizer, quando há outras opções.
4. Se se legaliza o aborto até às 10 semanas, a seguir legaliza-se o aborto até às 20 semanas. E, se se legaliza o aborto até às 20 semanas, a seguir legaliza-se o aborto até às 30 semanas. E, se se legaliza o aborto até às 30 semanas, a seguir legaliza-se o aborto até imediatamente antes o nascimento. E, se se legaliza o aborto até imediatamente antes o nascimento, a seguir legaliza-se o infanticídio. Logo, não se pode legalizar o aborto até às 10 semanas.
 a) Derrapagem, porque se refuta uma afirmação, derivando delas consequências prováveis mas inaceitáveis.
b) Derrapagem, porque o argumento obriga a aceitar a conclusão.
c) Falso dilema, porque o argumento coloca duas possibilidades como as únicas existentes: legalizar o infanticídio ou legalizar o aborto até às dez semanas.
d) Boneco de palha, porque se distorce o que o opositor defende.
5. O meu professor está sempre a dizer que devemos fazer os trabalhos de casa. Mas, no seu tempo de estudante, ele era o maior «baldas» da escola: nunca fazia o que lhe mandavam e reprovou pelo menos três anos por faltas. Portanto, não faço os trabalhos de casa e não vou à aula.
a) Falso dilema.
b) Boneco de palha.
c) Ad hominem.
d) Derrapagem.
Ataca-se o professor e não aquilo que ele afirma. O comportamento passado do professor é irrelevante para determinar a verdade do que defende.
6. [Sobre Camões] Poeta ou aventureiro? Cartaz publicitário da RTP ao programa «Grandes Portugueses»
 a) Falso dilema, porque as opções não esgotam todas as possibilidades.
b) Apelo à ignorância, porque Camões foi ambas as coisas.
 c) Apelo à ignorância, porque se quer concluir algo sobre Camões a partir da nossa ignorância sobre ele.
d) Falso dilema, porque as alternativas são falsas.
7. Aquilo que os defensores da eutanásia querem é muito claro. Querem poder matar quem esteja muito doente. É essa a razão pela qual me oponho à prática da eutanásia.
 a) Ad hominem, porque apresentam uma objeção irrelevante para atacar o que os defensores da eutanásia dizem.
 b) Falso dilema, porque sugere que tem de se optar entre ser a favor ou contra a eutanásia.
c) Ad hominem, porque atacam os defensores da eutanásia e não aquilo que defendem.
 d) Boneco de palha, porque distorcem a posição dos defensores da eutanásia.

8. A: – A tua decisão viola claramente a lei.
B: – O quê, não me digas que cumpres sempre a lei? És daqueles que nunca anda a mais de 120 na autoestrada? Não me digas que nunca andaste a mais de 120 na autoestrada!
 a) Não incorre em qualquer falácia.
b) Ad hominem.
c) Boneco de palha.
d) Apelo à ignorância.
Ataca-se a pessoa e não o que ela disse.
9. Não há uma ligação clara entre fumar e cancro de pulmão, apesar do que os médicos dizem e de anos de estudos científicos. Portanto, fumar não faz mal aos teus pulmões.
a) Ad hominem.
b) Petição de princípio.
c) Apelo à ignorância.
d) Falso dilema.
A ausência de prova é usada como prova.
10. Se aprovarmos leis contra as armas automáticas, não demorará muito até aprovarmos leis contra todas as armas. E, se aprovarmos leis contra todas as armas, começaremos a restringir os nossos direitos. E, se começarmos a restringir os nossos direitos, acabaremos por viver num Estado totalitário. Portanto, não devemos banir as armas automáticas.
a) Boneco de palha, porque se distorce a posição do opositor de modo a refutá-la mais facilmente.
b) Bola de neve, porque se tenta refutar que se deva aprovar leis contra as armas automáticas derivando daí consequências cada vez mais inaceitáveis.
c) Falso dilema, porque se põe as coisas em termos de ter ou não armas automáticas, quando há outras opções.
d) Apelo à ignorância, porque se pretende esclarecer as pessoas acerca das consequências nefastas da aprovação de leis contra as armas automáticas.


IV
1. Considere os dois argumentos que se seguem.
1. Não está provado que o Pai Natal não existe; logo, o Pai Natal existe.
2. Não está provado que o réu não é culpado; logo, o réu é culpado.



1.1. Trata-se de argumentos dedutivamente válidos?
Não. No caso de 1., não podemos, do facto de a negação da existência do Pai Natal não estar provada, sustentar que essa premissa garante a conclusão. No segundo caso, não provar a culpa do réu não garante que este seja inocente. Unicamente justifica presumir que não é culpado.
1.2. Considere a forma dos dois argumentos. Que ilação devemos tirar acerca da diferença entre lógica formal ou dedutiva e lógica informal?
Os argumentos têm a mesma forma lógica. Contudo, isso não impede que um dos argumentos seja válido – o argumento 2 – e o outro inválido ou falacioso. Um argumento de tipo informal e válido pode ter a mesma forma lógica que um argumento informal inválido. Ora, um argumento dedutivo inválido não pode ter a mesma forma lógica que um argumento dedutivo válido. Neste último caso, se a forma do argumento é válida, então premissas verdadeiras justificam e garantem conclusões verdadeiras. Daqui se retira uma importante ilação sobre a diferença entre argumentos dedutivos e não dedutivos: a validade dedutiva depende inteiramente da forma lógica dos argumentos; mas a validade indutiva não depende inteiramente da forma lógica dos argumentos.



2. Compare estes dois argumentos.
1. A maioria dos alemães lê o Der Spiegel. Logo, o meu amigo alemão que me vai visitar lê o Der Spiegel.
2. A maioria dos alemães lê o Expresso. Logo, o meu amigo alemão que me vai visitar lê o Expresso.


2.1. Estes dois argumentos exemplificam que tipo de argumentos? Porquê?
São dois exemplos de argumentos indutivos. Trata-se de previsões. As previsões são formas de argumentos indutivos. Acresce que em ambos os casos a eventual verdade das premissas não torna logicamente impossível a falsidade da conclusão.

2.2. Avalie o valor de verdade das premissas.
As premissas são ambas proposições falsas.
2.3. Nenhum argumento indutivo garante a verdade da conclusão. Um bom argumento indutivo é o que, portanto, diminui tanto quanto possível o risco de a conclusão ser falsa. Neste sentido, qual dos argumentos é, de um ponto de vista indutivo, melhor do que o outro?
Ambos os argumentos partem de premissas falsas e por isso comprometem o objetivo de justificar a verdade da conclusão. Apesar disso, podemos dizer que o argumento 2 torna muito mais provável que a conclusão seja falsa do que o argumento 1. Com efeito, a premissa de 2 é claramente menos plausível do que a de 1. A esmagadora maioria dos alemães não lê o Expresso. Assim sendo, o argumento 2 corre menos riscos do que o argumento 1. Como a validade de um argumento indutivo depende da força com que as premissas apoiam a conclusão, estamos perante dois argumentos que não são indutivamente bons.



3. Atente no argumento seguinte.
Não acredito que tenha ouro no meu terreno. Nunca tive notícia de haver ouro por estas bandas e em terrenos deste tipo não é hábito encontrar ouro. Além disso, já abri poços e caboucos e nunca vi ouro nenhum.


3.1. Trata-se de um argumento dedutivamente válido?
Não. As premissas não garantem a conclusão de que não há ouro nos terrenos em questão.
3.2. De que tipo de argumento se trata?
Trata-se de um argumento indutivo, mais propriamente falando de uma previsão indutiva.
3.3. Podemos considerar que o argumento é válido?
Sim, porque é bastante razoável acreditar que o argumentador tem razão. Ele convenceu-nos de que as suas premissas são razões suficientemente fortes para justificar a sua crença. É bastante plausível acreditar que não há ouro no seu terreno e agir de acordo com essa crença. É um exemplo de argumento que com fortes razões justifica a nossa aceitação da conclusão.





4. Considere os argumentos seguintes.
1. Até agora, nenhuma mulher foi presidente da República, em Portugal; logo, nenhuma mulher será presidente da República, em Portugal.
2. Até hoje, nenhum primeiro-ministro, em Portugal, foi analfabeto; logo, nenhum primeiro-ministro, em Portugal, será analfabeto.

4.1. Que tipo de argumentos são apresentados?
Trata-se de argumentos indutivos, mais propriamente falando de previsões indutivas.

4.2. O argumento 1 é válido?
Podemos dizer que não, na medida em que, apesar de a premissa ser verdadeira, é altamente improvável que a conclusão o seja. Se entendermos que um argumento indutivo é válido quando a premissa torna mais provável do que improvável a verdade da conclusão, facilmente concluímos que nos dá uma razão muito fraca para justificar a verdade da conclusão.

4.3. O argumento 2 é válido?
Podemos dizer que sim. A premissa é verdadeira – ou a sua verdade é bastante plausível – porque o exercício do cargo de primeiro-ministro não é compatível com o analfabetismo. A conclusão é bem sustentada pelas premissas, apesar de a sua falsidade não ser logicamente impossível. Apesar de o argumento de Silva ser um bom argumento indutivo, não é impossível que a conclusão seja falsa. A última palavra cabe ao conteúdo, ou seja, às realidades a que as proposições se referem. Atribuímos validade a este argumento porque pensamos que muito provavelmente a realidade não o vai contradizer. Ao fazê-lo, temos em conta o nosso conhecimento de aspetos gerais do curso do mundo, tais como o que é preciso para chegar a primeiro-ministro e exercer o cargo.

5. Considere o argumento seguinte.
Até hoje, nenhum marciano foi ator de peças de Shakespeare. Logo, nenhum marciano será ator de peças de Shakespeare. Podemos afirmar que este argumento indutivo é válido?
Um argumento indutivo é válido quando o facto de as premissas serem verdadeiras torna mais provável que a conclusão seja verdadeira do que falsa. Vistas as coisas desse modo, parece que temos boas razões para acreditar na verdade da conclusão. A premissa e a conclusão são verdadeiras. Mas podemos perguntar o que é relevante para que a conclusão seja verdadeira: Que nenhum marciano tenha sido até à data ator de peças de Shakespeare – ou seja, que a premissa seja verdadeira – ou que não haja marcianos? Se for este o caso, então o que é relevante não é a premissa, mas sim não existirem marcianos, algo que pelo menos explicitamente a premissa não assume. Como num argumento indutivo válido a premissa tem de ser relevante para a conclusão, isso não aconteceria nesta última hipótese.

V
Identifique as falácias informais cometidas.

1. Não podes ver esse filme. Ainda não tens idade para isso.
Ah, então não queres que eu me divirta. Isso não é justo!
Boneco de palha. Deturpa-se a posição da autoridade paterna – suponhamos assim – para mais facilmente a tentar atacar.

2. Luís: Penso que as pessoas não devem usar perfumes nem sprays. São péssimos para o ambiente.
Maria: Então queres que as pessoas andem a cheirar mal e com cabelos que parecem mato?
Boneco de palha. Deturpa-se a posição de Luís para mais facilmente a tentar atacar.
3. Os opositores da pena de morte defendem que a pena de morte é injusta e discriminatória. Mas é ridículo sugerir que os assassinos não devem pagar pelos seus crimes. Como é que isso poderá ser justo para as vítimas ou para as suas famílias?
Boneco de palha. Quem se opõe à pena de morte não está necessariamente a defender que os assassinos não devem ser castigados.
4. O meu pai diz-me que não devo mentir. Ele diz que mentir é errado porque leva a que as pessoas deixem de confiar umas nas outras. Mas eu já ouvi o meu pai mentir. Às vezes ele telefona para o trabalho a dizer que está doente, quando não está, de facto, doente. Portanto, mentir não é errado – o meu pai apenas não gosta que eu minta.
Ataque indevido à pessoa ou argumento ad hominem falacioso. (Note-se que nem todo o argumento ad hominem é falacioso.) O argumento ataca o pai e não o que ele diz. Mas não é pelo facto de o pai mentir que deixa de ser verdade que não se deve mentir.
5. Advogado – João afirma que o meu cliente cometeu o crime. Contudo, João é um bêbado inveterado, portanto, o seu testemunho de João não tem valor algum.
O argumento é falacioso – trata-se de um argumento ad hominem falacioso – porque, mesmo que seja verdade que João é um bêbado, pode contudo, estar a dizer a verdade, bastando para isso que, por exemplo, estivesse sóbrio no momento em que observou a ocorrência. Temos um ataque indevido à pessoa.
6. Advogado – João afirma que o meu cliente cometeu o crime na noite de 30 de junho. João estava completamente bêbado na noite de 30 de junho. Portanto, o testemunho de João sobre o que ocorreu na noite de 30 de junho não é digno de confiança.
O argumento não é um argumento ad hominem falacioso porque há boas – embora não conclusivas – razões para duvidar da veracidade do testemunho de João. O ataque à pessoa não é aqui indevido.
7. A razão pela qual este produto tem muita procura é porque muita e muita gente o quer ter.
Petição de princípio. Há uma grande procura porque há uma grande procura.
8. A hipertensão arterial prejudica os rins, e as lesões renais produzem hipertensão arterial.
Não há falácia da petição de princípio porque há fenómenos que se retroalimentam.
9. As cotações da bolsa baixam porque os investidores se sentem inseguros, e os investidores sentem-se inseguros porque as cotações baixam.
Não há falácia da petição de princípio. Os efeitos retroalimentam as causas.
10. Não existem presos políticos neste país, mas somente cidadãos que foram condenados por atividades políticas não permitidas pela lei.
Petição de princípio. Não existem presos políticos porque não existem presos políticos.
11. Os céticos tentaram sem sucesso durante séculos provar que a reencarnação é um mito. Portanto, devemos concluir que a reencarnação é um facto.
Apelo falacioso à ignorância. A ausência de prova é usada como prova. Não é pelo facto de os céticos não terem sido capazes de provar que a reencarnação é um mito que a reencarnação é um facto.
12. Não tenho nenhuma prova de que a luz do meu frigorífico se apaga quando fecho a porta. Portanto, é razoável acreditar que não se apaga.
Apelo falacioso à ignorância. Não é pelo facto de não ter prova de que a luz se apaga que se pode concluir que não se apaga.
13. Ninguém conseguiu encontrar as causas naturais da recuperação do doente. Por isso, foi um milagre que o curou.
Apelo falacioso à ignorância. A ausência de prova é usada como prova.
14. Se começares a jogar Bingo, vais tornar-te viciado no jogo. Se te tornares viciado no Bingo, vais gastar todo o teu dinheiro no jogo. Se gastares todo o teu dinheiro no jogo, vais ter de roubar para pagar as tuas despesas. Logo, se começares a jogar Bingo, vais ter de roubar para pagar as tuas despesas.
Falácia da derrapagem ou da bola de neve. Uma série de passos improváveis levam à conclusão de que a pessoa não deve começar a jogar Bingo.
15. Os alunos pediram à direção da escola que lhes arranjasse um local aonde a comissão de finalistas se pudesse reunir. Se lhes fizéssemos a vontade, a seguir iriam pedir um salão de jogos e, em seguida, uma discoteca. Isso transformaria a escola num centro de diversão. Por essa razão, não podemos ceder a sala para reuniões.
Falácia da derrapagem ou da bola de neve. Está longe de ser óbvio que, se se satisfizer o desejo dos alunos, a escola se transforme numa discoteca.
16. Se se legaliza a eutanásia para os doentes terminais, a seguir legaliza-se para as pessoas com morte cerebral. Se se legaliza a eutanásia para as pessoas com morte cerebral, a seguir legaliza-se para as pessoas muito idosas, socialmente inadaptadas, com deficiências cognitivas profundas. Logo, não se pode legalizar a eutanásia.
Falácia da derrapagem ou da bola de neve. Está longe de ser óbvio, como pretende o argumento, que da legalização da eutanásia para os doentes terminais se siga necessariamente a legalização da eutanásia para os doentes mentais.

17. Não se pode ser ateu e pessoa com bons princípios morais ao mesmo tempo. Logo, se és ateu não és moralmente recomendável.
Falácia do falso dilema ou da falsa dicotomia. Como se ser crente e moralmente recomendável fossem sinónimos.
18. É comunista, mas é boa pessoa.
Falácia do falso dilema ou da falsa dicotomia. De uma forma implícita, afirma-se que ou se é comunista ou se é boa pessoa. Como se não ser comunista fosse condição necessária para ser boa pessoa. Aqui, aponta-se uma exceção, mas o que importa é que a dicotomia se apresenta de forma absoluta.
19. Ou aceitas o racionalismo ou negas as verdades da matemática. Ora, se não negas as verdades da matemática, resta-te aceitar o racionalismo.
Falácia do falso dilema ou da falsa dicotomia. Há alternativas que não são consideradas. Pode negar-se o racionalismo sem negar a verdade das matemáticas. É o caso do filósofo empirista David Hume.


MÓDULO 3
Filosofia e racionalidade argumentativa
UNIDADE 2
Argumentação e retórica
CAPÍTULO 3
A retórica e a procura da adesão do auditório

1. O que é a retórica?
A retórica é habitualmente definida como a arte da persuasão.
2. O que entende Aristóteles por retórica?
Aristóteles entende-a sobretudo como estudo do método da persuasão. Ela é a faculdade de descobrir e considerar o que, para cada questão, pode ser adequado para persuadir.
3. Porque se justifica o estudo da retórica?
O estudo da retórica justifica-se porque argumentar é tentar persuadir e convencer, encontrar formas de obter a adesão a certas ideias e opiniões. Tentamos persuadir os outros, e outros procuram fazer o mesmo. Na vida prática, em processos comunicativos concretos, a argumentação destina-se a convencer e a ganhar a adesão do interlocutor.
4. Qual é o domínio de atuação da retórica?
O campo da argumentação retórica é o verosímil, o provável, o controverso e o discutível, e não o necessariamente verdadeiro. A retórica pretende descobrir os meios que, relativamente a qualquer argumento, podem persuadir um dado auditório. Procura fazer aceitar teses prováveis, que podem ser controversas, verosímeis ou convincentes. É, por isso, «a técnica ou a arte do verosímil».
5. O que entende Aristóteles por ethos?
O ethos é uma «prova» ou dispositivo retórico baseada no caráter do orador. O orador tenta persuadir o auditório proferindo o discurso de maneira a criar nele a impressão de que tem um caráter que o torna digno de crédito, valendo-se da sua experiência no assunto, da sua reputação e da qualidade das fontes e informações em que se apoia. É um apelo à credibilidade.
6. O que é o pathos?
É uma «prova» ou dispositivo retórico centrado no auditório. O orador tenta persuadir despertando pelo discurso no auditório sentimentos e emoções que o tornam recetivo ao que está a ser dito.
7. O que carateriza o logos?
É uma «prova» ou dispositivo retórico baseado no discurso. Apela à racionalidade e capacidade lógica do auditório. Se o orador tenta persuadir procurando apresentar razões em defesa de um determinado ponto de vista (e não tentando despertar certas emoções ou transmitir a imagem de credibilidade pessoal), então estamos no plano do logos.



MÓDULO 3
Filosofia e racionalidade argumentativa
UNIDADE 2
Argumentação e retórica
CAPÍTULO 4
Argumentação e filosofia


1. Que relação existe entre retórica e democracia?
A relação é a seguinte: enquanto arte da persuasão pelo discurso e pela palavra, a retórica supõe um regime político em que diversas opiniões e crenças se possam justificar perante as outras. A democracia é o regime em que o acesso ao poder se faz através do voto e consagra o poder da palavra para obter a adesão de quem escolhe os que vão governar.

2. Que importância tinham os sofistas na democracia ateniense?
A democracia estimulou o desenvolvimento da retórica porque persuadir os outros pelo uso da palavra facilitava o acesso ao poder. Os sofistas são os grandes especialistas na arte da retórica. Desempenham, enquanto professores de retórica, um importante papel na formação de oradores especializados na arte de falar eloquentemente, de forma persuasiva e convincente. Desse modo, alcançar o poder através do voto ou defender uma causa em público exigiam o domínio de técnicas discursivas que, dominadas pelos sofistas, os tornavam grandes protagonistas da política ateniense.

3. Quais são as principais teorias filosóficas que, de um modo geral, parece ser possível atribuir aos sofistas?
As principais ideias que através de Platão podem ser atribuídas aos sofistas são:
1. A descrença em verdades objetivas e universais e em valores morais absolutos. A afirmação de Protágoras «O homem é a medida de todas as coisas» foi interpretada por Platão como significando que não há verdades absolutas, nem valores morais absolutos.
2. O relativismo. Esta posição decorre da anterior. Se a verdade é relativa e particular (isto é, se a verdade muda consoante o homem que percebe o objeto), e não absoluta e universal (isto é, sempre a mesma para todas as pessoas), todo o conhecimento se reduz às crenças e às opiniões de que os seres humanos podem ser persuadidos.

4. O que opõe radicalmente Platão e Sócrates aos sofistas?
O relativismo constitui para Sócrates e Platão o principal inimigo da filosofia entendida como procura de uma verdade absoluta e permanente. Sócrates e Platão defendiam que há uma realidade objetiva e que há verdades objetivas e universais, que podem ser conhecidas por intermédio, não da retórica, mas da filosofia. A retórica sofista é um obstáculo ao conhecimento e à descoberta da verdade.

5. Fala-se de dois usos da retórica: o bom e o mau. Identifique-os.
O bom uso da retórica consiste na persuasão racional. O mau uso da retórica consiste na manipulação.

6. Em que consiste a persuasão racional?
É a tentativa de, evitando manobras falaciosas e construindo argumentos bons, sem artifícios estilísticos, claramente organizados e expostos, obter a adesão do auditório. Pode dizer-se que contribui para descobrir e comunicar a verdade. A persuasão racional tem em vista a verdade, mas a manipulação não.

7. Em que consiste a manipulação?
A manipulação consiste em usar a capacidade de persuasão para enganar, iludir e convencer o auditório daquilo que mais interessa e convém ao orador. Tenta tirar partido das limitações e dos preconceitos do auditório. Trata-se de uma forma de argumentação desonesta que instrumentaliza o auditório e se afasta da verdade.

8. Qual é a crítica fundamental que Platão dirige à retórica sofista?
Reconhecendo o poder da retórica, questiona de um ponto de vista ético o uso de um tal poder. Platão não pensa que a retórica seja a arte da persuasão. Para Platão, a retórica, em vez de visar a persuasão do auditório, visa a sua manipulação.

9. Como justifica Platão que a retórica sofista é uma forma de manipulação e não de persuasão?
Segundo Platão, a retórica não se baseia na razão e na procura da verdade, mas na exploração das emoções, dos interesses e das necessidades do auditório. É uma forma de manipulação porque, pensa Platão, quem não domina o assunto de que fala só é persuasivo, e inclusive mais persuasivo do que quem sabe, se o auditório estiver mal informado sobre o assunto de que fala o orador. A ignorância é condição necessária do triunfo do ignorante.

10. Por que razão não a considera uma arte?
É o caráter manipulador da retórica que lhe retira o direito ao título de arte. Não procurando a verdade, a retórica afasta-nos do triunfo do bem e da justiça. Como uma atividade que não se baseia na verdade e não tem como finalidade a realização do bem não merece o nome de arte, Platão conclui que, ao contrário do que pensam os sofistas, a retórica não é uma arte.

11. Por que razão a relação entre retórica e filosofia é, em princípio, problemática?
Porque a filosofia tem como objetivo a descoberta da verdade, e a retórica parece exclusivamente centrada na persuasão e na eficácia do discurso.

12. Como procura Perelman superar esta aparente incompatibilidade?
Perelman procura superar esta aparente incompatibilidade defendendo que em filosofia a verdade não pode, dada a natureza das questões filosóficas ser sinónimo de evidência absoluta.

13. O que entende Perelman por retórica filosófica?
A retórica filosófica é o processo de construção da verdade mediante a argumentação partilhada e discutida. Em filosofia não há respostas que encerrem definitivamente as questões. Por isso, a razão filosófica é uma racionalidade comunicativa que se baseia na ideia de que é possível argumentar e discutir todas as posições de modo a descobrir os prós e os contras de uma dada tese. Aponta as limitações da racionalidade lógica que, dirigindo-se ao entendimento, esquece que o ser humano é mais do que razão. A argumentação retórica dirige-se ao ser humano na sua totalidade visando a adesão a uma ideia, sensibilizá-lo para certos valores e motivá-lo para certas ações.


Os dois usos da retórica
Persuasão
 Manipulação

O orador não tem a intenção de enganar. Tenta apresentar toda a informação relevante, não distorce factos nem os omite.

Recorre a argumentos enganadores ou manobras falaciosas. Visa enganar e iludir, omitindo certos factos para destacar outros ou apresentando a mensagem de forma propositadamente parcial e ambígua.


Evita explorar os preconceitos do auditório.

Explora os preconceitos do auditório.

Procura que os membros do auditório pensem por si.

Trata os membros do auditório como meios ao serviço das suas finalidades pessoais.

Procura obter adesão, apelando a fatores emocionais e racionais, embora predomine o recurso ao logos.

Procura obter adesão, apelando essencialmente a fatores emocionais, que impressionam mais o auditório.
É tanto mais eficaz quanto maior for a capacidade de argumentação do orador (apresenta os argumentos pela melhor ordem e sem complicações desnecessárias).
É tanto mais eficaz quanto maiores forem a passividade, os preconceitos e a falta de sentido crítico do auditório.

O bom uso da retórica
O mau uso da retórica



EXERCÍCIOS
I
1. Analise as afirmações seguintes sobre a diferença entre persuasão e manipulação. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. A persuasão baseia-se exclusivamente em meios racionais.
2. A manipulação baseia-se exclusivamente em fatores emocionais.
3. A persuasão racional tem em consideração as emoções das pessoas, mas a manipulação não.
4. A persuasão racional tem em vista a verdade, mas a manipulação não.

A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 1 verdadeira; 2, 3 e 4 falsas.
C – 1 e 3 verdadeiras; 2 e 4 falsas.
D – 4 verdadeira; 1, 2 e 3 falsas.

2. A manipulação é
A – A consequência necessária da persuasão.
B – Uma consequência possível da persuasão.
C – Uma forma de argumentação que nada tem a ver com as estratégias persuasivas.
D – Uma forma de argumentação que se centra exclusivamente nas caraterísticas do auditório.
3. A transformação da persuasão em manipulação é facilitada por
A – Fatores estritamente emocionais.
B – Fatores estritamente cognitivos.
C – Fatores cognitivos, psicológicos e sociológicos.
D – Fatores cognitivos e emocionais.

4. Analise as afirmações seguintes sobre a relação entre persuasão racional e manipulação. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. A manipulação tem em consideração as caraterísticas do auditório e a persuasão racional não.
2. A persuasão racional é mais eficaz do que a manipulação.
3. No caso da persuasão racional o auditório também apresenta limitações cognitivas.
4. A manipulação tem em consideração as emoções das pessoas, mas a persuasão racional não.
A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 1 verdadeira; 2, 3 e 4 falsas.
C – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
D – 4 verdadeira; 1, 2 e 3 falsas.

5. A manipulação
A – Depende das caraterísticas do auditório.
B – Depende das caraterísticas do orador.
C – É um argumento falacioso e atraente que é usado com má-fé.
D – As alíneas A e C são verdadeiras.
E – As alíneas A e B são verdadeiras.
F – Só a alínea B é verdadeira.


6. Temos capacidade de raciocinar, mas há raciocínios que temos dificuldade em acompanhar e compreender porque não dominamos o assunto em causa. Esta caraterística
A – Impede a persuasão racional.
B – Facilita a manipulação.
C – Facilita quer a persuasão racional quer a manipulação.
D – A alínea A é a única verdadeira.
E – As alíneas A e B são verdadeiras.

7. Persuadir e manipular dependem em boa parte do modo como o orador encara as limitações do auditório. Esta afirmação é
A – Falsa, porque dependem da qualidade da argumentação.
B – Verdadeira, porque as limitações do auditório são uma oportunidade para persuadir e manipular.
C – Falsa, porque o orador também apresenta limitações.
D – Verdadeira, porque pode ser pedagógico ou oportunista.

8. Analise as afirmações seguintes sobre os dois usos da retórica. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. A retórica pode ser usada para persuadir ou para manipular.
2. Não há dois usos porque a retórica promove a autonomia do pensar.
3. O mau uso explora os preconceitos e limitações do auditório; o bom uso só explora os preconceitos.
4. A eficácia de cada um dos usos depende do grau de informação e de disponibilidade racional do auditório.

A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 1 verdadeira; 2, 3 e 4 falsas.
C – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
D – 1 e 4 verdadeiras; 2 e 3 falsas.

9. Analise as afirmações seguintes sobre a relação entre os sofistas e Platão. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. Para Platão, a retórica não é uma arte nem uma forma de persuasão.
2. Na base da oposição platónica à retórica está o relativismo dos sofistas.
3. Para Platão, a retórica sofista explora a ignorância e a falta de sentido crítico do auditório.
4. A razão de ser da oposição tem a ver com diferentes conceitos de verdade.
A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 1, 2, 3 e 4 verdadeiras;
C – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
D – 1, 2 e 3 verdadeiras; 4 falsa.

10. No que respeita à procura da verdade em filosofia, é correto afirmar que
A – A lógica formal é necessária, mas insuficiente.
B – As premissas dos nossos argumentos são muitas vezes discutíveis.
C – Podemos argumentar a favor da verdade, mas não demonstrar a verdade.
D – As alíneas A e B são verdadeiras.
E – As alíneas A, B e C são verdadeiras.

11. Platão não considera que a retórica dos sofistas seja uma arte, entre outras razões, porque
A – Lhe falta uma motivação ética.
B – Instrumentaliza o seu auditório.
C – Faz com que o auditório acredite saber o que ignora.
D – As alíneas anteriores são todas falsas.
E – As alíneas anteriores são todas verdadeiras.
F – As alíneas A e B são verdadeiras.

12. Analise as afirmações seguintes sobre as razões da ideia platónica de que a retórica sofista não é a arte da persuasão. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. Não é uma arte porque o seu uso nos afasta da verdade e do bem.
2. Não é uma arte porque aproveita a ignorância do auditório.
3. Não é uma arte porque o desprezo pela verdade é um mal que nos afasta do bem.
4. Não é uma arte porque a arte visa produzir sensações de agrado.
A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 1, 2, 3 e 4 verdadeiras;
C – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
D – 1, 2 e 3 verdadeiras; 4 falsa.

13. Para Perelman, o ideal filosófico de uma verdade indubitável
A – Esquece que a objetividade da verdade é uma ilusão perniciosa.
B – Não dá devida consideração às nossas limitações cognitivas.
C – Desvaloriza o facto de no debate de problemas filosóficos não partirmos de certezas evidentes e indisputáveis nem atingimos resultados conclusivos que encerrem o debate.
D – Esquece que as verdades filosóficas são indemonstráveis.
E – As alíneas A, C e D são verdadeiras.
F – As alíneas A, B, C e D são verdadeiras.

14. A principal crítica que é feita à ideia de que a filosofia se deve basear na argumentação persuasiva é a de que
A – A persuasão é inimiga da verdade.
B – A retórica não distingue entre verdades objetivas e verdades intersubjetivas.
C – A filosofia é a procura de verdades certas e indubitáveis.
D – A retórica pode conduzir-nos ao relativismo.

15. Para Perelman, a verdade objetiva é, em filosofia,
A – Um ideal regulador da atividade argumentativa.
B – Uma ficção inútil porque representa um ideal inalcançável.
C – Uma forma de dar uma orientação racional à argumentação.
D – As alíneas A, B e C são verdadeiras.
E – As alíneas A e B são verdadeiras.
F – As alíneas A e C são verdadeiras.

16. A persuasão racional apela à capacidade de pensar do interlocutor. Esta afirmação é
A – Falsa, porque um mau argumento nunca é persuasivo.
B – Verdadeira, porque todos os argumentos falaciosos são exemplo de persuasão irracional.
C – Falsa, porque convencer exige que se apresentem argumentos baseados em emoções.
D – Verdadeira, porque o uso da manipulação visa impedir os outros de pensar.
E – Todas as alíneas anteriores são verdadeiras.
F – Nenhuma das alíneas anteriores é verdadeira.



II


1. Por que razão Perelman considera que a argumentação retórica é indispensável para a procura da verdade?
Porque, além da qualidade dos argumentos em si mesmos, é necessária a capacidade persuasiva de quem argumenta. No debate filosófico, não partimos de certezas evidentes e indisputáveis nem atingimos resultados conclusivos que encerrem o debate.

2. Por que razão para Perelman o ideal de uma verdade demonstrativa é prejudicial?
Porque desvalorizou o domínio do verosímil que é o domínio da maioria das questões que interessam aos seres humanos, inclusive as filosóficas. Excluiu a argumentação retórica, deixando a filosofia a oscilar entre um ideal de verdade indubitável que não se coaduna com a natureza das suas questões e o reino da pura e simples opinião. Segundo Perelman, os problemas filosóficos são controversos, sendo praticamente impossível haver um consenso sobre a resposta que devem receber. Assim sendo, a atividade filosófica é a exposição de perspetivas que devem basear-se na argumentação persuasiva. A filosofia não é, por isso, diferente de outros domínios do saber dos quais as verdades evidentes ou aproximadamente exatas estão ausentes.

3. A impossibilidade de a filosofia atingir verdades demonstrativas ou evidências irrefutáveis implica para Perelman que ela está condenada a ser um mero conjunto de opiniões ou de enunciados subjetivos?
Não. A filosofia sempre aspirou a verdades universais e objetivas. Não podendo ignorar a natureza problemática e muito polémica das respostas que os filósofos dão aos problemas filosóficos, que não há um juiz supremo que garanta a resposta verdadeira ou evidente, entende que se deve procurar a maior universalidade possível. Afasta-se assim de um relativismo completo, ao mesmo tempo que rejeita o fanatismo da verdade absoluta. O discurso argumentativo deve apontar para esse ideal de modo a superar, na medida do possível, a proliferação de pontos de vista particulares. Esta convicção é ilustrada pela sua ideia de auditório universal. O auditório universal é, no plano argumentativo, uma entidade ideal. É constituído «por toda humanidade, ou pelo menos, por todos os homens adultos e normais». O que na realidade existe são auditórios particulares, concretos, constituídos por pessoas com diferentes raízes culturais, diversos modos de pensar e de avaliar, com os seus preconceitos e interesses. Cada filósofo também pertence a um auditório particular. Qual a importância do auditório universal? Permite, em certa medida, dar uma orientação objetiva à argumentação. Constitui, não tendo existência efetiva, um critério de objetividade e de racionalidade.

4. Qual a razão fundamental da oposição de Platão aos sofistas?
Mais do que o uso que fazem da retórica, o que opõe fundamentalmente Platão aos sofistas é o relativismo destes, a sua recusa em admitir que haja verdades universais e objetivas. Filósofos como Platão e Sócrates concebem a filosofia como procura de verdades objetivamente existentes, impessoais, e rejeitam o relativismo dos sofistas.

5. Por que razão a crítica platónica à retórica sofista é sobretudo de natureza moral?
A retórica dos sofistas, censura Platão, é uma atividade indiferente à verdade. Aos olhos de Platão, tal facto é avaliado da seguinte forma: a atividade a que os sofistas se dedicam não tem credibilidade moral. Não procurando a verdade, a retórica afasta-nos do triunfo do bem e da justiça. Com efeito, pretendendo fazer valer todas as opiniões convenientes ou de que alguém possa ser convencido, os sofistas manifestam desprezo pela verdade e pelo conhecimento. Mas como defender, por exemplo, o que é justo se não se sabe o que é justo?

6. Resuma a crítica platónica à retórica sofista.
A objeção fundamental é esta: A retórica não está ao serviço do bem e da verdade. A razão que justifica este duplo defeito é uma só: A retórica é uma forma de manipulação e não de persuasão. Para Platão, a retórica é uma forma de manipulação. Os oradores instrumentalizam os auditórios, fazendo deles meios para os seus próprios fins ou os fins daqueles que representam. Conseguem ser frequentemente bem-sucedidos em influenciar atitudes e comportamentos. A que se deve tal sucesso? Às limitações cognitivas do auditório.
Na verdade, pensa Platão, quem não domina o assunto de que fala só é persuasivo, e inclusive mais persuasivo do quem sabe, se o auditório estiver mal informado sobre o assunto de que fala o orador. A ignorância é condição necessária do triunfo do ignorante. Só nesta situação o orador pode ser mais convincente do que um especialista. Um auditório conhecedor do assunto em discussão não se deixa manipular, pelo menos facilmente.
A manipulação dos auditórios – sinal de desprezo pela verdade – revela falta de compromisso ético, desprezo pelo bem em si. Assim sendo, a retórica não está ao serviço da justiça, na medida em que não se preocupa em descobrir o que é a justiça, mas em fazer triunfar dados interesses.
7. Distinga os dois usos da retórica.
Considera-se que a retórica pode ser usada de duas maneiras: para persuadir racionalmente ou para manipular. Em ambos os casos, muito depende das caraterísticas do orador e do próprio auditório. Este, uma vez que é formado por seres humanos, apresenta limitações de várias espécies. Um auditório ignorante é mais fácil de manipular do que um auditório informado, o mesmo acontecendo com um auditório com pouca aptidão para seguir certos raciocínios ou descortinar o que podem conter de falacioso. Assim, há manipulação sempre que o orador usa as limitações do auditório para fazer aceitar as suas ideias (as limitações do auditório são uma oportunidade que é explorada para obter adesão).
persuasão sempre que as limitações do auditório são encaradas como um obstáculo a ultrapassar mediante argumentação cuidada, o mais simples possível e suficientemente informativa.
A manipulação explora os preconceitos e limitações cognitivas do auditório, baseando-se mais em fatores emocionais e apelativos para aquele e é tanto mais eficaz quanto menor for a capacidade do auditório para pensar por si e exibir sentido crítico. Assim, mais facilmente é instrumentalizado, enganado ou iludido. O mesmo não acontece com a persuasão racional. Apesar da complexidade dos assuntos humanos e de não haver respostas incontroversas para os problemas fundamentais que aos humanos interessam, o objetivo é alcançar a verdade ou mostrá-la. A persuasão racional apela a fatores emocionais e racionais, embora predomine o recurso ao logos. Como prevalece a busca da verdade, o orador não tem a intenção de enganar. Tenta apresentar toda a informação relevante, não distorce factos nem os omite e preocupa-se em ser entendido.


MÓDULO 4
O conhecimento e a racionalidade científico-tecnológica
UNIDADE 1
Descrição e interpretação da atividade cognoscitiva
CAPÍTULO 1
O que é o conhecimento


1. O que é a teoria do conhecimento?
A teoria do conhecimento é a área da filosofia que investiga os problemas da essência, origem, possibilidade e alcance do conhecimento.

2. O que é o conhecimento?
O conhecimento é uma relação entre o sujeito, quem conhece, e um objeto, aquilo que é conhecido.

3. Que tipos de conhecimento existem? Em que consiste cada um deles?
Existem o conhecimento prático, o conhecimento por contacto e o conhecimento proposicional. O conhecimento prático é um conhecimento de atividades ou de aptidões; o conhecimento por contacto é a experiência direta de pessoas, lugares e coisas; o conhecimento proposicional é o conhecimento de proposições verdadeiras.

4. Em que consiste a definição clássica de conhecimento?
Segundo a definição clássica de conhecimento, há três condições necessárias para conhecer uma proposição: 1. A proposição deve ser verdadeira; 2. Temos de acreditar que a proposição é verdadeira e 3. Deve haver boas razões ou evidências para acreditar que a proposição é verdadeira. A crença por si não é conhecimento porque temos crenças falsas e a verdade é inseparável do conhecimento. A crença verdadeira não é conhecimento porque posso ter uma crença verdadeira por acaso ou acidentalmente. Para haver conhecimento, não é suficiente que uma crença seja verdadeira. É também necessária a sua justificação.
5. Esta definição é indiscutível?
Não. Os contraexemplos de Gettier mostram que podemos ter boas razões a justificar uma crença verdadeira e, contudo, não ter conhecimento.
6. Qual é o problema fundamental do conhecimento?
O problema fundamental do conhecimento é o da fundamentação ou justificação das nossas crenças ou opiniões.

EXERCÍCIOS
I
1. A definição tradicional de conhecimento identifica este com
A – Uma crença verdadeira.
B – Uma crença verdadeira epistemicamente justificada.
C – Uma crença verdadeira empiricamente justificada.
D – Uma crença verdadeira justificada a priori.

2. Analise as afirmações seguintes sobre definição tradicional de conhecimento. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. Defende que a crença é condição suficiente do conhecimento.
2. Centra-se no objeto do conhecimento.
3. Centra-se no estado mental do sujeito.
4. Defende que basta que uma crença seja verdadeira para haver conhecimento.

A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
C – 1 e 3 verdadeiras; 2 e 4 falsas.
D – 2 verdadeira; 1, 3 e 4 falsas.


3. Analise as afirmações seguintes sobre definição tradicional de conhecimento. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. Pode haver conhecimento sem crença.
2. Podemos conhecer uma determinada proposição sem que esta seja verdadeira.
3. Não pode haver conhecimento sem justificação do que acreditamos ser verdadeiro.
4. Crença e conhecimento não são a mesma coisa.

A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
C – 1 e 3 verdadeiras; 2 e 4 falsas.
D – 2 verdadeira; 1, 3 e 4 falsas.

1.     João sabe que chove se está a nevar. De acordo com a noção tradicional de conhecimento, esta proposição
A – É um conhecimento, mas não uma crença.
B – É uma crença, mas não um conhecimento.
C – É verdadeira mas incrível.
D – É falsa, mas credível.

5. Para saber que P, é necessário ter boas razões para crer que P. Esta afirmação significa que
A – A justificação de uma crença é suficiente para haver conhecimento.
B – Há justificações que não são aceitáveis.
C – O conhecimento é obra da razão.
D – O conhecimento é constituído por verdades racionais.

6. Joana acredita que Londres é a capital de Itália. Esta crença
A – É um conhecimento.
B – É falsa, porque não descreve fielmente um estado de coisas.
C – É um conhecimento porque toda a crença implica a verdade.
D – Uma proposição cujo valor de verdade é justificável a priori.
E ‒ As alíneas B e D são verdadeiras.

7. Para se saber algo, não se pode apenas adivinhá-lo, mesmo que se acerte, e não o sabemos, por maior que seja a confiança que depositamos no nosso palpite. Este argumento significa que
A ‒ Uma crença verdadeira não é conhecimento quando é deduzida de uma crença falsa.
B – Uma crença verdadeira é sempre conhecimento.
C – Uma crença verdadeira não é saber se não for justificada de forma adequada.
D – Não há conhecimento de falsidades.

8. Das afirmações seguintes, assinale a que melhor carateriza o estudo filosófico do conhecimento.
A – O conhecimento é importante porque nos dá uma garantia de verdade.
B – É importante conhecer, mas mais importante é saber que conhecemos.
C – É importante saber que conhecemos porque não devemos confundir conhecimento e opinião.
D – É importante conhecer porque a verdade das nossas crenças é útil.



9. Analise as afirmações seguintes sobre o conhecimento proposicional. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. É um conhecimento empírico.
2. É um conhecimento de proposições verdadeiras referentes a factos e ideias.
3. É um conhecimento que tem como objeto direto proposições e não coisas, pessoas e acontecimentos.
4. É um conhecimento a priori.

A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
C – 2 e 3 verdadeiras; 1 e 4 falsas.
D – 2 verdadeira; 1, 3 e 4 falsas.

10. A análise das condições necessárias e suficientes do conhecimento é importante porque
A – As condições necessárias do conhecimento são individualmente tomadas suficientes para haver conhecimento.
B – Há condições suficientes que não são necessárias.
C – Muitas vezes tomamos como suficiente uma condição que é apenas necessária.
D – As nossas crenças, por mais fortes e convictas que sejam, não fazem de certas proposições um conhecimento.
E – As alíneas A, B e C são verdadeiras.
F – As alíneas C e D são verdadeiras.


11. Analise as afirmações seguintes sobre as condições necessárias e suficientes do conhecimento proposicional. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. Para saber primeiro há que acreditar.
2. Supor que uma proposição é verdadeira não chega para saber que é verdadeira.
3. Não pode haver crença sem haver conhecimento porque para saber primeiro há que acreditar.
4. A crença é o aspeto subjetivo do conhecimento.

A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
C – 2 e 3 verdadeiras; 1 e 4 falsas.
D – 1, 2 e 4 verdadeiras; 3 falsa.

12. Nem tudo aquilo em que acreditamos constitui conhecimento porque
A – Podemos acreditar em proposições falsas tal como podemos acreditar em verdadeiras.
B – Não há conhecimento de falsidades, ou seja, o conhecimento é factivo.
C – É possível termos uma crença verdadeira e essa crença não ser um conhecimento.
D – As crenças não são factivas.
E – Só alínea A é verdadeira.
F – As alíneas A e D são verdadeiras.

13. Suponhamos que, a fim de encontrar um potencial comprador, estacionei o meu automóvel, que procuro vender, no lugar X. Fecho o negócio e, no momento em que o meu interlocutor me pergunta onde é que o carro está estacionado, respondo-lhe: «No lugar x». Contudo, duran­te as negociações, um ladrão levou o veículo, a fim de participar em «picanços». No final das corridas, volta a estacionar o carro, completamen­te por acaso, precisamente no sítio de onde o tirara. Poderá dizer-se que eu sabia onde estava o meu veículo no momento em que afirmei que esta­va no lugar X?

Este exemplo

A – Mostra que podemos saber que algo é falso, mas não podemos conhecer falsidades.

B – Mostra que a crença é apenas uma condição necessária para o conhecimento.

C – Mostra que podemos ter crenças verdadeiras justificadas por mero acaso.

D – Uma crença verdadeira não é sinónimo de conhecimento.


14. Analise as afirmações seguintes sobre a crença enquanto condição de possibilidade do conhecimento proposicional. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. Se a crença fosse sinónimo de conhecimento, poderíamos considerar verdadeiras proposições falsas.
2. Todo o conhecimento é crença, mas nem toda a crença é conhecimento.
3. É possível que um sujeito tenha uma crença verdadeira e essa crença não seja um conhecimento.
4. São as nossas crenças que tornam uma proposição verdadeira ou falsa.

A – 1 e 2 falsas; 3 e 4 verdadeiras.
B – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
C – 1, 2 e 3 verdadeiras; 4 falsa.
D – 1, 2 e 4 verdadeiras; 3 falsa.

15. Segundo a definição tradicional do conhecimento
A – Uma crença verdadeira por si só não constitui conhecimento.
B – Qualquer razão serve para justificar uma crença verdadeira, porque se há verdade há conhecimento.
C – O conhecimento é um palpite correto.
D – Podemos conhecer uma determinada proposição mesmo que esta não seja verdadeira.

16. Acredito que é verdade que amanhã o Sol vai nascer. Logo, é verdade que o Sol vai nascer.
A – A conclusão é um conhecimento porque é justificada pela premissa.
B – A conclusão é verdadeira, porque é a crença que torna uma proposição verdadeira ou falsa.
C – O que justifica a verdade da conclusão é o facto de o Sol nascer.
D – A conclusão é verdadeira em virtude da qualidade intrínseca da minha crença.

17. O relógio da igreja da sua terra é bastante fiável e costuma confiar nele para saber as horas. Esta manhã, quando vinha para a escola, olhou para o relógio e viu que ele marcava exatamente 8 h e 20 m. Em consequência, formulou a crença de que eram 8 h e 20 m. O facto de o relógio ter sido fiável no passado justifica a sua crença. Contudo, sem que o soubesse, o relógio tinha ficado avariado no dia anterior exatamente quando marcava 8 h e 20 m.
Este caso mostra que
A – Acreditar numa proposição e essa proposição ser verdadeira são duas condições necessárias para que haja conhecimento, mas não são suficientes.
B – Podemos ter uma crença verdadeira justificada sem ter conhecimento.
C – Há justificações acidentais que constituem conhecimento.
D – Há crenças injustificadas que constituem conhecimento.

18. A definição tripartida do conhecimento evita que o conhecimento seja obra da sorte ou do acaso. Esta tese é
A – Verdadeira, porque rejeita que um palpite correto seja conhecimento.
B – Falsa, porque não dá às nossas crenças uma justificação sem margem para dúvida.
C – Verdadeira, porque exige que o sujeito tenha razões para acreditar que a crença é verdadeira.
D – Falsa porque, segundo Gettier, é possível que seja apenas por sorte que uma crença seja verdadeira e esteja justificada.

19. Analise as afirmações seguintes sobre a posição crítica de Gettier acerca da teoria tripartida do conhecimento proposicional. Selecione, de seguida, a alternativa correta.
1. Podemos deduzir uma crença verdadeira e justificada de uma crença justificada, mas falsa.
2. Uma crença verdadeira pode ser justificada de forma acidental.
3. É possível que um sujeito tenha uma crença verdadeira e essa crença não seja um conhecimento.
4. São as nossas crenças que tornam uma proposição verdadeira ou falsa.

A – 1 e 2 verdadeiras; 3 e 4 falsas.
B – 3 verdadeira; 1, 2 e 4 falsas.
C – 1, 2 e 3 verdadeiras; 4 falsa.
D – 1, 2 e 4 verdadeiras; 3 falsa.

20. O ceticismo é a teoria segundo a qual
A – Nunca podemos justificar as nossas crenças, mesmo que possam ser verdadeiras.
B – Uma dada crença pode ser justificada mediante uma cadeia infinita de crenças.
C – Podemos justificar as nossas crenças, desde que encontremos uma crença verdadeira que se autojustifique.
D – Nenhuma crença precisa de justificação.
II
1. Apresente um exemplo que mostre que uma crença verdadeira justificada pode não ser suficiente para haver conhecimento.
Rute vê Hélia com a mãe numa loja de roupa. Vê também que Hélia compra um fato de banho cor-de-rosa. Infere daí que Hélia vai aparecer na praia no fim de semana com esse fato. Acredita com boas razões que Hélia vai aparecer com esse fato, porque gosta de factos de banho dessa cor. A proposição formulada por Rute é a seguinte:
Hélia vai aparecer no fim de semana na praia com um fato de banho cor-de-rosa.
Rute tem uma crença verdadeira. Essa crença é justificada porque basta ver que Hélia traz esse fato vestido e que o comprou para ir à praia. Mas suponhamos agora que Hélia não gosta de factos daquela cor e que foi a mãe que a obrigou a comprá-lo sob pena de não ir à praia no fim de semana. A crença de Rute continua a ser uma crença verdadeira justificada – verdadeira, porque era sua crença que Hélia iria à praia e, na verdade, de facto, foi; justificada porque comprou o fato para poder ir à praia. Mas podemos dizer que Rute sabia que Hélia iria à praia com o referido fato de banho? Não. A verdade da crença é o resultado de uma coincidência. A razão que a leva a pensar que Hélia aparecerá na praia com um fato de banho cor-de-rosa é diferente da razão pela qual Hélia foi à praia com um fato de banho cor-de-rosa. Rute poderia ter pensado que Hélia queria aparecer com um novo fato de banho, mas na verdade foi a mãe que quis, provavelmente farta de ver a filha a usar sempre o mesmo fato de banho.
2. João não sabe nada de futebol, mas gosta de falar sobre tudo e mais alguma coisa. Certo dia, na véspera de um jogo entre o Benfica e o Sporting, afirma que o Benfica vai ganhar. Quando lhe perguntam por que razão acredita nisso, responde: Porque sim! Acontece que o Benfica ganha ao Sporting. João teve por conseguinte uma crença verdadeira. Será que podemos dizer que possuía um conhecimento desse facto, que sabia que o Benfica ia ganhar?
Uma crença verdadeira não é sinónimo de conhecimento. Com efeito, haveria conhecimento ou crença verdadeira justificada se argumentasse dizendo que em 20 jogos do campeonato o Benfica empatou 4 e não perdeu nenhum, que o Sporting vai jogar sem alguns titulares importantes, que uma vitória dá um avanço importante na disputa do título, etc. O caso de João ilustra que o conhecimento não se pode confundir com a simples opinião ou com palpites, mesmo que corretos.
3. Suponhamos que, a fim de encontrar um potencial comprador, estacionei o meu automóvel, que procuro vender, no lugar X. Fecho o negócio e, no momento em que o meu interlocutor me pergunta onde é que o carro está estacionado, respondo-lhe: «no lugar x». Contudo, duran­te as negociações, um ladrão levou o veículo, a fim de participar em «picanços». No final das corridas, volta a estacionar o carro, completamen­te por acaso, precisamente no sítio de onde o tirara. Poderá dizer-se que eu sabia onde estava o meu veículo no momento em que afirmei que esta­va no lugar X?
Tente responder à pergunta.
Tenho uma crença. Esta crença é verdadeira e está justificada. Contudo, revela-se verdadeira por acaso porque a razão para a julgar verdadeira deve-se a uma feliz coincidência. Julgo que sei, mas estou enganado. Assim, como diz Gettier uma crença verdadeira pode estar justificada e não constituir contudo conhecimento.
4. «Acreditar meramente em algo, não importa quão ardentemente, não faz disso uma verdade. Para que se saiba algo, não temos somente de acreditar nisso; isso também tem de ser verdade. Mas será isto tudo o que é reque­rido? É o conhecimento mera crença verdadeira?»
Responda à pergunta que o texto formula.
A resposta é não. Posso acreditar que sou livre, mas, se me pedirem um argumento ou razão que a justifique, se for incapaz de encontrar uma razão plausível para provar aquilo em que acredito, então tenho de concluir que não sei se sou livre. É possível que alguém tenha uma crença verdadeira e essa crença não seja um conhecimento. Não basta, portanto, que uma crença seja verdadeira para ser conhecimento.


MÓDULO 4
O conhecimento e a racionalidade científico-tecnológica
UNIDADE 1
Descrição e interpretação da atividade cognoscitiva
CAPÍTULO 2
Análise comparativa de duas teorias do conhecimento: o racionalismo de Descartes

1. Qual é o projeto de Descartes?
O projeto de Descartes é o encontrar uma verdade indubitável que, constituindo o primeiro princípio do sistema dos conhecimentos, lhe permita construí-lo em bases firmes e de forma ordenada. Descartes define conhecimento como crença verdadeira justificada de forma que seja impossível ser falsa.
2. Por que razão é importante que a base do sistema seja uma verdade absolutamente indiscutível?
Partir de uma verdade indubitável assegura que as verdades que rigorosamente deduzirmos dela serão também indubitáveis.
3. Que método é utilizado nessa investigação?
O método consiste essencialmente em não aceitar como verdadeiro o que não for indubitável.
4. O que carateriza a dúvida metódica?
A dúvida metódica consiste no exame rigoroso de todas as nossas opiniões e crenças com o objetivo de encontrar uma verdade indubitável que permita descobrir de forma ordenada outras verdades igualmente indubitáveis.
5. Que princípios do sistema tradicional dos conhecimentos são submetidos ao exame da dúvida?
São os seguintes: a crença empirista de que o conhecimento tem origem nos sentidos; a crença de que é por si evidente a existência de realidades físicas e a crença de que as verdades da razão são por si verdades necessárias ou indiscutíveis.
6. Por que razão esse exame é rigoroso?
O exame dos princípios básicos do conhecimento estabelecido é rigoroso (implacável) porque Descartes decide dar à dúvida um aspeto hiperbólico. Se queremos verdades devidamente fundamentadas, devemos considerar (provisoriamente) como falso o que, por pouco que seja, for duvidoso. Só será verdadeiro o que for impossível ser falso.
7. Qual é a conclusão negativa a que provisoriamente o exercício da dúvida chega?
A aplicação da dúvida chega à conclusão de que não conseguimos provar que o que considerávamos verdadeiro é indubitável. Logo, será declarado falso.
8. Que opiniões ou crenças são postas em causa?
São objeto de dúvida os princípios em que assentava o sistema tradicional do conhecimento: mediante o argumento das ilusões percetivas, é lícito duvidar de que os sentidos sejam fontes de conhecimento (rejeição do empirismo); o argumento dos sonhos revela que a nossa crença na existência do mundo físico não tem fundamento indiscutível, e a hipótese de Deus enganar lança suspeitas sobre o correto funcionamento da nossa razão nas operações mais elementares da matemática e nas suas demonstrações e reforça a suspeita de que não exista o mundo físico.
9. Qual é a conclusão positiva do exercício da dúvida metódica/hiperbólica? 
Perguntando pelas condições do exercício da dúvida, Descartes reconhece não poder duvidar da existência do sujeito que exerceu o ato de duvidar. Posso duvidar de tudo menos de que penso e, logo, existo como condição de possibilidade do ato de duvidar.
10. O que carateriza o «Penso, logo, existo» (o Cogito)? 
É uma verdade indubitável e puramente racional, absolutamente primeira e por isso o ponto de partida firme e seguro que vai permitir deduzir dele outros conhecimentos de que não duvidaremos. Constitui um critério ou modelo de verdade. É uma intuição existencial porque não se descobre mediante um raciocínio, mas no próprio ato de pensar. É uma ideia inata porque a existência do eu impõe-se à razão como indiscutível e autoevidente, sem qualquer dependência em relação à experiência.
11. Em que consiste a prova da existência de Deus por intermédio da ideia de perfeito?
Consiste em provar que só um ser perfeito pode ser causa da ideia que o representa.
12. Que importância assume esta prova para Descartes?
Provando que Deus não pode enganar, apercebe-se de que podemos confiar nas operações da razão. O critério da evidência é fundamentado de modo que aquilo que considero claro e distinto – evidente – é e continuará a ser claro e distinto. Por outro lado, supera o solipsismo, dado que descobre uma existência que não depende de si.
13. Qual é o papel de Deus no sistema dos conhecimentos?
Deus é o fundamento metafísico das crenças verdadeiras. Garante-as absolutamente porque garante que as evidências atuais são realmente indubitáveis como também que o serão sempre. O conhecimento torna-se assim um conjunto de verdades objetivas, independentes do sujeito pensante.
14. Como se recupera a crença na existência do mundo físico, o objeto de estudo das ciências naturais?
Descartes apercebe-se de que há ideias das coisas que não são produzidas pelo sujeito pensante. Existindo, devem ter uma causa: as próprias coisas sensíveis. Esta propensão ou crença natural é legítima e fundada, dado que Deus, a quem a devo, não me engana.

Resumo da teoria cartesiana do conhecimento
O projeto
Construir um sistema de verdades indubitáveis em que de uma verdade que seja impossível considerar falsa possamos deduzir outras verdades que sejam certezas absolutas.
As razões de ser do projeto

1. O sistema dos ditos conhecimentos do seu tempo era constituído por verdades e falsidades.
2. Temos de separar o verdadeiro do falso e justificar que o que acreditamos ser verdadeiro é absolutamente verdadeiro.
3. O sistema dos ditos conhecimentos do seu tempo não tinha bases firmes e estava desorganizado, a tal ponto que havia falsidades na base do sistema e verdades noutros pontos desse sistema.
4. Temos de encontrar uma verdade indubitável que sirva como base ao sistema dos conhecimentos e permita organizá-lo firme e seguramente.
A estratégia
para atingir esse objetivo
Vamos submeter ao exame rigoroso da dúvida as bases em que assentava o sistema dos conhecimentos estabelecidos.
1. Consideraremos falso o que não for absolutamente verdadeiro ou indubitável.
2. Consideraremos enganadora qualquer faculdade que alguma vez nos tenha enganado ou de cujo funcionamento correto possamos por muito pouco que seja suspeitar.
A dúvida será por isso aplicada de forma hiperbólica.
3. As bases do sistema dos ditos conhecimentos que vamos examinar implacavelmente são:
‒ a crença de que os sentidos são fontes fiáveis de conhecimento sobre as propriedades dos objetos físicos;
‒ a forte crença de que existem realidades físicas;
‒ a crença de que as mais fiáveis produções do nosso entendimento – as matemáticas – são um modelo de verdade indubitável.
O que passar neste exame rigoroso será indubitavelmente verdadeiro.

O que não passa no exame da dúvida metódica/hiperbólica
1. Os sentidos não são dignos de confiança quanto às informações quer sobre as qualidades das coisas sensíveis quer sobre a existência dessas mesmas coisas.
As ilusões dos sentidos e o argumento de que não temos forma de distinguir absolutamente o sonho da realidade, o fictício do real, levam-nos a negar o empirismo (que o conhecimento comece com a experiência sensível) e a crença de que o mundo físico indubitavelmente existe.

2. O correto funcionamento do nosso entendimento (razão) é colocado sob suspeita devido ao argumento de que Deus pode tê-lo criado destinado a confundir o falso com o verdadeiro.
Os objetos sensíveis e os objetos inteligíveis – exemplificados pela matemática – são colocados sob suspeita, e por isso deles não pode derivar-se conhecimento algum.
O que resiste à dúvida
Resiste à dúvida a existência do sujeito que de tudo duvida. «Duvido – penso – logo existo» é uma verdade indubitável porque a existência de quem duvida não pode ser objeto de dúvida alguma.
Caraterísticas da primeira verdade

1. É primeira porque impõe-se no momento em que de tudo se duvida.
2. É primeira porque não deriva de nenhuma outra (teria de haver outra, o que não acontece).
3. É objeto de intuição existencial e não de dedução – será o ponto de partida de todas as deduções que faremos para construir o sistema firme dos conhecimentos.
4. É, por isso, o primeiro princípio do sistema de conhecimentos.
5. Corresponde à existência de um sujeito cuja natureza ou essência consiste em pensar.
6. É uma ideia ou verdade inata porque se impõe como absolutamente indubitável, independentemente da experiência. Nasce connosco e descobrimo-la como certeza sem apoio empírico.
7. É um critério ou modelo de verdade, dada a evidência, clareza e distinção com que se impõe.

Verdades indubitáveis que deduzimos da primeira verdade

1. A alma é distinta do corpo.
Todas as coisas sensíveis – incluindo o meu corpo – podem não passar de realidades que só existem em sonho. Mas existo, e disso não posso duvidar. Se não preciso do corpo para existir, então a alma – o que eu sou – é distinta do corpo e mais fácil de conhecer do que este.
2. Deus existe.
Se duvido e nada conheço a não ser que existo e sou um ser pensante, então sou imperfeito. Mas de onde veio esta ideia? Comparei as minhas qualidades com as que caraterizam um ser perfeito. Logo, sem a ideia de um ser perfeito – do que é ser perfeito –, não saberia que sou imperfeito.
Mas sou a causa desta ideia? Sou o seu autor? Não, porque ela representa mais perfeição do que a que possuo e poderia causar. Logo, só um ser perfeito é causa da ideia de perfeito. Quem é esse ser? É Deus. Logo, Deus existe.
A importância da existência de Deus como ser perfeito

1. Afasta-se a desconfiança no funcionamento correto do nosso entendimento.
Provado que Deus não pode enganar, podemos confiar nas operações do nosso entendimento/razão. O critério da evidência é fundamentado de modo que aquilo que considero claro e distinto – evidente – é claro e distinto, absolutamente indubitável.
1. Supera-se, em parte, o solipsismo.
Com efeito, Deus é um ser cuja existência não depende do sujeito pensante.
3. Deus é o fundamento metafísico das crenças verdadeiras. Garante-as absolutamente porque garante que as evidências atuais são realmente indubitáveis e também que o serão sempre. O conhecimento torna-se assim um conjunto de verdades objetivas, independentes do sujeito pensante.
A recuperação da crença na existência do mundo físico
Descartes apercebe-se de que há ideias das coisas que não são produzidas pelo sujeito pensante. Existindo, devem ter uma causa: as próprias coisas sensíveis. Esta propensão ou crença natural é legítima e fundada, dado que Deus, a quem a devo, não me engana.

O racionalismo cartesiano
1. A razão é a fonte ou origem do conhecimento.
Só as verdades descobertas pela razão e deduzidas desta têm direito ao título de conhecimento. O princípio do sistema dos conhecimentos é uma verdade puramente racional. Os sentidos não merecem confiança.
2. O ideal de conhecimento em Descartes é o de um sistema dedutivo análogo ao modelo do raciocínio matemático que sempre o deslumbrou.
De uma verdade indubitável – a existência do eu – deduz outras verdades que devem apresentar a mesma clareza e distinção. A matemática é um ideal metodológico e não a rainha das ciências, dado que esse estatuto de ciência primeira pertence à metafísica.
3. As ideias que desempenham um papel decisivo no conhecimento são ideias inatas.
Ideias como as de eu e de Deus formam-se no pensamento sem o contributo da experiência. São ideias que, mediante a reflexão puramente racional, a razão descobre em si, atualizando o que potencialmente existe na alma desde que existimos. O inatismo é a afirmação da autonomia da razão em relação à experiência.
4. A dúvida metódica está ligada à natureza racionalista da filosofia de Descartes.
A vontade de duvidar parte da ideia de que a razão não pode atingir a verdade, subordinando-se à experiência, aos sentidos. A dúvida cumpre a função de devolver a razão à plena posse de si mesma, torna-a autónoma ao libertá-la da dependência em relação aos sentidos e dos falsos pontos de partida.




EXERCÍCIOS
I
1. Qual é o objetivo do pensamento de Descartes?
O objetivo principal de Descartes é constituir um sistema de conhecimentos firme e seguro no qual não haja lugar para crenças ou opiniões falsas. Descartes define conhecimento como crença verdadeira justificada de forma que seja impossível ser falsa.
2. Qual é a função da dúvida?
A função da dúvida é separar o verdadeiro do falso, abrindo o caminho para uma verdade indubitável a partir da qual se poderá reconstruir um sistema de conhecimentos bem organizado.
3. Por que razão o primeiro nível da aplicação da dúvida (o do argumento das ilusões dos sentidos) significa que Descartes nega o empirismo?
O empirismo é a tese de que os sentidos são a origem do conhecimento. Ora, o argumento das ilusões dos sentidos mostra que os sentidos não são fontes seguras de conhecimento e, por esse motivo, nunca poderão fornecer a primeira verdade indubitável com base na qual reconstruir o conhecimento. Isso leva Descartes a negar que os sentidos são a fonte de conhecimento.
4. Que resultados atinge Descartes com os argumentos das ilusões dos sentidos e dos sonhos?
Com estes argumentos, Descartes mostra que os sentidos não são fontes fidedignas de conhecimento e que é possível duvidar da existência das coisas sensíveis. Em suma, que nem a crença na fiabilidade dos sentidos nem a crença na existência do mundo exterior são indubitáveis.
5. Que função tem no pensamento de Descartes o argumento do Deus enganador?
A função do argumento do Deus enganador é mostrar que nem as verdades de razão, em particular os conhecimentos da matemática, são imunes à dúvida.
 6. Que resultados atinge Descartes com a dúvida metódica?
Descartes mostra que nem as verdades de razão nem as verdades sensoriais, isto é, que nem as proposições a priori nem as proposições a posteriori são indubitáveis e, portanto, que aparentemente nem umas nem outras constituem o ponto de partida do conhecimento.
7. Pode a dúvida cartesiana ser considerada cética?
Não. A dúvida cética tem por objetivo mostrar que o conhecimento não é possível. A dúvida cartesiana tem o objetivo oposto, mostrar que há conhecimento, isto é, verdades indubitáveis.
8. Descartes afirma que os céticos não conseguem demonstrar que não há conhecimento. Porquê?
Porque há pelo menos uma verdade, «penso, logo, existo», que resiste a todas as dúvidas, mesmo as mais radicais. Essa verdade é justificada pela própria dúvida. Quando duvidamos, estamos a pensar e, se pensamos, somos necessariamente alguma coisa. Este é um conhecimento que nenhum cético consegue abalar.
9. Que função tem Deus no sistema de Descartes?
Deus tem duas funções principais: garantir a fiabilidade das nossas faculdades (razão e sentidos) e a existência do mundo físico, isto é, recuperar o que tinha sido posto em causa pela dúvida metódica.
10. Se voltámos ao ponto de partida, qual a vantagem de toda esta investigação?
Voltámos ao ponto de partida, isto é, recuperámos as crenças que a dúvida pôs em questão, mas agora podemos estar certos da sua verdade, coisa que anteriormente não era possível.
11. Distinga o conhecimento intuitivo do conhecimento dedutivo?
Conhecemos por intuição aquilo que se apresenta imediatamente como claro e distinto à mente, sem resultar de uma cadeia de raciocínios. Os conhecimentos que resultam de uma cadeia de raciocínios são aqueles que obtemos por dedução.
12. Mostre como Descartes prova a existência de Deus a partir da ideia de perfeito.
Eis o argumento da existência de Deus como Ser perfeito (não enganador):
PONTO DE PARTIDA. A ideia de um ser perfeito (a ideia de perfeito) existe no meu pensamento. A prova arranca com esta pergunta: qual a causa ou o autor da ideia de perfeito? A questão não é saber se essa ideia existe, mas sim saber qual a razão de ser ou causa da sua existência no sujeito pensante.
DUAS HIPÓTESES DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA. A causa da existência da ideia de perfeito ou é o sujeito pensante ou uma realidade diferente dele.
FORMULAÇÃO DO PRINCÍPIO DE CAUSALIDADE PARA DECIDIR QUAL DESTAS HIPÓTESES É VERDADEIRA. Em termos gerais, o princípio de causalidade diz que tudo tem uma causa. Em termos mais específicos, este princípio diz que no efeito não pode haver mais realidade do que na causa, ou seja, a causa não pode ser inferior ao efeito. A causa da ideia de perfeição tem de possuir formalmente (no seu ser) tanta perfeição quanto a que existe objetivamente na ideia.
O SUJEITO PENSANTE NÃO PODE SER A CAUSA DA IDEIA DE PERFEITO. Como já sabemos, o sujeito pensante é imperfeito. Sendo imperfeito, não pode ser causa da ideia de ser perfeito porque então haveria mais realidade no efeito do que na causa; o imperfeito não pode ser causa do que é perfeito. Se o sujeito pensante fosse a causa da ideia de ser perfeito (da ideia de Deus), teria de ser causa dos predicados que constituem a ideia de Deus. Como os predicados do ser perfeito são perfeições, o sujeito pensante teria de ser perfeito para ser o seu autor. Ora, isso não acontece. Logo, o sujeito pensante não pode ser a causa da ideia de perfeito.
DEUS, O SER PERFEITO, É A CAUSA NECESSÁRIA DA IDEIA DE PERFEITO. Se a ideia de um ser perfeito existe, necessariamente existe o ser perfeito que a «pôs» no sujeito pensante. Deus existe como causa da ideia de perfeito.

13. Tente criticar o argumento que Descartes usa para provar a existência de Deus como causa da ideia de perfeito (também conhecido como argumento da marca).
O princípio no qual se baseia o argumento – tem de haver pelo menos tanta realidade na causa de algo como no efeito – é contestável. Nesta ordem de ideias, a vida só poderia ser causada por coisas vivas. Ora, os cientistas afirmam hoje em dia que a vida evoluiu a partir de matéria inanimada. E não se vê como pode a existência de Deus ser uma evidência tão clara e distinta como a do sujeito pensante.
14. Só Deus garante que as minhas ideias claras e distintas são objetivas e verdadeiras. Ora, foi partindo de ideias claras e distintas – Existo como substância pensante, sou imperfeito – que Descartes provou a existência de um Deus em que podia confiar, de um Deus que é o garante de que, quando penso clara e distintamente algum objeto, não me engano. Não há algo de falacioso no raciocínio de Descartes?
Estamos perante aquilo que se convencionou chamar círculo cartesiano. Utiliza-se como instrumento de prova da existência de um Deus que vai garantir a objetividade das minhas ideias claras e distintas, precisamente o que depende da existência de Deus, ou seja, a crença de que as minhas ideias claras e distintas são verdadeiras. Por outro lado, como é o entendimento que se encarrega de provar a existência de Deus quando ainda pairam dúvidas sobre a sua capacidade, não será que também podemos duvidar da demonstração da existência de Deus?
O argumento parece circular. A existência de Deus é a garantia da veracidade das minhas ideias claras e distintas, mas é baseado nesta crença (na veracidade das ideias claras e distintas) que demonstro a existência de Deus.
15. Por que razão Descartes se empenha tanto em provar a existência de um ser perfeito? Qual o papel de Deus no sistema cartesiano?
A estabilidade da verdade é condição da ciência dedutiva que Descartes quer constituir. Não podemos prestar atenção a todas as verdades ao mesmo tempo porque a capacidade de atenção do nosso entendimento é muito restrita. Ora, se queremos constituir um corpo de conhecimentos científicos que progrida de verdade em verdade, que se torne cada vez mais amplo, não podemos, contudo, torná-las todas atualmente evidentes: temos de nos contentar em guardar as evidências na memória. O que me garante que a verdade não muda enquanto eu deixo de a conceber efetivamente, por outras palavras, o que me garante que as evidências às quais dei o meu assentimento continuam a ser evidências quando já nelas não penso, quando já não estão presentes efetivamente na minha consciência? Esta estabilidade da verdade que a hipótese do Deus enganador destruiria é agora garantida pela veracidade divina.


II
1

«Ora, depois de o conhecimento de Deus e da alma ter garantido a certeza dessa regra, é fácil compreender que os sonhos que imaginamos não devem de modo algum fazer-nos duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando acordados. [...] Todas as nossas ideias ou noções devem ter algum fundamento verdadeiro; porque não seria possível que Deus, que é inteiramente perfeito e verídico, as tivesse posto em nós sem isso.»
René Descartes, Discurso do Método, Parte IV, Lisboa, Ed. Sá da Costa, 1981, p. 33
Depois de ter descoberto o Cogito, Descartes procede à recuperação de tudo o que tinha sido posto em questão pela dúvida metódica. De que modo faz isso?
Orientações:
1. A função de Deus no sistema cartesiano.
2. A prova da existência de Deus.
3. A recuperação da confiança nas proposições matemáticas e racionais.
4. A recuperação da crença na existência do mundo exterior.
A superação da dúvida cética deixou-nos na posse de uma verdade indubitável, o Cogito. Esta verdade é, dada a sua natureza, a base de todo o conhecimento, porque toda e qualquer proposição que seja possível dela deduzir é, devido às relações lógicas que com ela mantém, igualmente verdadeira. No entanto, a descoberta do Cogito corresponde à posição solipsista, uma vez que tudo o que sabemos, nessas circunstâncias, é que existe um eu e as suas experiências mentais. Descobrir o Cogito, por si só, não permite, portanto, resgatar o que a dúvida metódica tinha posto em questão. Enquanto a hipótese do Deus enganador não for definitivamente afastada (e o Cogito por si só não o pode fazer), não há nenhuma garantia de que é verdade o que conhecemos com clareza e distinção nem de que existe uma realidade que corresponde e é a causa das experiências mentais. Ora, a única forma de afastar a hipótese do Deus enganador é provar que Deus existe e não é enganador. É, portanto, isso que Descartes vai fazer. E depois, com a ajuda de Deus, é possível a Descartes demonstrar que a clareza e distinção é o critério de verdade e que existe um mundo objetivo exterior ao Cogito.
O argumento que Descartes apresentou a favor da existência de Deus é o seguinte. Ao investigarmos o conteúdo da nossa mente, descobrimos aí a ideia de Deus, isto é, a ideia de um ser perfeito. Qual a causa desta ideia de perfeição que o Cogito descobre em si próprio? Existem duas alternativas possíveis: a ideia de perfeição tem origem no próprio Cogito ou a sua causa é exterior ao Cogito. Ora, o Cogito é imperfeito (se fosse perfeito, não duvidaria), e como, segundo Descartes, para que uma coisa seja causa de outra tem de possuir pelo menos tanta realidade quanto o efeito a que der origem, não pode, por isso, ser a origem da ideia de perfeição. Qual é, então, a causa da ideia de perfeição que o Cogito descobre em si? A resposta de Descartes é a de que a ideia de perfeição tem de ter origem num ser que é ele próprio perfeito, isto é, em Deus, e, portanto, Deus tem de existir.
A dúvida metódica pôs em questão a fiabilidade das nossas faculdades racionais e a existência do mundo físico, em parte recorrendo à possibilidade de sermos vítimas de um Deus enganador. Ora, uma vez que Deus é perfeito, não é enganador. E, se Deus não é enganador, o que a mente concebe clara e distintamente não pode ser falso. A veracidade divina garante a fiabilidade das nossas capacidades racionais e, portanto, é eliminada a hipótese de nos estarmos a enganar quando aceitamos como sendo verdadeiro aquilo que a mente concebe com clareza e distinção.
Mas como posso estar certo de que o mundo existe? Como recupera Descartes a crença na existência do mundo exterior? Concebo clara e distintamente que sou uma substância pensante, que Deus existe e não me engana e que posso confiar no meu entendimento quando concebe que as coisas sensíveis são extensas. A minha razão, por si só (a priori), permitiu-me conhecer tudo isso de modo indubitável a partir do Cogito.
O problema da existência do mundo, no entanto, não pode ser resolvido dessa forma pelo nosso entendimento. O máximo que a razão nos pode assegurar é da existência e veracidade divina. O que nos leva a crer na existência do mundo é um sentimento obscuro, embora seja, segundo Descartes, uma certeza intensa na qual devemos confiar. Certas sensações que eu experimento acontecem contra a minha vontade. Não sou o seu autor, pois então acontecem quando eu quiser e como eu quiser. Essas sensações exigem a existência de algo de exterior a mim que seja a sua causa. A crença de que são as coisas corpóreas ou sensíveis a causa das sensações é uma crença irresistível, ou seja, uma espécie de ensinamento da natureza e um instinto. De tal modo assim é que, para a considerar falsa, teríamos de supor um Deus enganador, o que sabemos agora ser impossível. Logo, é preciso «confessar» que as coisas corpóreas existem.

2
Mostre como Descartes alcança, por intermédio da dúvida, a primeira verdade indubitável do sistema dos conhecimentos.
Na sua resposta, contemple os seguintes tópicos:
1. O projeto de Descartes quanto ao problema do conhecimento.
2. A natureza e a função da dúvida.
3. Os «conhecimentos» que examina em busca da primeira verdade.
4. O duplo resultado do exercício da dúvida.

Tendo como projeto reorganizar e fundamentar o conjunto dos conhecimentos, Descartes decide que o novo sistema dos conhecimentos terá de apresentar as seguintes caraterísticas:
1 – Ser constituído por bases ou princípios que resistam a qualquer dúvida, isto é, que sejam absolutamente evidentes (como diz a regra da evidência, não podem suscitar a mínima suspeita de que sejam falsos).
2 – Ser organizado de tal forma que os conhecimentos derivem na devida ordem dos primeiros princípios que foram estabelecidos.
Como encontrar conhecimentos absolutamente indubitáveis? Como encontrar verdades sobre as quais não possa recair a mínima suspeita de falsidade?
Utilizando a dúvida como instrumento de exame crítico dos conhecimentos. De todos? Não. Seria impossível analisá-los um a um. Descartes decide que vai submeter a exame crítico os «alicerces do edifício do conhecimento», ou seja, as bases ou princípios gerais em que se baseia.
Para que a dúvida metódica esteja intimamente ligada à primeira regra do método que identifica o verdadeiro com o absolutamente verdadeiro, evidente ou completamente claro e distinto (não há meio termo entre o verdadeiro e o falso), ela terá de ser estrategicamente hiperbólica. Isto quer dizer o seguinte: qualquer crença será considerada falsa se nela detetarmos a mínima fragilidade e qualquer faculdade que usamos para conhecer será rejeitada como sempre enganadora se alguma vez nos tiver enganado.
Mediante este princípio hiperbólico de aplicação da dúvida, Descartes pretende separar radicalmente o verdadeiro do falso para encontrar conhecimentos que sejam:
A – Fundamentais ou fundantes: deles dependerão todos os outros conhecimentos;
B – Absolutamente verdadeiros ou indubitáveis para que as bases do sistema do saber sejam indiscutivelmente sólidas e firmes.
Então, apliquemos a dúvida, examinemos de forma implacável os princípios em que o saber tradicional assenta.
Descartes começa por examinar criticamente a ideia de que os sentidos são o ponto de partida do conhecimento. Rejeita, contudo, que o conhecimento derive da experiência sensível porque, aplicando a regra hiperbólica associada à dúvida, se apercebe facilmente de que, enganando-nos algumas vezes, os sentidos não são de confiar quanto às informações que nos dão sobre as propriedades das coisas sensíveis. A rejeição do empirismo está desde já claramente estabelecida: o conhecimento não começa com a experiência porquê não pode começar com o que várias vezes nos ilude. O que me engana algumas vezes não merece o mínimo crédito.
E as coisas sensíveis ou físicas – o mundo físico ou material, natural – sobre as quais os sentidos nos transmitem tantas informações erradas? Será que a crença na sua existência está ao abrigo de qualquer dúvida? Será que esta crença pode ser o indubitável princípio do sistema dos conhecimentos?
Parece absurdo pôr em causa a existência real de coisas físicas, mas lembremos que, de acordo com a regra hiperbólica de aplicação da dúvida metódica, basta uma leve e frágil suspeita – que não deixa por isso de ser suspeita e motivo de desconfiança – para que uma crença seja declarada falsa. Baseado na dificuldade em encontrar um critério que distinga de forma absolutamente clara o sonho da realidade, o que vivemos acordados e o que vivemos a dormir, Descartes argumenta que, por mais frágil que seja o argumento, temos razão para duvidar de que as coisas físicas existam realmente. Não é verdade que vivemos tão intensamente o que nos acontece durante os sonhos e o que nos acontece no estado de vigília? O mundo físico pode ser um sonho, uma ilusão e não uma realidade. A crença na sua real existência é colocada sob suspeita e hiperbolicamente considerada falsa.
Deixemos o plano dos sentidos e das coisas sensíveis – o mundo físico ou sensível. Parece que agora a dúvida encontrará algo que lhe resista completamente. Não é verdade que objetos inteligíveis como os conhecimentos matemáticos gozam de uma credibilidade a toda a prova. Parece insensato pôr em causa que 2 + 2 = 4. Mas lembremos: basta uma frágil suspeita, uma razão minimamente perturbadora, para pôr em causa certos conhecimentos. Debrucemo-nos sobre os mais simples. Se puderem ser objeto de dúvida, mais facilmente o serão os mais complexos. Acreditamos que 2 + 2 = 4. Parece inconcebível duvidar disto. Mas…. mas ouvi dizer que Deus me criou e que, criando-me, criou o meu entendimento depositando nele algumas verdades elementares como 2 + 2 = 4. Ora, também se diz do meu suposto criador que é omnipotente. Omnipotente? Quer dizer que… é capaz de tudo. HUM… Se é capaz de tudo, o que me garante que não tenha criado o meu entendimento destinando-o ao erro sem disso me informar? O que me garante que Deus não seja um ser maligno que se diverte a enganar-me e a baralhar o meu entendimento, levando-o a considerar verdadeiro o que pode ser falso e falso o que pode ser verdadeiro. Esta hipótese parece demasiado «metafísica», o cúmulo do absurdo, mas a verdade é que a suspeita se instala. E, como basta suspeitar por pouco que seja de uma crença para a considerar falsa, então devemos reconhecer que as supostas verdades matemáticas podem ser falsidades.
Chegado a este ponto, Descartes pensa: todos os conhecimentos, quer os respeitantes a objetos sensíveis quer os referentes a objetos inteligíveis, estão sob suspeita. Não resistiram ao exame da dúvida. Hiperbolicamente, diremos que são todos falsos. Mas, se tudo é falso, não será que falhou o projeto de encontrar um conhecimento indubitável que seja o primeiro princípio em que assentam todos os conhecimentos. Não estamos condenados ao ceticismo, à ideia de que não há conhecimentos verdadeiros.
Descartes pensa com mais profundidade: se o exercício da dúvida me conduziu a este ponto, devo reconhecer que a dúvida é um ato que tem de ser exercido por alguém, por um sujeito. O sujeito que tudo pôs em causa não pode pôr em causa a sua existência, não há como fazê-lo. O exercício da dúvida é a «prova» de que ele existe. Como duvidar é um ato do pensamento, devo dizer que «penso – duvido de todos os conhecimentos neste momento –, logo, existo». A existência do sujeito que pensa é a condição sem a qual não é possível duvidar.
«Penso, logo, existo» – cogito ergo sum – é a primeira e absoluta verdade que encontramos. Dela, por mais que nos esforcemos não podemos duvidar. Será por isso o primeiro princípio do sistema dos conhecimentos que dele iremos deduzir de forma puramente racional. Temos lançada a primeira pedra do «edifício» dos conhecimentos. O termo cogito costuma usar-se como abreviatura desta primeira verdade.

MÓDULO 4
O conhecimento e a racionalidade científico-tecnológica
UNIDADE 1
Descrição e interpretação da atividade cognoscitiva
CAPÍTULO 3
Análise comparativa de duas teorias do conhecimento: o empirismo de David Hume

1. Em que consiste o projeto de David Hume?
O projeto de David Hume consiste em analisar a mente humana para determinar as capacidades e os limites do entendimento humano.
2. Quais são os conteúdos da mente?
Os conteúdos da mente são as perceções. Hume divide-as em dois tipos: impressões e ideias.
3. O que distingue as impressões das ideias?
As impressões distinguem-se das ideias pelo grau de força e vivacidade com que se apresentam na mente. Há dois critérios para as distinguir: a) a força e vivacidade com que umas e outras se apresentam. Assim, as ideias são perceções menos intensas e fortes do que as impressões, de que são imagens mentais; b) a ordem ou sucessão temporal da sua apresentação. Assim, como as ideias são imagens das impressões, uma impressão é necessariamente anterior a uma ideia.
4. Que relação estabelece o princípio da cópia entre impressões e ideias?
Segundo o princípio da cópia, as ideias são cópias das impressões. As cópias são menos intensas e vívidas do que as impressões, que estão na sua origem.
5. Por que razão o princípio da cópia implica que não há ideias inatas?
Se as ideias são cópias de impressões e são por isso causadas por estas, então têm uma origem empírica. As nossas ideias formam-se todas a partir da experiência.
6. Como argumenta Hume a favor do Princípio da Cópia?
Hume argumenta que, se as ideias não fossem cópias das impressões, quem não possuísse a capacidade de ter a experiência da cor formaria a ideia de cores, o que é absurdo. Uma pessoa cega de nascença não poderá ter a ideia de branco porque nunca terá a impressão de branco.
7. Que teses empiristas são expressas pelo princípio da cópia?
São as seguintes: do que não há impressão não há ideia. Só conhecemos aquilo de que temos experiência.
8. Impressões e ideias são as unidades básicas do conhecimento. Que tipos de conhecimento existem segundo Hume?
Existem conhecimentos formais (de relações de ideias) e conhecimentos de facto ou factuais.
9. O que distingue conhecimentos de facto de conhecimento de ideias?
Os conhecimentos de ideias ou a priori são constituídos por proposições cuja verdade é necessária ou logicamente impossível de negar e, em geral, por raciocínios demonstrativos ou dedutivos absolutamente certos. Os conhecimentos de factos ou a posteriori são constituídos por proposições cuja verdade é contingente ou logicamente possível de negar e por raciocínios indutivos que não podem aspirar à certeza absoluta
10. Em que se baseiam os nossos conhecimentos de factos?
Baseiam-se na relação de causa e efeito e em raciocínios indutivos. O pressuposto destas relações e inferências é a crença na uniformidade da natureza.
11. Que elementos estão presentes na ideia de relação causal?
Na relação causal estão presentes elementos que são alvo de observação direta (a contiguidade e sucessão ou conjunção constante de dois factos) e que são inferidos (a ideia de que um acontecimento deve necessariamente produzir outro – a ideia de conexão necessária).
12. Por que razão associamos a ideia de causa à ideia de conexão necessária?
Porque entendemos a ligação entre causa e efeito como uma relação que acontece sempre e não só quando observamos dois eventos conjugados e sucedendo um ao outro. Sempre que dois acontecimentos aparecem regularmente conjugados, julgamos que a um se segue necessariamente o outro, de tal modo que a causa tem o poder de necessária ou inevitavelmente produzir o outro.
13. Pode a experiência – o único critério de verdade dos juízos de facto – provar essa conexão necessária?
Não. Quando dizemos que um acontecimento (A) causa necessariamente outro (B), dizemos que A causa sempre B. Ora, causar sempre significa que causou, causa e causará. Mas isto implica que teríamos de ter a impressão deste poder causal no futuro. Contudo, de acontecimentos futuros não temos qualquer impressão sensível. Logo, a experiência não encontra nenhuma impressão que corresponda à ideia de conexão necessária.
14. A que se deve então a nossa crença de que há acontecimentos que estão necessariamente conetados?
Deve-se a um fator psicológico: o hábito. Transformamos uma relação de sucessão temporal constante entre dois factos – a única coisa que a experiência nos pode dar – numa conexão necessária porque habituados a observar dois acontecimentos constantemente conjugados julgamos um não pode acontecer sem o outro. O costume ou hábito gera em nós a crença, a convicção de que aquilo a que chamamos efeito deve seguir-se àquilo a que chamamos causa.


15. Os nossos raciocínios relativos ao conhecimento do mundo têm caráter indutivo?
Sim. O que habitualmente fazemos são generalizações e previsões. Assim, quando supomos que um acontecimento causa sempre outro, prevemos que o surgimento do primeiro será seguido pelo surgimento do segundo.
16. Em que se baseiam as nossas relações causais e a confiança que depositamos nos raciocínios indutivos?
Baseiam-se na crença da uniformidade da natureza, na suposição de que o que sucedeu no passado voltará a acontecer no futuro do mesmo modo.
17. Podemos justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza?
Não porque se trata de uma crença indutiva para a qual só encontramos uma justificação de tipo indutivo, o que é falacioso. Usa-se como justificação o que precisa de ser justificado.
18. O que conclui Hume da sua análise dos problemas da causalidade e da indução?
Conclui que o conhecimento do mundo não é possível porque não podemos justificar nem a crença na causalidade nem a crença na indução. Apesar desta conclusão, há razão para não considerar Hume um cético radical. O conhecimento do mundo não tem um fundamento objetivo, mas o hábito assume o papel de princípio produtor de uma crença natural segundo a qual o mundo funciona como julgamos que funciona.

                           RESUMO DA TEORIA DO CONHECIMENTO DE DAVID HUME
Projeto

Investigar as capacidades e os limites do entendimento humano no que respeita ao conhecimento do mundo de modo a evitar especulações inúteis e a determinar se e o que podemos saber.
Estratégia

Estratégia
Analisar os conteúdos da mente.
Os conteúdos da mente
Os conteúdos da mente são as impressões e as ideias.
Impressões e ideias são as unidades básicas do conhecimento.
Segundo o Princípio da Cópia, as ideias são cópias das impressões. As cópias são menos intensas e vívidas do que as impressões que estão na sua origem.
As ideias são cópias de impressões e são por isso causadas por estas. Têm uma origem empírica. As nossas ideias formam-se todas a partir da experiência.
Se as ideias não fossem cópias das impressões, quem não possuísse a capacidade de ter a experiência da cor formaria a ideia de cores, o que é absurdo. Uma pessoa cega de nascença não poderá ter a ideia de branco porque nunca terá a impressão de branco.
O Princípio da Cópia e o empirismo
Do que não há impressão não há ideia. Só conhecemos aquilo de que temos experiência. O conhecimento começa com a experiência e daquilo de que não há experiência não há conhecimento
O problema do conhecimento do mundo ou conhecimento factual
A matemática e a lógica dão-nos verdades necessárias, mas não nos dão conhecimentos sobre o mundo. Por isso, o problema da possibilidade do conhecimento é o de saber se podemos conhecer os factos do mundo.
Em que consiste o nosso conhecimento dos factos do mundo
O nosso conhecimento do mundo consiste – esquecendo as observações simples como ver o Sol nascer – em explicações, generalizações e previsões. As explicações implicam o recurso à ideia de relação entre causa e efeito. As generalizações e as previsões são formas de raciocínio indutivo. Assim, o nosso conhecimento do mundo baseia-se essencialmente na relação causa e efeito e em inferências indutivas. Como os argumentos dedutivos se limitam às relações entre ideias, não servem para conhecer factos.
O pressuposto fundamental do nosso conhecimento do mundo
Explicamos factos, generalizamos observações particulares e efetuamos previsões. O que subjaz a estas atividades é a crença de que o mundo se comporta de forma regular ou uniforme. A crença na uniformidade da natureza é a que está na base da nossa relação de conhecimento com os factos que constituem o mundo.
Em que consiste justificar a possibilidade de conhecimento dos factos do mundo
Consiste em tentar provar que é verdade o seguinte:
1. Que a ideia de conexão necessária dos fenómenos do mundo é uma propriedade objetiva das coisas (não é uma simples ideia).
2. Que os raciocínios indutivos se exprimem, em princípio, pelo conhecimento dos factos, que nos permitem atingir conclusões verdadeiras.
A resolução destes dois problemas depende da solução de um problema mais fundamental: provar que é verdade que a natureza – os factos do mundo ‒ se comporta de forma regular e uniforme.

Primeira conclusão cética: Não é possível provar que a ideia de conexão necessária é verdadeira.
Não podemos provar que acontecimentos que supomos causalmente relacionados estejam conetados necessariamente. Como conhecer é explicar os factos estabelecendo uma conexão necessária entre eles, o conhecimento objetivo do mundo não é possível.
 Por que razão se chega a esta conclusão?
Porque, se todo o conhecimento depende da experiência, esta não nos dá contudo qualquer prova (qualquer impressão) de uma conexão necessária entre acontecimentos. Podemos pensar que certos acontecimentos são causas de outros, mas tal crença não pode ser justificada pela experiência. A experiência nada mais nos mostra do que uma conjunção constante entre certos factos, mas nunca uma ligação necessária que faça de um a causa sem a qual o outro não existe ou acontece.
Segunda conclusão cética:
O nosso conhecimento do mundo não se pode basear na indução.
«A causa B» significa que A produz B ou que B é e será sempre seguido de A. Até agora tem sido assim e assim continuará a ser. Esta crença exprime-se mediante um argumento indutivo, argumento que nos leva para lá da experiência ou da observação empírica.
Qualquer argumento indutivo, tal como a ideia de conexão necessária, pressupõe a ideia de uniformidade da natureza, que esta se comporta sempre do mesmo modo ou que é previsível. Mas essa ideia só poderia ser justificada mediante o recurso a um argumento indutivo. Ora, isso é fazer do que se pretende provar uma forma de prova, o que consiste numa petição de princípio (não é logicamente legítimo que, mediante a indução, que depende da ideia de uniformidade da natureza, provemos a verdade desta ideia).
Assim, o nosso conhecimento do mundo não se pode basear nem em argumentos dedutivos – não tratam de factos – nem em argumentos indutivos (da ideia de uniformidade da natureza na qual os argumentos indutivos se baseiam não podemos ter qualquer experiência).
Conclusão cética global: O conhecimento objetivo não é possível.
O conhecimento do mundo não é possível. Formamos ideias acerca do modo como as coisas do mundo são ou funcionam, mas não podemos pretender alcançar nem verdades indiscutíveis – certezas – nem verdades prováveis.

Em que consiste o nosso conhecimento do mundo




O nosso conhecimento do mundo não é constituído nem por certezas nem por verdades prováveis. Não possuímos crenças verdadeiras objetivamente justificadas.
Mas possuímos crenças que, não tendo um fundamento racional ou empírico, encontram no hábito ou costume uma forte base psicológica. As nossas inferências indutivas e a crença na conexão necessária entre fenómenos baseiam-se no hábito. Sem qualquer faculdade que nos permita resolver questões de facto, não deixamos de explicar, de prever acontecimentos e, assim, de agir no mundo. O hábito é o conhecimento transformado em crença indispensável.
O empirismo de David Hume

Podemos caraterizar o empirismo de Hume do seguinte modo:
1. Baseado na investigação das capacidades do entendimento humano, afirma que o conhecimento começa com a experiência e não pode ir além dela.
2. Analisando os conteúdos da mente envolvidos no ato de conhecer, conclui que a afirmação anterior tem a ver com o facto de que não há conhecimento de ideias a que não corresponda uma impressão sensível.
3. Se do que não há impressão não há ideia, não há ideias inatas.
4. As relações causais que estabelecemos entre os factos e as inferências que nos levam para lá da «memória e dos sentidos», ou seja, as inferências indutivas, não têm fundamento empírico. Para lá da «memória e dos sentidos» não há impressão que justifique a crença de que há uma relação de necessidade entre causa e efeito e de que o mundo continuará a ser como até agora tem sido.
5. O nosso conhecimento do mundo não é constituído nem por verdades indubitáveis nem por verdades prováveis. O empirismo de Hume é, de certa forma, um ceticismo.
6. Não podemos provar que conhecemos os factos do mundo, mas não podemos deixar de acreditar que conhecemos. O conhecimento é uma crença em cuja verdade podemos confiar, mesmo que não a possamos justificar. Devemos deixar-nos guiar pelo hábito.

QUADRO ComparATIVO Das teorias do conhecimento de Descartes e de Hume
TEMAS
DESCARTES
HUME


PROJETO


Encontrar princípios racionais indubitáveis de modo a justificar que o sistema do conhecimento seja constituído por verdades absolutamente certas.
Efetuar uma análise da mente que revele quais as capacidades e os limites do entendimento humano.


ORIGEM DO CONHECIMENTO
O conhecimento entendido como certeza absoluta não pode principiar com a experiência porque os sentidos não são fiáveis. Descartes não é empirista. É racionalista.
Todo o conhecimento começa com a experiência porque todas as nossas ideias são causadas por impressões das quais são cópias. Hume não é racionalista. É empirista.

OS CONTEÚDOS DO ENTENDIMENTO
Nem todas as ideias são inatas, mas o conhecimento funda-se em ideias inatas ou puramente racionais.
Todas as nossas ideias têm uma origem empírica, mesmo as mais complexas e abstratas. São cópias de impressões sensíveis. Por isso não há ideias inatas. O empirismo rejeita o inatismo.
AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO
Mediante a intuição, descobrimos o princípio primeiro e indubitável do sistema do saber. Por dedução, inferimos por ordem outras verdades indubitáveis sobre a relação alma – corpo, Deus e o mundo.
A intuição e a dedução limitam-se ao conhecimento formal das matemáticas e da geometria. Esses conhecimentos a priori são indubitáveis, mas nada de indubitável podemos conhecer sobre o mundo e o que ultrapassa a experiência. O conhecimento de factos depende de raciocínios indutivos. As verdades sobre o mundo, caso existam, não podem ser estabelecidas dedutivamente.
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO
O conhecimento é possível, sendo um conjunto de verdades absolutamente indubitáveis sobre a alma – o eu –, Deus e o mundo.
O conhecimento de factos não é possível. Nem a razão nem a experiência nos dão verdades objetivas sobre o mundo. Temos crenças, mas não conhecimentos. As únicas verdades indubitáveis são as da matemática e da lógica.

A JUSTIFICAÇÃO DO CONHECIMENTO


Podemos justificar as nossas crenças ou opiniões verdadeiras porque há um princípio racional indubitável do conhecimento – o Cogito – e um fundamento absolutamente confiável – Deus – que garante a verdade das nossas ideias claras e distintas.
Não há justificação nem empírica nem racional para o conhecimento do mundo. O conhecimento é um produto do hábito e não da razão. É uma crença natural que só traduz a nossa necessidade de acreditar que conhecemos como o mundo é e funciona.
OS LIMITES DO CONHECIMENTO
Aplicando corretamente a nossa faculdade de conhecer, podemos alcançar verdades indubitáveis sobre o mundo físico e sobre realidades que ultrapassam a experiência. A metafísica é a ciência fundamental, a raiz da «árvore do saber».
Do que não há experiência não pode haver conhecimento. Por isso não há conhecimento de realidades metafísicas (Deus e a alma). A metafísica não é uma ciência. Nem mesmo do mundo temos conhecimentos certos e seguros.
O nosso conhecimento da realidade é constituído por verdades indubitáveis.
O nosso conhecimento do mundo não é constituído nem por verdades indubitáveis nem por verdades prováveis.





                                                    
EXERCÍCIOS
1. De que depende o nosso conhecimento acerca de questões de facto?
O nosso conhecimento de questões de facto depende da relação de causa-efeito e dos raciocínios indutivos e, em última análise, da crença no Princípio da Uniformidade da Natureza . Os conhecimentos acerca de questões de facto que vão para além da experiência imediata ou passada baseiam-se na relação de causa-efeito e nos raciocínios indutivos. O nosso conhecimento do mundo consiste em descobrir que acontecimentos dão origem a outros e em estabelecer relações causais entre eles. Por exemplo: o enunciado «A queda dos corpos resulta da força da gravidade» estabelece uma relação de causa-efeito entre a força da gravidade (causa) e a queda dos corpos (efeito). Por relação causal entendemos uma conexão necessária entre acontecimentos de tal ordem que, sempre que, em certas condições, um deles acontece, acontece também inevitavelmente o outro. É nesta conexão entre acontecimentos que, supostamente, tem origem a nossa ideia de relação causal. Outro ingrediente essencial do nosso conhecimento do mundo são os raciocínios indutivos. Sempre que queremos ir além da mera experiência imediata ou passada, temos de raciocinar indutivamente, fazendo previsões e generalizações. São os raciocínios indutivos que me permitem afirmar que o Sol vai nascer amanhã (previsão) ou que um corpo dilata sempre que é aquecido (generalização). Na base de todos os raciocínios está, segundo Hume, a crença no Princípio da Uniformidade da Natureza. Assim, para determinar se o conhecimento acerca de questões de facto está justificado, pensa Hume, é necessário averiguar se as crenças na causalidade e na uniformidade da natureza estão justificadas

2. Em que consiste a ideia de relação de causa-efeito ou de causalidade?
Consiste na ideia de conexão necessária entre acontecimentos, isto é, na ideia de que, sempre que, em certas condições, acontece A, acontece inevitavelmente B, de tal maneira que A produz necessariamente B.
3. Segundo Hume, todo o conhecimento acerca de questões de facto que vá além da experiência imediata (ou passada) baseia-se na relação de causa-efeito. Será que podemos justificar esta relação?
Não. Ou a relação de causa e efeito pode ser conhecida a priori ou baseia-se inteiramente na experiência. Ora, segundo Hume, esta relação não pode ser conhecida a priori. Se fosse possível saber sem recurso à experiência que certos factos têm o poder de causar outros, poderíamos antecipar, sem nunca ter visto algo semelhante, que o impacto de uma bola de bilhar noutra bola de bilhar produz o movimento da segunda. No entanto, sem experiência não é possível saber nenhuma destas coisas. A experiência também não pode justificar a relação de causa e efeito. A experiência apenas pode revelar entre dois acontecimentos uma sucessão e conjunção constante, e nada permite afirmar que o primeiro tenha realmente poder para produzir o segundo, estabelecendo assim uma relação de dependência necessária do efeito em relação à causa. Portanto, o conhecimento da relação de causa-efeito não pode ser obtido a priori – independentemente da experiência – nem a posteriori – por intermédio da experiência.
4. Explique, de acordo com a filosofia do conhecimento de David Hume, a relação entre hábito e inferência causal.
Para Hume, a nossa ideia de inferência causal não tem uma origem objetiva, isto é, na própria realidade, mas é o resultado de um mecanismo psicológico subjetivo a que dá o nome de hábito. Não existe qualquer justificação, racional ou empírica, para a nossa crença na existência de relações causais. É o hábito baseado em repetições passadas, em que sempre que um fenómeno ocorria um outro se lhe seguia, que nos leva a crer, isto é, ter a expetativa de que um é causa e o outro efeito e que estão necessariamente conetados. Com base no hábito e não na razão ou nos próprios objetos, acreditamos na repetição futura dos acontecimentos.
A explicação de Hume baseia-se em fatores psicológicos. Transformamos uma sucessão temporal regular em relação causal ou necessária devido ao costume ou ao hábito: habituados a ver que B sucede regularmente a A, acreditamos que A é a causa necessária de B, isto é, que sempre assim será. Na verdade, o que acontece é que, por nos habituarmos a ver dois objetos sucederem-se um ao outro do mesmo modo, criamos a tendência para crer que, aparecendo o primeiro, aparecerá também o segundo. Nada mais ilusório do que esta relação de dependência, porque transformou-se uma relação de mera sucessão temporal (o antes e o depois) em relação causal. Não há, segundo Hume, qualquer fundamento objetivo na experiência que confirme esta relação. Assim, o princípio de causalidade considerado um princípio racional e objetivo nada mais é do que uma crença subjetiva, o produto de um hábito, a transformação de uma expetativa em realidade. O conceito de causa é o resultado de uma necessidade psicológica. O hábito de vermos um dado acontecimento ser seguido por outro leva-nos a crer que existe uma conjunção necessária entre esses acontecimentos. Por conseguinte, a ideia de relação de causa e efeito é o produto da subjetividade humana e não temos razões para afirmar que tem correspondência na realidade objetiva.
5. Explique de que modo a análise efetuada por David Hume ao princípio de causalidade se harmoniza com o empirismo.
A análise de David Hume ao princípio de causalidade harmoniza-se com o empirismo do seguinte modo: para Hume, uma ideia só é verdadeira se tiver uma impressão que lhe corresponda. Por conseguinte, a verdade das ideias é, em última instância, determinada pela experiência. E esta é uma tese central do empirismo. À ideia de causa não corresponde qualquer impressão sensível. Que regularmente vejamos ou tenhamos visto B acontecer depois de A não nos permite estabelecer uma relação causal objetiva, ou seja, que B acontecerá necessariamente depois de A. A experiência – para Hume o único critério quanto a questões de facto – permite-me captar uma sucessão regular entre dois fenómenos, mas não uma sucessão necessária (ou seja, só permite ver o que acontece aqui e agora e não o que sempre acontecerá). Pela experiência, sabemos que no passado a água ferveu, mas não é legítimo concluir que no futuro sempre ferverá. E, contudo, acreditamos – e é útil que acreditemos – que o aquecimento da água é a causa necessária da sua fervura.
6. Segundo Hume, a confiança nos nossos raciocínios indutivos tem fundamento racional e objetivo? Justifique.
Não. A indução ou é justificada de forma estritamente racional (a priori, independentemente da experiência) ou de forma a posteriori (por intermédio da experiência).
A indução não pode ser justificada com base na razão. Se a indução fosse racionalmente justificável, então bastaria o facto de as premissas serem verdadeiras para que a conclusão fosse verdadeira (isto é, seria um argumento dedutivo com forma válida). Mas não é assim. A conclusão de um argumento indutivo, mesmo no caso em que as premissas são verdadeiras, pode ser sempre falsa. Portanto, a indução não pode ser justificada nem por intermédio da razão.
A indução também não pode ser justificada empiricamente, isto é, por intermédio da experiência. Por exemplo, diremos, com base na experiência, que o Sol vai nascer amanhã, porque sempre nasceu até hoje. Isto significa que acreditamos que o futuro será como o passado e que, por causa disso, podemos estar confiantes de que o Sol nascerá amanhã. Mas que razões temos para acreditar que o futuro será como o passado, que justificação temos para crer na uniformidade da natureza? Uma vez mais, apenas a experiência passada. Assim, a nossa crença na uniformidade da natureza tem por fundamento a indução. Ora, justificar a indução por intermédio da indução é raciocinar em círculo (é como dizer «o que justifica a indução é a indução»). Além disso, a experiência passada nunca pode garantir a verdade da conclusão de um raciocínio indutivo (que diz sempre respeito a casos que não são abrangidos por essa experiência expressa pelas premissas). Portanto, a indução não pode ser justificada.
7. Por que razão não podemos justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza?
Todo o nosso conhecimento do mundo tem origem na experiência e, se quisermos ir além da experiência imediata ou passada, temos de raciocinar indutivamente. Segundo Hume, a confiança que depositamos nos raciocínios indutivos depende do princípio de que a natureza é uniforme, o que significa que este princípio ocorre como uma premissa implícita em todos eles. Assim, o problema é como justificar este princípio. Hume afirma que não é possível justificar a priori o Princípio da Uniformidade da Natureza, porque só podemos conhecer a priori verdades necessárias. Ora, uma proposição é uma verdade necessária se e só se a sua negação implicar uma contradição. Não é isto que se passa com o Princípio da Uniformidade da Natureza porque a ideia de a natureza não ser uniforme é perfeitamente inteligível.
Mas também não é possível justificar empiricamente o Princípio da Uniformidade da Natureza, porque qualquer justificação a posteriori desse princípio incorre numa petição de princípio, ou seja, baseia-se num argumento indutivo, que por sua vez se baseia na crença na regularidade e uniformidade – sempre o mesmo – do comportamento da natureza. Portanto, o Princípio da Uniformidade da Natureza não pode ser conhecido a priori – de forma puramente racional – nem a posteriori – por meio da experiência. Como o Princípio da Uniformidade da Natureza não pode ser justificado nem a priori nem a posteriori, não temos qualquer razão para pensar que a natureza seja regular e, portanto, a maioria das nossas crenças acerca do mundo não tem justificação.
II
1. «Das ideias que ocorrem na metafísica não as há mais obscuras e incertas do que as de poder, força, energia ou conexão necessária […] Por conseguinte, esforçar-nos-emos, nesta secção, por fixar, se possível, o significado preciso destes termos e remover, desse modo, parte da obscuridade que tão lamentada é neste tipo de filosofia.
Parece uma proposição, não suscetível de muita discussão, que todas as ideias são apenas cópias das nossas impressões ou, por outras palavras, que nos é impossível pensar qualquer coisa que previamente não tenhamos sentido, quer pelos nossos sentidos externos ou internos. Esforcei-me por explicar e demonstrar esta proposição e expressei a esperança de que, mediante uma conveniente aplicação dela, os homens possam alcançar uma maior claridade e precisão nos raciocínios filosóficos do que a que, até agora, conseguiram obter.»

David Hume, Investigação Sobre o Entendimento Humano

Tomando o texto como ponto de partida, esclareça o ponto de vista de Hume acerca da ideia de conexão necessária.

Os filósofos racionalistas consideravam que existe uma relação causal entre acontecimentos, isto é, uma conexão necessária entre acontecimentos que faz com que à ocorrência de um deles se siga sempre necessariamente a ocorrência do outro. Mas, segundo Hume, é impossível pela mera análise de um acontecimento, tido como causa, descobrir os supostos efeitos a que dá origem (Adão, nunca poderia a priori, isto é, anteriormente à experiência, saber que a água afoga) e, portanto, a ideia de relação causal não tem um fundamento racional e não pode ser necessária. Mas, também não tem fundamento na experiência. Para que a ideia de relação causal tivesse fundamento na experiência, teria de haver uma impressão correspondente, uma vez que todas as ideias derivam e correspondem às impressões. No entanto, a experiência não nos dá qualquer impressão correspondente à ideia de uma conexão necessária, mostra-nos apenas a existência de uma conjunção constante de acontecimentos. Temos a impressão do acontecimento A e, seguidamente, do acontecimento B. Portanto, a ideia de conexão necessária não tem um fundamento na razão nem na experiência. Ela é o resultado do mecanismo psicológico do hábito ou costume. O hábito de vermos um dado acontecimento ser seguido por outro leva-nos a crer que existe uma conjunção necessária entre esses acontecimentos. Por conseguinte, a ideia de relação de causa e efeito é o produto da subjetividade humana, e não temos razões para afirmar que tem correspondência na realidade objetiva.
2. «Suponhamos que uma pessoa, embora dotada das mais fortes faculdades da razão e reflexão, é trazida subitamente a este mundo; de facto, observaria de imediato uma contínua sucessão de objetos e um acontecimento seguindo-se a outro, mas nada mais seria capaz de descobrir. Não conseguiria, de início, através de qualquer raciocínio, alcançar a ideia de causa e efeito, dado os poderes particulares pelos quais as operações naturais são executadas nunca aparecerem aos sentidos; nem é justo concluir, só porque um acontecimento precede outro, que o primeiro é a causa e o segundo o efeito. A sua conjunção pode ser arbitrária e casual. Pode não haver outro motivo para inferir a existência de um a partir da ocorrência do outro.»

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano

Exponha a análise de David Hume da causalidade e da indução e explique as suas consequências para as nossas crenças acerca do mundo.

 Segundo Hume, todo o conhecimento acerca de questões de facto que vá além da experiência imediata ou passada baseia-se na relação de causa-efeito. Em que consiste esta relação e como a conhecemos? Há duas possibilidades: a relação de causa e efeito é conhecida a priori ou deriva da experiência. Ora, segundo Hume, a relação de causa-efeito não pode ser conhecida a priori porque, se o pudesse, poderíamos saber, sem qualquer experiência empírica, que a água afoga ou que o impacto de uma bola de bilhar noutra bola de bilhar origina o movimento da segunda. No entanto, sem recorrer à experiência não é possível saber que isto é assim. É apenas a observação da conjunção constante e da sucessão de dois acontecimentos que nos leva a pensar que um desses acontecimentos é a causa do outro. Portanto, o conhecimento da relação de causa e efeito não tem uma origem a priori. Terá, nesse caso, por base a experiência? A experiência apenas pode revelar entre dois acontecimentos uma sucessão e uma conjunção constante. Tudo o que podemos perceber é que um acontece a seguir ao outro e que a ocorrência de um é seguida da ocorrência do outro. É tudo. Por conseguinte, por mais que observemos a ocorrência conjunta de dois acontecimentos (por exemplo, o impacto de uma bola de bilhar numa outra bola e o consequente movimento desta), nunca encontraremos aí qualquer impressão que corresponda à ideia de relação causal, isto é, de conexão necessária e que a possa justificar. Não temos, portanto, qualquer razão objetiva para afirmar que existe uma conexão necessária entre acontecimentos de modo tal que a ocorrência de um, em iguais condições, é sempre seguida da ocorrência do outro. Qual é, então, a explicação para a nossa crença na causalidade? Segundo Hume, esta ideia não tem origem realidade, mas num hábito que resulta da associação que fazemos com base na observação repetida da sucessão e conjunção de acontecimentos. Isto é, a ideia de conexão necessária ou de causa-efeito é uma produção subjetiva da mente a que não é possível fazer corresponder qualquer realidade externa.
O nosso conhecimento do mundo depende também dos raciocínios indutivos. Ora, segundo Hume, a nossa confiança nos raciocínios indutivos depende do princípio de que a natureza é uniforme e, por esse motivo, este princípio constitui uma premissa implícita de todos os raciocínios indutivos. Assim, o problema é saber se este princípio pode ser justificado a priori ou a posteriori. Hume afirma que isso não é possível. Não é possível justificar a priori o Princípio da Uniformidade da Natureza, porque só podemos conhecer a priori verdades necessárias e o Princípio da Uniformidade da Natureza não é uma verdade necessária porque, para isso, a sua negação teria de implicar uma contradição, o que não acontece, uma vez que a ideia de a natureza não ser uniforme é perfeitamente inteligível. Também não é possível justificar a posteriori, isto é, pela experiência, o Princípio da Uniformidade da Natureza, porque uma justificação desse tipo do princípio incorre sempre na falácia da petição de princípio. Portanto, o Princípio da Uniformidade da Natureza não pode ser justificado a priori nem a posteriori e, por essa razão, não temos qualquer razão para pensar que a natureza é uniforme. Consequentemente, a maioria das nossas crenças acerca do mundo não têm uma justificação racional.
3. «Há alguns filósofos que imaginam que a todo o momento temos consciência íntima daquilo a que chamamos eu; que sentimos a sua existência e a sua continuidade na existência; e que estamos certos, para além da evidencia de uma demonstração, da sua identidade e simplicidade perfeitas. A sensação mais forte e a paixão mais violenta, dizem eles, em vez de nos distraírem dessa visão apenas a fixam mais intensamente e fazem-nos considerar a sua influência sobre o eu pela sua dor ou pelo seu prazer. Tentar fornecer uma prova mais completa disto seria enfraquecer-lhe a evidência, uma vez que nenhuma prova pode ser derivada de um facto do qual estejamos tão intimamente cônscios; e não há nada de que possamos estar certos se duvidarmos deste facto.
Infelizmente todas estas afirmações positivas são contrárias a essa mesma experiência que se invoca em seu favor; e não temos nenhuma ideia do eu da maneira que está aqui explicada. Com efeito, de que impressão poderia derivar esta ideia?»

David Hume, Tratado da Natureza Humana

Exponha a análise de Hume das crenças na existência do eu e do mundo exterior.

Hume pensa que não temos conhecimento do eu, porque não temos qualquer impressão que lhe corresponda. Temos consciência das nossas perceções, sensações e sentimentos, pensamentos e emoções. Mas, por mais que procuremos, não encontramos uma impressão que possa estar na origem da ideia de Eu. Sempre que inspecionamos os conteúdos da nossa própria mente, descobrimos impressões e ideias, de calor ou de frio, de claro ou escuro, de amor ou ódio, de prazer ou dor, mas nunca encontramos nada que corresponda ao eu, que supostamente constitui a sede dessas perceções. A mente, diz Hume, é uma espécie de teatro em que várias perceções ocorrem sucessivamente. Contudo, a comparação com o teatro não nos deve enganar, uma vez que são unicamente estas perceções que constituem a mente e não temos a mais remota noção do lugar em que estas cenas são representadas ou dos materiais de que são compostas.
Por outro lado, também não podemos estar certos da existência do mundo exterior. Pensamos que existem objetos externos, que têm uma existência contínua e independente de nós, porque temos certas perceções cuja origem atribuímos a esses objetos. Mas será que podemos provar que esses objetos são efetivamente a origem das nossas perceções? Hume pensava que não, porque a nossa mente conhece unicamente as suas próprias perceções, isto é, as impressões e ideias, e tanto umas como outras são estados internos, subjetivos, e não podem constituir prova de que algo tem uma existência contínua e independente fora de nós. É perfeitamente possível que essas perceções existam sem que lhes corresponda qualquer objeto (prova-o as alucinações e os sonhos). A aparente constância das coisas, o facto de que o que vemos hoje é mais ou menos igual ao que vimos ontem, leva-nos a acreditar que têm uma existência independente das nossas perceções. Esta crença não tem, no entanto, justificação porque não temos experiência da conjunção constante entre os objetos e as nossas impressões. O facto de não se poder justificar racionalmente a existência do mundo exterior, no entanto, não implica que este não exista. Não podemos conhecer a existência do mundo exterior, mas podemos acreditar que existe. Trata-se de uma crença que, embora não seja racionalmente justificável, é tão natural que devemos perguntar que razões nos levam a acreditar que o mundo externo existe e não propriamente se ele existe.
III
1. Esclareça o que distingue o empirismo de Hume do racionalismo de Descartes.
As diferenças a destacar são as seguintes:
A origem do conhecimento.
A possibilidade do conhecimento.
Os limites do conhecimento.
Ciência e metafísica
1. A origem do conhecimento.
Descartes considera que a experiência, dados os erros dos sentidos, não pode ser fonte credível de conhecimentos, melhor dizendo, as suas informações não podem constituir (dado que muitas vezes são enganadoras) crenças básicas que possam conduzir a outros conhecimentos. O saber constrói-se com base em ideias inatas e, desde que siga um método correto e Deus garanta o normal funcionamento da nossa razão, podemos alcançar verdades objetivas sobre o mundo. Esta rejeição dos sentidos é uma convicção fundamental de Descartes e marca a sua orientação claramente racionalista inspirada no modelo dedutivo das matemáticas.
Para Hume, todas as ideias têm uma origem empírica. Todos os nossos conteúdos mentais são perceções. Estas são de dois tipos: impressões e ideias. As nossas ideias são cópias das nossas impressões e por isso não há ideias inatas.
2. A possibilidade do conhecimento.
Partindo de um ceticismo metódico, Descartes liberta a razão da dependência em relação à experiência e, tornando o seu funcionamento dependente da garantia de Deus, conclui que podemos alcançar conhecimentos objetivos acerca do mundo.
Para Hume, o critério de verdade do nosso conhecimento é este: um conhecimento, uma ideia, só é válido se pudermos indicar a impressão ou impressões de que deriva. A toda e qualquer ideia tem de corresponder uma impressão sensível. Se não há correspondência, há falsidade.
Criticando a fé cega no poder da razão quanto ao conhecimento do mundo e do que transcende a natu­reza, Hume argumenta contra os racionalistas que o conhecimento científico não é como o conhecimento matemático, não o podendo ter como modelo: não é um conhecimento puramente demonstrativo, mas pro­cede da experiência.
Quanto à objetividade das leis naturais defendida por pensadores não racionalistas como Locke e Newton, o filósofo escocês argumenta que qualquer generalização, baseando-se em factos passados e pre­tendendo valer para o que ainda não foi objeto de experiência, é incerta. Nada podemos saber acerca do futuro porque nada nos garante que o futuro seja semelhante ao passado. Não há conhecimento, propria­mente falando, do que ultrapassa a nossa experiência atual ou passada: o que aconteceu não serve como fundamento seguro da previsão do que ainda não aconteceu.
Ceticismo? Sim, no sentido em que o nosso conhecimento não é certo e seguro. Mas uma coisa é o valor científico dos nossos conhecimentos e outra a sua utilidade prática e vital: sabemos que os nossos «conhecimentos científicos» são mais pretensão e desejo de segurança do que saber, mas não podemos viver sem essas sábias ilusões.
3. Os limites do conhecimento.
Descartes afirma que a razão apoiada na veracidade divina e nas ideias inatas pode conhecer a realidade na sua totalidade ou, melhor dizendo, os princípios gerais de toda a realidade: Deus, alma e mundo são realidades que podem ser conhecidas.
Para Hume, as impressões sensíveis são, não só o critério de verdade do conhecimento humano, mas tam­bém o seu limite. Não tendo outra base que não as impressões ou sensações, o nosso conhecimento está limitado por elas: não posso afirmar nenhuma coisa ou realidade da qual não tenho qualquer impressão sensível (como, por exemplo, Deus).
4. Ciência e metafísica
Em Descartes, temos uma fundamentação metafísica da ciência, isto é, uma fundação baseada em realidades metafísicas tais como Deus e alma (mas sobretudo Deus, que é o verdadeiro pilar do sistema científico que Descartes se propôs construir).
Segundo Hume, não podemos afirmar a existência de qualquer fundamento metafísico do saber.
2. Compare as posições de Hume e de Descartes relativamente à origem do conhecimento humano.
As posições de Hume e Descartes relativamente ao conhecimento humano não podem ser mais díspares. Partindo da ideia de que só são conhecimento as ideias que são claras e distintas, isto é, das quais não há a mínima possibilidade de duvidar, Descartes é levado a fazer da razão, e não dos sentidos, a origem do conhecimento, precisamente porque nenhuma ideia com origem neles pode ter o caráter de indubitabilidade que o conhecimento requer. A dúvida metódica, processo pelo qual a razão submete a apreciação crítica o saber tradicional, mostra, primeiro por intermédio do argumento das ilusões dos sentidos, depois por intermédio do argumento dos sonhos, que duas proposições básicas para o nosso conhecimento e para a nossa vida quotidiana, como «o mundo existe» e «os sentidos são fidedignos na informação que nos fornecem acerca do mundo», não são indubitáveis, e, embora o argumento do Deus enganador permita duvidar das verdades da matemática, isto é, das proposições não empíricas, o Cogito, verdade de razão, afirma-se com uma tal evidência que é impossível recusar a sua indubitabilidade. É, portanto, na razão, e não na experiência (ou melhor, nas ideias adventícias, como Descartes lhes chama, que têm origem na experiência e que são incertas e confusas), que o conhecimento tem origem.
A análise dos conteúdos da mente realizada por Hume condu-lo a uma posição oposta à de Descartes. A sua teoria das ideias afirma que estas são cópias das impressões e delas derivam. Não há ideias inatas. Com efeito, diz Hume, aqueles a quem, por alguma razão, falta a impressão também nunca têm a respetiva ideia. Um cego de nascença, que não tem, por exemplo, a sensação de vermelho, também nunca tem a respetiva ideia.
Do mesmo modo, quando alguém nunca teve uma dada sensação, não tentamos fazer com que a tenha a partir de uma ideia, mas pondo a pessoa numa situação em que possa adquirir essa sensação. Tudo isto prova, pensa Hume, que não existem ideias inatas e que todo o conhecimento tem origem, não na razão, mas na experiência.
Há, no entanto, um ponto em que Hume e Descartes estão de acordo. Ambos pensam que a experiência não pode ser a origem do conhecimento, se entendermos que só as ideias de cuja verdade temos absoluta certeza são conhecimento. Esta constatação leva Descartes a encontrar na razão a origem e o critério do conhecimento. Para Hume, esta via está vedada pela recusa do inatismo e, portanto, ao contrário de Descartes, pensa que só a experiência legitima as nossas ideias, sem, no entanto, lhes conferir absoluta certeza, isto é, o estatuto de conhecimento, à exceção dos domínios da matemática e da lógica.

3. Compare as posições de Hume e de Descartes relativamente à possibilidade do conhecimento humano.
Partindo da tese segundo a qual existem ideias inatas, isto é, ideias que a mente descobre em si mesma, Descartes afirma que é na razão, e não na experiência, que o Cogito se descobre a si próprio enquanto verdade primordial. Todo o conhecimento, para Descartes, é constituído por ideias a que a razão chega por deduções, a partir da intuição fundamental que o Cogito descobre em si mesmo pela análise dos seus conteúdos. Dado o caráter absolutamente racional e demonstrativo destas deduções, tudo o que conhecemos por seu intermédio é igualmente indubitável. O conhecimento é, portanto, constituído por todas as ideias que somos capazes de deduzir a partir das ideias inatas. É desse modo que, a partir do Cogito, isto é, o conhecimento da nossa própria existência enquanto alma, somos capazes de conhecer Deus e o mundo. Nada está fora do alcance da razão, na condição de sermos capazes de o deduzir de proposições indubitáveis. Esse é, pelo menos, o espírito do projeto cartesiano, embora o próprio Descartes reconheça que a existência do mundo exterior, posta em causa pela dúvida metódica, em rigor, não pode ser deduzida de princípios estritamente racionais. O racionalismo de Descartes manifesta-se, em resumo, na ideia de que é a razão, e não os sentidos, que fornecem as ideias que constituem o ponto de partida para o conhecimento. Partindo de um ceticismo metódico, Descartes liberta a razão da dependência em relação à experiência e, tornando o seu funcionamento dependente da garantia de Deus, conclui que podemos alcançar conhecimentos objetivos acerca do mundo.
Para Hume, o critério de verdade do nosso conhecimento é este: um conhecimento, uma ideia, só é válido se pudermos indicar a impressão ou impressões de que deriva. A toda e qualquer ideia tem de corresponder uma impressão sensível. Se não há correspondência, há falsidade. Criticando a fé cega no poder da razão quanto ao conhecimento do mundo e do que transcende a natureza, Hume argumenta contra os racionalistas que o conhecimento científico não é como o conhecimento matemático, não o podendo ter como modelo: não é um conhecimento puramente demonstrativo, mas procede da experiência. Quanto à objetividade das leis naturais defendida por pensadores não racionalistas como Locke e Newton, o filósofo escocês argumenta que qualquer generalização, baseando-se em factos passados e pretendendo valer para o que ainda não foi objeto de experiência, é incerta. Nada podemos saber acerca do futuro porque nada nos garante que o futuro seja semelhante ao passado. Não há conhecimento, propriamente falando, do que ultrapassa a nossa experiência atual ou passada: o que aconteceu não serve como fundamento seguro da previsão do que ainda não aconteceu.
Para Hume, ao contrário de Descartes, o conhecimento do mundo não é possível, quer entendamos por conhecimento verdades indubitáveis quer entendamos crenças que estão racionalmente justificadas, embora não de modo a garantir a certeza da verdade. Os raciocínios indutivos – a nossa forma de conhecer os factos do mundo – também não podem ser justificados racionalmente porque todos eles dependem do Princípio da Uniformidade da Natureza, e este princípio não pode ser racionalmente justificado porque qualquer tentativa de o fazer envolve a utilização de raciocínios indutivos. As nossas crenças acerca do mundo não constituem um conhecimento objetivo da realidade e são antes o resultado de mecanismos psicológicos com que a natureza nos dotou para assegurar a nossa existência.
Ceticismo? Sim, no sentido em que o nosso conhecimento não é certo e seguro. Mas uma coisa é o valor científico dos nossos conhecimentos e outra a sua utilidade prática e vital: sabemos que os nossos «conhecimentos científicos» são mais pretensão e desejo de segurança do que saber, mas não podemos viver sem essas sábias ilusões.
4. Compare as posições de Descartes e de Hume relativamente aos limites do conhecimento humano.
Descartes afirma que a razão, apoiada na veracidade divina e nas ideias inatas, pode conhecer a realidade na sua totalidade ou, melhor dizendo, os princípios gerais de toda a realidade: Deus, alma e mundo são realidades que podem ser conhecidas.
Para Hume, as impressões sensíveis são, não só o critério de verdade do conhecimento humano, mas também o seu limite. Não tendo outra base que não as impressões ou sensações, o nosso conhecimento está limitado por elas: não posso afirmar nenhuma coisa ou realidade da qual não tenho qualquer impressão sensível (como, por exemplo, Deus).
A filosofia de Descartes constitui um bom exemplo de um pensamento fortemente otimista acerca das capacidades da razão humana. Quando corretamente utilizada, nada há que a razão não possa conhecer. Utilizar corretamente a razão é, para Descartes, proceder por deduções rigorosas a partir de ideias claras e distintas.
Procedendo desse modo, é possível à razão conhecer, isto é, demonstrar a existência de realidades metafísicas (das quais não temos, portanto, nenhuma evidência empírica), como a alma, Deus e o mundo. Em oposição a este otimismo racionalista de Descartes, a filosofia de David Hume tem um pendor cético. Todo o nosso conhecimento tem origem e deriva da experiência, e daquilo que não temos experiência não temos conhecimento. O Princípio da Cópia que estabelece que todas as ideias são cópias de impressões constitui também o critério de legitimidade de uma ideia: as ideias que não possamos fazer derivar de impressões não têm pura e simplesmente sentido. Estão nesta situação, pensa Hume, ideias metafísicas como as de alma, de Deus e de mundo. Nenhuma destas ideias pode ser feita remontar a uma impressão e, em rigor, estas palavras não têm qualquer significado. Não há, nem pode haver, portanto, conhecimento destas entidades, e a metafísica, enquanto disciplina que estuda este tipo de entidades não empíricas, não constitui uma ciência.



MÓDULO 4
O conhecimento e a racionalidade científico-tecnológica
UNIDADE 2
O conhecimento científico
CAPÍTULO 1
Conhecimento vulgar e conhecimento científico

1. O que carateriza o conhecimento vulgar?
É um tipo de conhecimento essencialmente prático, assistemático, de fraco pendor autocrítico, que confunde frequentemente a realidade e a aparência, que não é constantemente controlado pela experiência, faltando-lhe uma abordagem metódica dos problemas porque vive de soluções e de conhecimentos supostamente assegurados.
2. O que carateriza, em termos gerais, o conhecimento científico?
É um conhecimento essencialmente metódico, regido por uma racionalidade crítica que exige o constante confronto com os factos, dotado de um forte poder explicativo e sistemático que reduz as explicações ao menor número possível de leis e teorias.
3. O que distingue essencialmente o conhecimento vulgar do conhecimento científico?
A diferença essencial reside no caráter metódico e crítico do conhecimento científico e no constante escrutínio da experiência, pelo que não é presa fácil das aparências. Estas duas caraterísticas permitem que a ciência seja ao mesmo tempo dotada de maior simplicidade apesar de muito mais abstrata, não se limite a acumular conhecimentos, e possua um sofisticado grau de sistematização e uma maior eficácia prática.

Conhecimento vulgar
Conhecimento científico
1. Relativamente acrítico
2. A descrição predomina sobre a explicação.
3. Fraca sistematização.
4. Muito fraco espírito metódico.
5. Essencialmente prático.
6. Deixa-se iludir pelas aparências.
1. Baseia-se no pensamento crítico.
2. Essencialmente explicativo.
3. Forte pendor sistemático.
4. Essencialmente metódico.
5. Alto valor teórico e prático.
6. Procura ir para lá das aparências ou impressões imediatas.

MÓDULO 4
O conhecimento e a racionalidade científico-tecnológica
UNIDADE 2
O conhecimento científico
CAPÍTULO 2
Ciência e construção: validade e verificabilidade das hipóteses


1. O que são hipóteses científicas?
São tentativas de explicar e de prever o que acontece no mundo.

2. Em que consiste o problema da verificabilidade das hipóteses?
Consiste em saber se podem ser verificadas ou confirmadas ou se devemos tentar submetê-las a testes que visem refutá-las ou falsificá-las.

3. O que é o indutivismo?
É a conceção segundo a qual o método indutivo é o método típico da ciência ou o caminho que os cientistas seguem para explicar e prever os acontecimentos do mundo.

4. Nas suas linhas gerais, em que consiste o método indutivo?
Consiste em partir da observação de factos empíricos, em registá-los e catalogá-los e, mediante a generalização, em formar teorias ou hipóteses que vão ser confrontadas com os factos com vista à sua verificação ou confirmação.

5. Que críticas são feitas ao indutivismo?
Critica-se o indutivismo pelas seguintes razões: 1. Acredita que há observações puras quando toda e qualquer observação é previamente orientada por teorias e expetativas acerca de um problema; 2. As hipóteses científicas não são extraídas dos factos porque, por exemplo, muitas teorias científicas se referem ao que não se pode observar (assim, muitas as hipóteses científicas não podem ser formadas por indução-generalização a partir de amostras factuais); 3. As hipóteses científicas enquanto enunciados universais não podem nunca ser seguramente verificadas.

4. O que é o problema de demarcação?
É o problema de encontrar um critério que permita distinguir teorias científicas de teorias que não são científicas.

5. O que é o falsificacionismo de Karl Popper?
É uma perspetiva sobre a ciência e o método científico que:
a) Constitui um critério de demarcação entre ciência e não ciência.
b) Considera que a cientificidade de uma teoria depende da sua falsificabilidade.
c) Rejeita que a indução desempenhe algum papel na investigação científica porque esta não parte de observações puras nem pode garantir a verdade dos seus enunciados.
d) Rejeita o verificacionismo porque não se pode provar a verdade – verificar – de um enunciado universal porque enunciados deste género referem-se a um número de casos que não podem ser controlados empiricamente.
6. Segundo Popper, o que torna científica uma teoria?
Uma teoria é científica se e somente se for empiricamente falsificável.

7. O que torna falsificável uma teoria científica?
Uma teoria científica é falsificável se for possível encontrar observações ou factos que a refutem.

8. Que críticas faz Popper ao indutivismo?
Popper apresenta as seguintes críticas ao indutivismo: 1. A indução não tem valor científico; 2. A observação não é meio de prova – Não se pode provar a verdade – verificar – de um enunciado universal – como uma lei natural – porque enunciados deste género referem-se a um número de casos que não podem ser controlados empiricamente. A observação de muitos corpos aquecidos que dilatam não prova, por maior que seja o seu número, que a proposição enunciada é verdadeira. 3. As hipóteses não são extraídas dos factos: são conjeturas criadas pelo cientista para tentar responder a um problema. 4. O que deve ser testado não é a possibilidade de verificação, mas sim a de refutação de uma hipótese. 5. O facto de uma hipótese ser bem-sucedida num teste empírico não a verifica ou torna verdadeira. Unicamente mostra que não é (ainda) falsa.
9. Por que razão, ao criticar o indutivismo, Popper critica também o verificacionismo?
O indutivismo entendia o teste das hipóteses como tentativa de verificação destas. O falsificacionismo de Popper entende-o como tentativa de refutação. Nunca podemos declarar verdadeira uma teoria porque nunca podemos ter a certeza disso. Contra o indutivismo, Popper diz que não podemos saber se uma teoria é verdadeira. Só podemos saber se as teorias foram refutadas ou não.

10. Podemos dizer que para Popper uma teoria científica ou é verdadeira ou falsa?
Não. Quando Popper diz que uma teoria é científica, não está dizer que é verdadeira ou falsa, mas que podemos testar se é falsa ou não. Se provarmos que não é falsa, nunca podemos dizer que o assunto está encerrado (que é verdadeira). Pode vir a revelar-se falsa mediante outros testes. Assim, o termo falsificável aplicado a uma teoria significa que a possibilidade de ser falsa está sempre em aberto.
11. Segundo Popper, todas as teorias são igualmente falsificáveis?
Não. As teorias têm graus de falsificabilidade conforme têm maior ou menor conteúdo empírico ou informativo, conforme nos dizem mais ou menos coisas sobre o mundo e, por conseguinte, correm maiores ou menores riscos de serem desmentidas.



SÍNTESE DAS IDEIAS DE POPPPER SOBRE O MÉTODO CIENTÍFICO E A CIÊNCIA

TESES CENTRAIS
1. Uma teoria é científica se for testável e suscetível de falsificação empírica mediante a observação.
2. Uma teoria irrefutável não tem direito a ser considerada científica.
3. O indutivismo é uma perspetiva errada sobre o método científico.
4. As teorias e hipóteses científicas não podem ser verificadas nem confirmadas, mas unicamente corroboradas.
5. Os cientistas exercem uma vigilância crítica permanente das hipóteses e teorias científicas.
6. A ciência é objetiva porque os cientistas submetem as teorias ou hipóteses a testes empíricos rigorosos.
7. A ciência procede por conjeturas (hipóteses) e refutações em direção a um ideal de verdade que nunca atingirá, mas do qual se aproxima constantemente mediante a eliminação de erros.

A falsificabilidade
O tema da falsificabilidade permite a Popper resolver dois problemas: o da demarcação entre ciência e não ciência e o do papel da indução na ciência.
A falsificabilidade é a caraterística de uma teoria ou hipótese que pode ser refutada por alguma observação.

O problema da demarcação
O problema da demarcação consiste em encontrar um critério que permita separar ciência de pseudociência.
Será científica a teoria que se submete a testes destinados a falsificá-la e assim a refutá-la. A ciência distingue-se da pseudociência porque procura falsificar e não verificar ou confirmar as suas hipóteses.
As teorias que não são refutáveis por alguma observação possível não são científicas. E são cientificamente tanto mais úteis quanto mais riscos correrem nas previsões que fazem.
Contra o indutivismo e o verificacionismo

Popper resolve o problema da indução opondo à conceção indutivista da investigação científica (que procura tornar verdadeiras as teorias) a falsificação.
A indução não é o método da ciência porque:
1. Não podemos inferir as hipóteses da experiência como se houvesse observações puras ou objetivas. Os cientistas deduzem consequências observacionais das teorias e, submetendo essas predições ao confronto com os factos, sujeitam as teorias a testes rigorosos. Não precisam da indução para formar hipóteses.
2. A experimentação científica não é realizada com o objetivo de «verificar» ou estabelecer a verdade de hipóteses ou teorias porque esse objetivo é impossível.
A indução não nos pode dar certezas acerca da verdade das nossas teorias. Por maior que seja o número de observações a favor de uma teoria obtida por indução, esta pode sempre vir a revelar-se falsa. Mas podemos muitas vezes ter a certeza da sua falsidade adotando um modelo hipotético dedutivo que procura provar a falsidade e não a verdade de uma teoria.
A corroboração
Uma teoria diz-se corroborada quando resiste aos testes destinados a falsificá-la.
Para ser corroborada, uma teoria deve apresentar um bom conteúdo empírico que restrinja aquilo segundo as suas previsões pode acontecer ‒ de modo a não ser vaga – e deve passar em testes sérios e rigorosos. Mas ser corroborada não significa dizer que a sua verdade foi provada nem que é provável que seja verdadeira. Unicamente não foi refutada e podemos continuar a trabalhar com ela, se não for posteriormente desmentida ou se não encontrarmos uma melhor. A qualquer momento, uma teoria pode ser refutada por novos testes. O máximo que se pode dizer de uma teoria científica é que, até a um dado momento, ela resistiu aos testes usados para a refutar.
O progresso do conhecimento científico

A ciência progride mediante o método das conjeturas e refutações.
As conjeturas ou hipóteses – que nunca podem ser verificadas ou confirmadas – são sujeitas a testes severos aos quais podem sobreviver ou não. As que sobrevivem às tentativas de refutação revelam-se mais resistentes, mas nunca verdadeiras ou provavelmente verdadeiras. Constituem, em comparação com outras, uma melhor aproximação à verdade. O seu grau de verosimilhança é o critério que as torna melhores do que teorias rivais. Aproxima-se mais da verdade a conjetura que resolve melhor certos problemas do que as suas competidoras.
O progresso científico, mediante a eliminação de erros, é uma evolução em direção a uma meta ideal inalcançável: o ideal da verdade como espelho fiel da realidade.


EXERCÍCIOS
1
Leia atentamente o texto seguinte.
O falsificacionista admite francamente que a observação é guiada pela teoria e a pressupõe. Também se congratula de abandonar qualquer afirmação que implique que as teorias se podem estabelecer como verdadeiras ou provavelmente verdadeiras à luz da evidência observacional. Uma vez propostas, as teorias especulativas terão de ser comprovadas rigorosa e implacavelmente pela observação e a experimentação. As teorias que não superam as provas observáveis e experimentais devem ser eliminadas e substituídas por outras conjeturas especulativas.

Esclareça o conteúdo do texto. Para orientar a sua resposta, deve abordar os seguintes temas:
1. A oposição ao indutivismo.
2. A rejeição do critério da verificabilidade.
Trata-se de caraterizar o falsificacionismo ou método das conjeturas e refutações nas suas linhas gerais.
Karl Popper defende uma conceção de ciência que assenta na rejeição completa da indução. O grau de confirmação de uma hipótese depende, segundo a perspetiva indutivista, do número de casos observados que estão de acordo com ela.
Mas, segundo Popper, é impossível provar, por exemplo, que todos os corvos são negros (precisaríamos de observar todos os corvos em todos os lugares e em todos os tempos) e isso deixa a proposição universal sempre por provar. Ora, segundo Popper, isto tem consequências nefastas para a imagem da ciência. Não podendo nenhum enunciado universal ser comprovado por qualquer número de observações favoráveis que nos são possíveis, então a aplicação do critério da verificabilidade acaba por transformar em não científicas – em teorias empiricamente não verificáveis – as hipóteses que mais nos dizem em termos informativos sobre a realidade. As leis da natureza aplicam-se a um número infinito de casos – a todos os casos possíveis. Mas as nossas observações não são nem podem ser em número infinito. Não devemos concluir então que, sendo científico igual a empiricamente verificável – para o verificacionista –, os enunciados da ciência não são científicos porque não são em rigor verificáveis? O critério da verificabilidade derrota-se a si mesmo. Pretende verificar, mas acaba por nunca verificar.
Para Popper, os cientistas devem contentar-se em não ver as suas hipóteses refutadas e não em vê-las verificadas ou provadas. Com efeito, como o critério da verificação não tem validade lógica (conduz-nos à falácia da afirmação do consequente), basta um facto contrário para refutar uma hipótese, mas nenhum número de factos favoráveis é suficiente para a confirmar.
O que carateriza as hipóteses científicas é a sua refutabilidade ou «falsificabilidade»: nenhuma hipótese científica é irrefutável, mais tarde ou mais cedo pode ser declarada falsa.
A refutabilidade é um critério de demarcação entre ciência e não ciência. Uma teoria é científica se e só se for refutável ou falsificável. Uma teoria falsificável é uma teoria que podemos descobrir que é falsa, mas não é necessariamente uma teoria falsa. Trata-se de uma teoria de que se deduzem consequências ou predições testáveis, isto é, passíveis de serem confrontadas com os factos. Se estas predições se revelarem incompatíveis com os factos, a teoria diz-se falsificada, ou seja, o teste a que foi submetida mostrou que é falsa.
2
Estabeleça na teoria de Popper a relação entre falsificabilidade e corroboração das hipóteses. Mostre como Popper é conduzido à perspetiva falsificacionista e o que se entende por corroboração de uma hipótese.
A rejeição da indução conduz Popper ao falsificacionismo. O grau de confirmação de uma hipótese depende, segundo a perspetiva indutivista, do número de casos observados que estão de acordo com ela. Mas, segundo Popper, é impossível provar que todos os corvos são negros (precisaríamos de observar todos os corvos em todos os lugares e em todos os tempos) e isso deixa a proposição universal sempre por provar.
A ciência, para Popper, não precisa da indução nem para encontrar hipóteses e teorias (bastam as conjeturas criativas do investigador) nem para as avaliar (tentar falsificá-las é a forma de as testar).
A rejeição da indução conduz Popper à ideia de que as leis científicas são enunciados universais que não podem ser conclusivamente verificados ou confirmados, mas que podem ser falsificados ou refutados. Para avaliar as teorias ou hipóteses científicas, temos de as submeter a testes empíricos que visem refutá-las. Quanto maior for o seu conteúdo empírico mais riscos corre uma teoria, mas também maior será o seu grau de corroboração. Por corroboração entende-se que a teoria tem sido até ao momento bem-sucedida, mas não que é verdadeira, dado que não sabemos o que futuros testes lhe reservam. Nunca podemos saber se uma teoria é verdadeira, mas podemos saber se é falsa.
Uma teoria corroborada é uma teoria que até agora resistiu às tentativas de refutação, mas que apesar disso não pode ser declarada verdadeira. Por mais provas que tenhamos, nunca podemos dizer que uma teoria é verdadeira. A possibilidade de ser falsificada está sempre em aberto. Só as teorias que resistem aos testes de falsificação sobrevivem, mas sempre ameaçadas pela possibilidade de falsificação e, por isso, novas e melhores teorias ameaçam as teorias ainda vigentes.

3
Esclareça em que consiste o critério de cientificidade de uma teoria para Popper.
Integre na sua resposta a referência ao verificacionismo e o conceito de graus de cientificidade.
A refutabilidade é um critério de demarcação entre ciência e não ciência. Uma teoria é científica se e só se for refutável ou falsificável. Uma teoria falsificável é uma teoria que podemos descobrir que é falsa, mas não é necessariamente uma teoria falsa. Trata-se de uma teoria de que se deduzem consequências ou predições testáveis, isto é, passíveis de serem confrontadas com os factos. Se estas predições se revelarem incompatíveis com os factos, a teoria diz-se falsificada, ou seja, o teste a que foi submetida mostrou que é falsa.
A perspetiva verificacionista é a doutrina segundo a qual a verificação é um critério de demarcação entre ciência e não ciência consiste em determinar o valor de verdade de uma teoria ou hipótese. Se não for possível determinar de modo conclusivo que uma teoria é verdadeira ou falsa, não estamos perante uma teoria científica. Popper opõe-se a esta doutrina.

O grau de cientificidade de uma teoria ou hipótese depende de três coisas:
1. Que a teoria seja falsificável, ou seja, que em princípio seja possível conceber testes destinados a exibir a sua falsidade. Uma teoria científica não pode ser irrefutável. Se de uma teoria dizemos que pode ser verdadeira ou que pode ser falsa, não estamos a falar de uma teoria científica.
2. Que se exponha bastante à possibilidade de ser falsificada. Isso só pode acontecer se o seu conteúdo empírico não for vago ou demasiado geral. Uma teoria com um rigoroso conteúdo informativo, isto é, quanto mais circunscrita e quantos mais estados de coisas excluir, mais falsificável é.
3. Que passe nos testes de refutação a que é submetida. Seria simplista pensar que Popper se contenta com a falsificabilidade para dizer que uma teoria é científica. Também valoriza a confiança numa teoria. Quanto maior for o número de testes e quanto mais precisos e rigorosos forem os testes que uma teoria supera melhor ela é e mais fiável nos parece. Por exemplo, os astrónomos repararam que as órbitas dos planetas conhecidos eram irregulares. A teoria do movimento de Newton permitia predizer que a perturbação era causada pela atração gravitacional de um planeta desconhecido numa certa órbita. Quando os astrónomos procuraram nessa parte do céu, descobriram o planeta Neptuno. A teoria do movimento de Newton – que também serve para predizer os movimentos dos projéteis, dos comboios e das moléculas – poderia ter sido falsificada por estas investigações. Mas não se revelou falsa. Embora a possibilidade de refutação esteja sempre em aberto, a teoria deu provas satisfatórias para confiarmos nela.
Em suma, uma teoria é científica se:
1 – For falsificável;
2 – Correr bastantes riscos nos testes de refutação; e
3 – Superar os testes rigorosos destinados a falsificá-la.


4
Na sua primeira obra, A Lógica da Descoberta Científica, publicada em alemão em 1934, Popper defende que, apesar de as teorias científicas não poderem ser verificadas nem mesmo tornadas prováveis, podem ser falsificadas pelos factos.

Mostre que critério de cientificidade é rejeitado nesta afirmação e exponha a detalhadamente a crítica de Popper a esse critério.
Esta afirmação rejeita o critério da verificabilidade. A rejeição do verificacionismo acompanha a rejeição da indução como método útil à ciência. Rejeitando a indução, Popper manifesta obviamente simpatia pela dedução e pelo método hipotético-dedutivo.
Há semelhanças entre o método falsificacionista e a descrição habitual do método hipotético-dedutivo. Também se deduzem certas consequências de determinadas hipóteses. Mas o facto de aquilo que se observa ser aquilo que se deduziu da hipótese não confirma esta. O falsificacionismo, em vez de procurar o acordo entre a predição – a consequência deduzida da hipótese – e a observação, procura observações que falsifiquem aquela. O desacordo entre aquilo que a conjetura prediz e o que é observado conduz à refutação da hipótese. O acordo corrobora a hipótese, mas nunca a confirma ou verifica.
O método proposto e aconselhado por Popper pode ser entendido como uma depuração do método hipotético-dedutivo, afastando qualquer referência à verificação e à indução. Popper recusa a perspetiva verificacionista por várias razões.
A primeira razão é esta: o critério da verificabilidade não é compatível com o estatuto universal das leis da natureza. Isto quer dizer que, se queremos verificar realmente que um enunciado universal é verdadeiro, estamos condenados ao fracasso porque não é possível submeter todos os casos ao julgamento da experiência. Por mais observações a favor da teoria que consigamos reunir, nunca conseguiremos demonstrar a sua verdade. A única coisa que Popper reconhece como aceitável na teoria verificacionista é a ideia geral de cientificidade de uma teoria: são científicas as teorias que podem comparecer no tribunal da experiência. Mas a proximidade acaba aqui.
A segunda razão é a seguinte: o critério da verificabilidade é pouco económico e improdutivo porque nenhuma teoria, dado o número vastíssimo de casos que abrange, pode ser definitivamente comprovada. Muito mais económico é o critério da falsificabilidade: para mostrar que uma teoria ou hipótese é falsa, para mostrar que um enunciado universal é falso, basta um caso que o desminta.
Karl Popper defende uma conceção de ciência que assenta na rejeição completa da indução. O grau de confirmação de uma hipótese depende, segundo a perspetiva indutivista, do número de casos observados que estão de acordo com ela. Mas, segundo Popper, é impossível provar que todos os corvos são negros (precisaríamos de observar todos os corvos em todos os lugares e em todos os tempos), e isso deixa a proposição universal sempre por provar. Ora, segundo Popper, isto tem consequências nefastas para a imagem da ciência. Não podendo nenhum enunciado universal ser comprovado por qualquer número de observações favoráveis que nos são possíveis, então a aplicação do critério da verificabilidade acaba por transformar em não científicas – em teorias empiricamente não verificáveis – as hipóteses que mais nos dizem em termos informativos sobre a realidade. As leis da natureza aplicam-se a um número infinito de casos – a todos os casos possíveis. Mas as nossas observações não são nem podem ser em número infinito. Não devemos concluir então que, sendo científico igual a empiricamente verificável – para o verificacionista –, os enunciados da ciência não são científicos porque não são em rigor verificáveis? O critério da verificabilidade derrota-se a si mesmo. Pretende verificar, mas acaba por nunca verificar.
A ciência, para Popper, não precisa da indução nem para encontrar hipóteses e teorias (bastam as conjeturas criativas do investigador) nem para as avaliar (tentar falsificá-las é a forma de as testar.
MÓDULO 4
O conhecimento e a racionalidade científico-tecnológica
UNIDADE 2
O conhecimento científico
CAPÍTULO 3
Racionalidade e objetividade da ciência
1. Como avalia Popper a evolução da ciência?
A evolução da ciência é um progresso, apesar de nenhuma teoria poder ser verificada como verdadeira. Umas teorias são eliminadas e outras são corroboradas, o que significa que sobreviveram aos testes destinadas a refutá-las. Assim, há uma crescente aproximação à verdade entendida como descrição completamente fiel de um estado de coisas.

2. Que critério usa Popper para justificar esse progresso ou avanço da ciência?
Usa o critério da verosimilhança. Uma teoria pode aproximar-se mais da verdade do que outra. O progresso da ciência não é uma acumulação de teorias verdadeiras porque nunca podemos estar certos da verdade de uma teoria. A verdade é um ideal regulador.

3. Em que consiste dizer que uma teoria é verosímil?
Consiste em dizer que essa teoria se aproxima da verdade, nos dá uma descrição aproximadamente correta da realidade, mas nunca completamente correta. As teorias científicas são conjeturas e hipóteses sempre falsificáveis. Umas são melhores do que outras porque aproximam-se mais da verdade.

4. O que torna uma teoria melhor do que outra?
O facto de ser mais verosímil, de se aproximar mais da verdade, porque, com amplo conteúdo empírico e assim submetida a testes muito rigorosos, resiste a tentativas de refutação mais severas.

5. O que torna uma teoria mais verosímil do que outra?
O facto de ser capaz de resolver problemas que a outra não conseguiu resolver e de também conseguir resolver os problemas que as outras resolviam. De certa forma, pode dizer-se que as teorias refutadas e superadas integram o processo de aproximação à verdade por terem suscitado a criação de melhores teorias. O elemento continuista da teoria de Popper traduz-se na ideia de que a sucessão de teorias se insere no progresso das ciências em direção à verdade. O elemento descontinuista consiste em salientar que o progresso não se faz por simples acumulação de conhecimentos, pois a relação entre as velhas e as novas teorias é crítica e a referência àquelas serve para esclarecer a situação dos problemas.

6. A evolução da ciência como crescente aproximação à verdade é, para Popper, objetiva?
Sim. O método das conjeturas e refutações assegura testes rigorosos, logicamente e racionalmente regulados e é a experiência que tem a última palavra quanto à refutabilidade de uma teoria. Há critérios claramente objetivos para declarar como falsa ou como corroborada uma teoria. Nessa avaliação, não tem papel de relevo a personalidade dos cientistas, os seus gostos e as condicionantes sociológicas e políticas. Os fatores subjetivos são neutralizados.
7. Como podemos resumir a ideia de evolução da ciência em Popper?
A evolução da ciência não é uma simples mudança. É um progresso em direção a uma meta: a verdade. As teorias refutadas inserem-se no movimento de busca de verosimilhança ou de aproximação à verdade. A verosimilhança é o critério do progresso e carateriza as teorias que a observação corrobora. Esse progresso é racional – obedece a regras lógicas – e objetivo – são os testes empíricos que decidem na seleção das teorias e não fatores subjetivos. A ciência, para Popper, não é um conjunto de conhecimentos assegurados, mas um método que se define pelo pensamento crítico. Os conhecimentos são meios que devem ser mobilizados para a formulação de novas perguntas e conjeturas. Não reduzem a ciência aos seus resultados.


8. O que é um paradigma para Kuhn?
É um conjunto de regras para aplicação das teorias à realidade, para usar instrumentos e que tipo de instrumentos, um conjunto de ideias filosóficas sobre o que a realidade é e como funciona e um modelo que, apoiando-se numa teoria bem-sucedida, orienta a atividade dos cientistas no conhecimento do mundo.

9. Por que razão a existência de um paradigma é importante para a atividade científica?
É importante porque, além de determinar o ambiente intelectual e tecnológico em que essa atividade se desenvolve, não podemos falar de comunidade científica nem portanto de ciência sem a adesão a esse modelo explicativo e regulador. A ciência é paradigmática porque não é obra de génios isolados.

10. O que é a ciência normal?
É o período da evolução da ciência que é dominado pelo consenso generalizado da comunidade científica em torno de um paradigma e pelo seu aperfeiçoamento e desenvolvimento. É uma atividade relativamente conservadora porque em cada âmbito da atividade científica regida pelo paradigma este não é questionado. Contudo, há progresso científico porque se procura mediante o paradigma explicar novos factos ou resolver puzzles cujo interesse para os cientistas é determinado por aquele.
11. O que é uma anomalia?
Uma anomalia é um problema teórico ou empírico que não é solucionado de acordo com os meios explicativos fornecidos pelo paradigma vigente.

12. O facto de os cientistas que adotam um dado paradigma não conseguirem resolver de acordo com aquele certos factos polémicos – anomalias – significa por si que o paradigma é abandonado?
Não. Exceto quando a anomalia é séria ou se acumulam anomalias graves que persistentemente ameaçam as bases do paradigma, a atitude dos cientistas é a de desvalorizar o problema esperando que se encontre uma solução. Uma anomalia por si não implica crise do paradigma ou perda de confiança no seu poder explicativo. Ao contrário do que pensava Popper, os cientistas não são falsificacionistas.

13. O que é a crise paradigmática?
É o período em que a confiança no paradigma enfraquece devido a anomalias graves e persistentes. Esta crise de confiança pode dar origem a um período de ciência extraordinária.

14. O que é a ciência extraordinária?
É o período que suscitado pela progressiva desconfiança no paradigma existente se carateriza pelo surgimento de divisões na comunidade científica. Surgem paradigmas alternativos que se tornam formas rivais de ver o mundo. Sem um modelo teórico alternativo há crise, mas não há ciência extraordinária. Esta exige que haja mundivisões incompatíveis em luta, ou seja, que alguns cientistas, sobretudo os mais jovens, abandonem a antiga forma de exercer o ofício científico.

15. O que é uma revolução científica?
É a substituição do paradigma existente por um novo que conquistar a adesão da comunidade científica.

16. O que implica esta mudança para os cientistas?
Implica uma conversão mental porque cada paradigma corresponde, segundo Kuhn, a uma forma de ver o mundo radicalmente diferente da do paradigma anterior.

17. Dado que são formas incompatíveis de ver o mundo, como carateriza Kuhn a relação entre os paradigmas?
Os paradigmas são incomensuráveis.


18. O que significa dizer que os paradigmas são incomensuráveis?
Significa dizer que não há uma medida ou padrão comum que, acima de qualquer dos paradigmas, permita avaliar os méritos e os defeitos de cada um deles.

19. O que implica a incomensurabilidade dos paradigmas?
Implica que não podemos dizer que um paradigma é melhor do que outro, que tem um poder explicativo e preditivo superior. Há mudança, mas não há propriamente falando progresso. O novo paradigma não é portanto algo que se insira num processo de aproximação crescente à verdade.

20. Se não há propriamente falando progresso ou avanço científico de paradigma para paradigma, será que a substituição de um por outro é um processo completamente arbitrário?
Não. Há critérios objetivos – poder explicativo e preditivo, abrangência ou alcance, simplicidade e fecundidade – que permitem demarcar ciência de não ciência. Contudo, cada cientista avalia de forma diferente a importância de cada um destes critérios. Além de que fatores sociológicos – prestígio dos proponentes de um paradigma, interesses extracientíficos, gostos pessoais ‒ influenciam as escolhas. Em última análise, são fatores subjetivos que parecem pesar mais nas decisões.

21. Como podemos resumir a ideia de evolução da ciência em Kuhn?
A ciência é um empreendimento comum porque fora de uma comunidade de praticantes ligados a uma dada forma de ver o mundo e de fazer ciência – paradigma – não há ciência. A ciência evolui, muda, mas não há propriamente falando progresso, dada a incomensurabilidade dos paradigmas. Essa mudança não é marcada pela racionalidade e objetividade porque as escolhas entre paradigmas associam critérios objetivos e subjetivos. A racionalidade das escolhas entre paradigmas é questionável porque é a personalidade dos cientistas, os seus gostos, interesses e capacidade de influenciar os pares a decidir em última instância. A comunidade científica não é orientada pelo ideal de verdade nem pela racionalidade e objetividade. A ciência não progride, unicamente muda, e essa evolução não é estritamente racional nem completamente objetiva
RESUMO DAS IDEIAS DE KUHN SOBRE A CIÊNCIA E A SUA EVOLUÇÃO









TESES CENTRAIS





1. Não há atividade científica fora de uma comunidade de praticantes (comunidade científica).
2. Não há comunidade científica sem a adoção consensual de um paradigma pelos seus membros.
3. A atividade a que ao longo da história da ciência os cientistas mais frequentemente se dedicam tem o nome de ciência normal.
4. A longos períodos de ciência normal sucedem de vez em quando episódios revolucionários a que se dá o nome de revoluções científicas, ou seja, mudanças de paradigma.
5. Uma revolução científica traduz-se numa forma de ver o mundo inteiramente nova e incompatível com a forma de ver o mundo associada e determinada pelo paradigma anterior.
6. Sendo a expressão de formas incompatíveis de ver o mundo, os paradigmas são incomensuráveis.
7. Sendo incomensuráveis, não há acima ou fora de cada paradigma um critério ou medida comum que permita considerar que um é mais verdadeiro do que outro ou que é um espelho mais fiel da realidade.
8. Assim sendo, não se pode falar de progresso científico se por este entendermos um progresso contínuo e cumulativo em direção à verdade. Se pudermos falar de progresso, este é descontínuo, feito de algumas ruturas ou descontinuidades, de mudanças de paradigmas e não de transformação de um paradigma noutro.
9. A substituição de um paradigma por outro não obedece a critérios estritamente objetivos e racionais.


A EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA



















ESQUEMA DA EVOLUÇÃO DA CIÊNCIA
Pré-ciência --------- Ciência normal ----------Ciência extraordinária ------------ Revolução científica --------- Novo período de ciência normal …………….
1. Pré-ciência. Período marcado pela ausência de consenso, dado não haver um paradigma partilhado.
2. Ciência normal. Período longo em que um paradigma – o contexto intelectual e tecnológico da prática científica – dá unidade à atividade dos praticantes de ciência. Os cientistas aplicam o paradigma para determinar que problemas resolver e como os resolver e também procuram ampliar o seu poder explicativo. Este período assume por isso um caráter cumulativo resultante da invenção de instrumentos mais potentes e eficazes, que possibilitam medições mais exatas e precisas, não procurando o cientista a novidade nem pôr em causa o paradigma.
3. Ciência extraordinária. Período de crise do paradigma vigente dado que as anomalias a princípio detetadas e relativamente desvalorizadas persistem e, dada a sua gravidade, ameaçam as bases do paradigma. Não basta a existência de anomalias – o próprio termo é significativo – para que o paradigma vigente entre em crise. É necessário que as anomalias abalem a confiança no paradigma e suscitem a constituição de paradigmas alternativos. Da união em torno de um paradigma passamos à divisão. A crise pode ser resolvida de duas maneiras: 1. Ou se reformula e reajusta o paradigma continuando a trabalhar com ele; 2. Ou se abandona o paradigma substituindo-o por um novo.
4. Revolução científica. Período em que se dá a mudança de paradigma e a constituição de uma nova forma de ver o mundo incompatível ou incomensurável com a anterior. A transição de um paradigma para outro não é pois um processo cumulativo, mas uma rutura e uma aposta nas potencialidades do novo paradigma. Se não conseguir explicar melhor os fenómenos que derrotavam o poder explicativo do anterior paradigma, o novo não triunfará.
5. Novo período de ciência normal. Estabelecida uma nova forma de fazer ciência e dotados de um novo «mapa» para explorar e investigar a natureza, os cientistas regressam a uma atividade relativamente rotineira marcada pela preocupação em consolidar o novo paradigma e em ampliar a sua aplicação.
A INCOMENSURABILIDADE DOS PARADIGMAS



Não há um critério absoluto que permita medir ou aferir os méritos relativos de cada paradigma e decidir da sua maior ou menor verdade.
Enquanto nova forma de ver o mundo – nova mundivisão –, o paradigma triunfante estabelece uma nova forma de fazer ciência, definindo um novo conjunto de normas e de procedimentos, que questões são legítimas, como é apropriado resolvê-las e mesmo um entendimento diferente de conceitos anteriores. Mas o novo não triunfa sobre o velho porque é objetivamente melhor. Na verdade, os paradigmas são incomensuráveis: diferentes maneiras de ver o mesmo mundo instalam os cientistas em mundos diferentes. Assim, não pode haver uma forma objetiva, um critério neutro, exterior a cada paradigma para dizer que, na passagem de um a outro, houve um avanço em direção à verdade. A verdade é sempre relativa a um paradigma, pelo que é impossível, dada a incomensurabilidade dos paradigmas, determinar se um é mais verdadeiro ou melhor do que outro.

A ESCOLHA ENTRE PARADIGMAS
Não há nenhum argumento a priori – nenhum critério objetivamente estabelecido – que em certa medida obrigue um cientista a adotar um paradigma e não outro.
Apesar de Kuhn apresentar alguns critérios objetivos que podem tornar um paradigma preferível a outro – simplicidade, fecundidade, alcance e precisão explicativa –, a escolha entre paradigmas envolve vários fatores (psicológicos e sociais). Assim, mesmo os critérios objetivos são objeto de apreciação e de interpretação condicionadas por gostos, convicções religiosas, etc. No caso do triunfo do paradigma de Copérnico, por exemplo, houve cientistas que foram atraídos pela sua simplicidade, outros que valorizaram a sua capacidade explicativa e outros ainda que o rejeitaram por motivos religiosos. Vários fatores – científicos e extracientíficos (gostos, preferências religiosas, poder político e mesmo preconceitos) ‒ influenciam a escolha do novo paradigma.
Assim, a mudança de paradigma não obedece a critérios estritamente racionais e objetivos.
Não há aproximação à verdade na evolução da ciência porque não podemos determinar se um paradigma é superior a outro.
A ciência evolui, mas é muito discutível dizer que essa evolução se faz de forma estritamente racional e objetiva.

Comparação entre Popper e Kuhn sobre a evolução da ciência
Temas
Popper
Kuhn


Verdade
A verdade é a meta ideal da investigação científica. As teorias mais verosímeis são as que explicam melhor os factos, sugerem novas experimentações e superaram testes em que as outras foram derrotadas.
A comunidade científica muda de paradigmas, mas não há forma objetiva de provar que a mudança é um crescimento do conhecimento em direção à verdade. A verdade é relativa a um paradigma, e por isso nenhum é «mais verosímil» do que outro.

Progresso ou avanço da ciência
Há progresso em ciência porque as novas teorias, sobrevivendo a testes rigorosos, eliminam os erros das anteriores e assim aproximam-se mais da verdade. A verosimilhança é o critério do progresso.
Não há progresso em ciência, exceto nos períodos de ciência normal. Na passagem de um paradigma a outro, não há forma de dizer que o novo representa um maior avanço em direção à verdade.


Objetividade
O crescimento ou progresso do conhecimento é objetivo porque a nova teoria superou testes precisos e rigorosos, confrontou-se com observações tendentes a superá-las e resistiu. Uma teoria está mais próxima da verdade do que outra quando tem um conteúdo empírico corroborado por mais factos e torna compreensíveis mais fenómenos do que outra teoria.
A mudança de paradigma não é determinada por critérios estritamente objetivos, mas por uma combinação de fatores extracientíficos (psicológicos e sociológicos) e científicos (caraterísticas das teorias – poder explicativo, alcance, simplicidade e fecundidade).

Racionalidade
A aproximação à verdade que carateriza a evolução da ciência é marcada pela atitude racional traduzida na vigilância crítica em relação às teorias: nunca se pode dizer que deixaram de ser conjeturas e se tornaram verdades.
A evolução da ciência não é determinada por uma atitude de vigilância crítica porque os cientistas tendem a ignorar em muitos casos as refutações de que um paradigma é alvo. Na passagem de um paradigma a outro, os fatores lógicos e racionais são muitas vezes superados por fatores subjetivos.


A ciência evolui e progride de forma racional e objetiva.
A ciência evolui, mas é difícil falar de progresso porque a sucessão de paradigmas não acontece segundo padrões estritamente racionais e objetivos.



EXERCÍCIOS
I
1. Esclareça a noção de paradigma em Kuhn e mostre como, por seu intermédio, nega o indutivismo e o falsificacionismo.
Um paradigma é uma forma de pensar e de agir no interior de uma dada comunidade científica que corresponde a uma certa tradição no modo de entender e de fazer ciência. Um paradigma é constituído:
1 – Pela teoria dominante e pelas leis que estão associadas a essa teoria. O paradigma newtoniano, dominante durante vários séculos, incluía as leis do movimento descobertas por Newton e que explicavam o movimento de vários corpos desde os planetas às marés.
2 – Os instrumentos aprovados e julgados adequados à prática científica. O telescópio e a forma de o usar faziam parte, juntamente com outros instrumentos, do paradigma newtoniano.
3 – Uma conceção geral ou metafísica acerca da natureza da realidade. A conceção metafísica dominante no seio do paradigma newtoniano era o mecanicismo, a equiparação do mundo natural a uma máquina onde se dava um jogo de forças regido pela causalidade e onde não havia lugar para uma visão finalista ou teleológica da natureza.
4 – Prescrições e indicações metodológicas gerais. O paradigma newtoniano rejeitava como fazendo parte da investigação científica a tentativa de descobrir as causas últimas dos fenómenos da nossa experiência.
Este paradigma fornecia regras para resolver problemas e investigar a natureza, para usar os instrumentos científicos disponíveis (como o telescópio) e para avaliar se as explicações ou respostas obtidas eram boas.
A constituição de um paradigma instaura a comunidade dos sábios (para Kuhn, a ciência é obra de comunidades científicas e não de génios isolados) e define, não o meio de solucionar os problemas, mas também os problemas que convém resolver.
Sem um paradigma, não podemos falar de comunidade científica nem, por isso, de ciência. Assim, o que distingue a ciência da não ciência não é, como pensam os indutivistas, o facto de as teorias científicas poderem ser verificadas ou, como pensa Popper, o facto de poderem ser falsificadas. O critério de demarcação reside no facto de existir ou não num determinado campo de investigação um paradigma aceite pela generalidade dos seus praticantes.

2. Descreva a evolução da ciência segundo Kuhn, articulando as seguintes noções:
‒ Paradigma.
‒ Ciência normal.
– Ciência extraordinária.
‒ Incomensurabilidade dos paradigmas.
‒ Progresso científico.
Um paradigma é um modo de fazer ciência, de valorizar a ciência e de conceber o mundo. Uma disciplina que não possui um paradigma não tem direito ao título de ciência. Segundo Kuhn, o conhecimento científico não evolui por acumulação de verdades ou correção de erros, mas por revoluções científicas. No período de ciência normal, o paradigma vigente é norma teórica e prática que não se discute nem se tenta refutar. O que define em grande parte este período da evolução da ciência é a resolução de puzzles. O comportamento do cientista é análogo ao de um fazedor de puzzles que pretende encaixar uma peça num enquadramento preexistente e conhecido nos seus aspetos gerais. A maior parte da história do desenvolvimento da ciência consiste na resolução de problemas seguindo as regras do paradigma reinante. No período da ciência normal, que não é um período de apatia mas sim de acalmia, o insucesso na resolução de um problema é atribuído mais a deficiências metodológicas do investigador do que a uma insuficiência do paradigma reinante. O que provoca uma crise paradigmática e um período de ciência extraordinária?
O paradigma em vigor não começa a ser contestado mal surgem anomalias. O paradigma em vigor começa a ser contestado quando as anomalias não são suprimidas e se vão acumulando em quantidade e qualidade, enfraquecendo os fundamentos teóricos do paradigma.
A mudança de paradigma não é uma simples questão de acumulação de factos resistentes ao paradigma. Quanto mais graves e persistentes forem, mais razões para desconfiar do paradigma haverá e maior será a crise que o atinge. As anomalias são factos polémicos que, pela sua persistência, acabam por abalar a confiança no paradigma estabelecido e suscitar discussão no seio da comunidade científica de um dado campo de investigação. Mas só passamos da crise paradigmática a um período de ciência extraordinária quando são apresentados por membros da comunidade científica um ou mais paradigmas alternativos.
Uma revolução científica corresponde ao abandono de um paradigma e à aceitação de outro. Instaura-se uma nova forma de ver e não só de interpretar a natureza. Há uma certa tonalidade religiosa nesta passagem porque se trata de uma aposta baseada na fé nas virtualidades do novo paradigma que é completamente incompatível com o anterior.
O triunfo de um novo paradigma sobre o anterior não se deve a razões inteiramente objetivas.
A mudança de paradigma deve-se, em parte, a fatores objetivos como fecundidade, simplicidade, alcance, exatidão e consistência das novas propostas teórico-práticas dos adversários do paradigma tradicional. Mas isso não implica contudo que a mudança se faça de forma plenamente objetiva. Poderíamos pensar que a razão da preferência é um critério objetivo: o novo paradigma resolve problemas que o anterior não resolvia. Contudo, segundo Kuhn, não é isso que acontece. O novo paradigma não resolve propriamente falando problemas que ficaram por resolver porque enfrenta novos problemas e porque mesmo os anteriores problemas são interpretados de modo diferente num contexto diferente. Galileu, dentro do paradigma coperniciano, debateu-se com um problema que não era o problema dos aristotélicos no interior do paradigma de Ptolomeu. Saber porque dois corpos de peso diferente em queda livre demoram o mesmo tempo a alcançar o solo não era um problema que existisse na teoria aristotélico-ptolemaica pela simples razão, pensa Kuhn, de que não cabia no quadro mental e teórico do paradigma aristotélico.
Então, o que decide a preferência pelo novo paradigma. Em última análise, fatores de ordem subjetiva. Cada cientista interpreta à sua maneira os critérios objetivos de preferência entre paradigmas e além disso não se devem esquecer fatores sociológicos como o prestígio de um dado grupo de cientistas e interesses económicos e sociais no advento de uma nova forma de ver o mundo.
Poderá falar-se assim de progresso científico? Esta perspetiva torna muito problemático falar da sucessão de paradigmas como progresso em direção à verdade. Não há, em termos estritamente objetivos, progresso científico por haver mudança de paradigma. Só no interior de cada paradigma se pode falar de progresso como acumulação e aperfeiçoamento de conhecimentos. Os paradigmas são diferentes, mas não melhores nem piores de um ponto de vista objetivo. O novo paradigma não é necessariamente uma melhor interpretação da realidade. E porquê? Porque, segundo Kuhn, os paradigmas são incomensuráveis. Falam linguagens diferentes, consideram relevantes problemas diferentes e veem de modo diferente problemas semelhantes. Tudo isso torna impossível uma avaliação e uma escolha objetiva dos paradigmas.
 Não podemos, segundo Kuhn, dizer que um novo paradigma nos aproxima objetivamente mais da verdade do que o anterior. Podemos pensar que sim, mas não prová-lo de forma objetiva. As revoluções científicas são mudanças de paradigma e nada mais. E isto por mais que pensemos que novas teorias que conhecemos – a teoria eletromagnética de Maxwell e a teoria química de Lavoisier, por exemplo – explicavam melhor (e assim estavam mais próximas da verdade) a propagação das ondas eletromagnéticas e a combustão do que as teorias anteriores.

3. Para Kuhn, a atividade científica desenvolve-se no interior de comunidades de seres humanos que seguem uma determinada teoria, um dado modo de ver o mundo e certas práticas de investigação. Que ligação existe entre a natureza da atividade científica e a resistência à mudança?
As mudanças historicamente assinaláveis no desenvolvimento da ciência não são puramente teóricas – resultado da força e veracidade intrínseca de uma teoria – nem objetivas. São influenciadas por fatores sociais, psicológicos e políticos. Nenhum paradigma triunfa de forma objetiva. A mudança de paradigma e a correlativa revolução científica resultam de uma aliança de fatores objetivos e subjetivos. Devemos pois pensar o conhecimento científico como uma atividade que se desenrola em comunidades de cientistas que aceitam um determinado modo de ver a ciência e de a fazer, ou seja, uma tradição. Exemplos destas comunidades são a comunidade dos biólogos que aceitam e aplicam a teoria da evolução de Darwin, a comunidade dos astrónomos e cientistas que aceitam e usam as teorias de Newton e de Einstein e a comunidade dos químicos que aceitam a teoria molecular. A pessoa que decide ser cientista recebe um prolongado ensino destas teorias e das formas de investigação típicas da comunidade científica em que se insere de acordo com o seu campo de atividade. Esta tradição de investigação ou paradigma científico inclui o modo de pensar e de agir. O cientista-aprendiz aprende as teorias básicas do seu campo de investigação e os métodos apropriados para aplicar e ampliar essas teorias básicas. Exemplos de paradigma são a teoria do átomo em química, a teoria coperniciana de que a Terra e os planetas giram em torno do Sol em astronomia e a teoria da evolução em biologia. Em cada um destes casos, a comunidade científica aceita estas teorias fundamentais, usa-as como guia de investigação e tende a manter-se fiel a elas mesmo quando algumas observações não são enquadráveis nos seus quadros explicativos.
A ciência nem sempre se desenvolve de forma gradual, ao contrário do que tendem a pensar os indutivistas e os falsificacionistas. Embora os cientistas tendam a agarrar-se tenazmente à teoria paradigmática, quando muitas observações não são explicáveis à luz do paradigma e abalam os seus fundamentos – isto é, quando há demasiadas e graves anomalias –, acontece uma crise. Alguns cientistas começam a repensar as suas teorias, acabando por se formar uma nova teoria que dá conta das anomalias persistentes. Pode dar-se então uma revolução científica. Alguns cientistas – habitualmente os mais velhos e com mais estatuto e interesses a defender – continuam fiéis às teorias anteriores, enquanto outros – habitualmente os mais novos ‒ se tornam discípulos da nova teoria. Quando outros mais novos entram na comunidade científica, aprendem a nova teoria que se tornará o novo paradigma da ciência. Um novo paradigma dá-nos uma nova forma de ver o mundo, novas formas de pensar, novos métodos e novos objetivos na investigação da natureza e do mundo.

4. Por que razão, para Kuhn, um novo paradigma não representa necessariamente um avanço em relação ao paradigma anterior? Está de acordo?
Kuhn responde que não há um critério independente de cada paradigma para avaliar se a atividade científica progride em direção à verdade ou não. Em tempos de ciência normal, podemos definir critérios que nos permitem ver se a utilização do paradigma nos encaminha para a verdade ou não. Por que razão é isto possível? Porque cada paradigma é também constituído pelos critérios que avaliam a relevância dos problemas e das soluções propostas. Cada paradigma é avaliado pelos seus próprios critérios de avaliação.
Em tempos de crise, poderíamos pensar que o paradigma em crise é avaliado pelos critérios do paradigma emergente e que se concluiria objetivamente que o novo paradigma resolve melhor certos problemas do que o paradigma contestado. O novo paradigma resolveria problemas que o anterior não resolvia. Contudo, segundo Kuhn, não é isso que acontece. O novo paradigma não resolve propriamente falando problemas que ficaram por resolver porque enfrenta novos problemas e porque mesmo os anteriores problemas são interpretados de modo diferente, num contexto diferente. Galileu, dentro do paradigma coperniciano, debateu-se com um problema que não era o problema dos aristotélicos no interior do paradigma de Ptolomeu. Saber por que dois corpos de peso diferente em queda livre demoram o mesmo tempo a alcançar o solo não era um problema que existisse na teoria aristotélico-ptolemaica pela simples razão, pensa Kuhn, de que não cabia no quadro mental e teórico do paradigma aristotélico.
Cada paradigma define que problemas devem ser investigados, como devem sê-lo e como aferir os resultados. Por isso, não herda necessariamente os problemas do paradigma anterior.
Esta perspetiva torna muito problemático falar da sucessão de paradigmas como progresso em direção à verdade. Não podemos, segundo Kuhn, dizer que um novo paradigma nos aproxima objetivamente mais da verdade do que o anterior. Podemos pensar que sim, mas não prová-lo de forma objetiva. As revoluções científicas são mudanças de paradigma e nada mais. E isto por mais que pensemos que novas teorias que conhecemos – a teoria eletromagnética de Maxwell e a teoria química de Lavoisier, por exemplo – explicavam melhor (e assim estavam mais próximas da verdade) a propagação das ondas eletromagnéticas e a combustão do que as teorias anteriores. As conclusões de Kuhn parecem demasiado relativistas e céticas. O facto de os cientistas não serem orientados pelo ideal de verdade e de não haver verdades objetivas parece demasiado perigoso e convidar-nos a desvalorizar uma atividade cujo valor para a humanidade se mede pelo muito que lhe devemos em diversos campos. Um dos grandes problemas que a perspetiva de Kuhn nos deixa é o de como justificar o combate a crenças falsas e prejudiciais. Sabe-se que muitos sul-africanos infetados com o vírus da SIDA julgam benéfico para a sua saúde ter relações sexuais com jovens adolescentes saudáveis. Esta crença é objetivamente falsa, porque a propagação do vírus da SIDA a desmente tragicamente. Ora, Kuhn não parece dar-nos instrumentos objetivos para refutar esta crença. Porquê? Porque, se no interior da ciência não podemos objetivamente justificar que uma teoria é melhor do que outra, então como mostrar que o conhecimento científico é superior a certas crenças de senso comum culturalmente estabelecidas?

5. Distinga ciência normal de ciência extraordinária.
A ciência normal é uma expressão que em Kuhn designa os momentos da história da ciência em que não há crises paradigmáticas, revoluções ou mudanças de paradigma. Não se questiona o paradigma reinante e há a tendência para desvalorizar evidências factuais que nele não encaixam. Os cientistas resolvem, na expressão de Kuhn, puzzles. Isto significa que cada nova peça – cada novo problema – já tem uma forma preestabelecida de ser resolvido, tal como num puzzle uma peça solta já tem um enquadramento e um lugar atribuídos. É um período de concórdia generalizada. A ciência extraordinária designa um período de crise provocado por anomalias não explicáveis pelo paradigma existente e que podem provocar uma revolução científica, ou seja, uma mudança de paradigma, caso os cientistas abandonem o anterior e prefiram uma das teorias propostas para o substituir. A ciência normal é um período de «paz científica» relativa, e a ciência extraordinária é um período de discussão do paradigma vigente em que diminui a confiança neste e surgem novas propostas paradigmáticas. Durante muitos séculos, o paradigma aristotélico-ptolemaico reinou de forma relativamente pacífica. A partir da obra póstuma de Copérnico sobre as órbitas dos planetas, entrou-se num período de ciência extraordinária com debates acesos entre opositores e adeptos do paradigma geocentrista. Esforços e sacrifícios foram postos ao serviço da nova causa de forma dramática, como é ilustrado pelo famoso caso Galileu. A instauração de um novo paradigma dá origem a uma nova forma de ver o mundo, a novos modos de pensar e a novos objetivos e métodos para a atividade científica. Instaurado um novo paradigma, segue-se um novo período de ciência normal em que aquele é promovido e consolidado no seio da comunidade científica.

6. Por que razão é, para Kuhn, importante salientar que a atividade científica se desenvolve no interior de comunidades de seres humanos que seguem determinadas teorias, modos de ver o mundo e práticas de investigação?
É importante salientar este aspeto para percebermos que as mudanças historicamente assinaláveis no desenvolvimento da ciência não são puramente teóricas – resultado da força e veracidade intrínseca de uma teoria – nem objetivas. São influenciadas por fatores sociais, psicológicos e políticos. Nenhum paradigma triunfa de forma objetiva. A mudança de paradigma e a correlativa revolução científica resultam de uma aliança de fatores objetivos e subjetivos. Devemos pois pensar o conhecimento científico como uma atividade que se desenrola em comunidades de cientistas que aceitam um determinado modo de ver a ciência e de a fazer, ou seja, uma tradição. Exemplos destas comunidades são a comunidade dos biólogos que aceitam e aplicam a teoria da evolução de Darwin, a comunidade dos astrónomos e cientistas que aceitam e usam as teorias de Newton e de Einstein e a comunidade dos químicos que aceitam a teoria molecular. A pessoa que decide ser cientista recebe um prolongado ensino destas teorias e das formas de investigação típicas da comunidade científica em que se insere de acordo com o seu campo de atividade. Esta tradição de investigação ou paradigma científico inclui o modo de pensar e de agir. O cientista-aprendiz aprende as teorias básicas do seu campo de investigação e os métodos apropriados para aplicar e ampliar essas teorias básicas. Exemplos de paradigma são a teoria do átomo em química, a teoria coperniciana de que a Terra e os planetas giram em torno do Sol em astronomia e a teoria da evolução em biologia. Em cada um destes casos, a comunidade científica aceita estas teorias fundamentais, usa-as como guia de investigação e tende a manter-se fiel a elas, mesmo quando algumas observações não são enquadráveis nos seus quadros explicativos.
A ciência nem sempre se desenvolve de forma gradual, ao contrário do que tendem a pensar os indutivistas e os falsificacionistas. Embora os cientistas tendam a agarrar-se tenazmente à teoria paradigmática, quando muitas observações não são explicáveis à luz do paradigma – isto é, quando há demasiadas anomalias –, acontece uma crise. Alguns cientistas começam a repensar as suas teorias, acabando por se formar uma nova teoria que dá conta das anomalias persistentes. Dá-se então uma revolução científica. Alguns cientistas – habitualmente os mais velhos e com mais estatuto e interesses a defender – continuam fiéis às teorias anteriores, enquanto outros – habitualmente os mais novos ‒ se tornam discípulos da nova teoria. Quando outros mais novos entram na comunidade científica, aprendem a nova teoria que se tornará o novo paradigma da ciência. Um novo paradigma dá-nos uma nova forma de ver o mundo, novas formas de pensar, novos métodos e novos objetivos na investigação da natureza e do mundo.

7. Segundo Kuhn, o melhor critério para distinguir ciência de pseudociência é este: é verdade científica o que a comunidade dos cientistas considera verdade científica. Como ele próprio diz: «Que melhor critério do que é ou não científico do que a decisão do grupo dos cientistas?».
Está de acordo? É um critério aceitável?
Parece que não. O que significa esta tese de Kuhn? Que uma teoria é científica e não pseudocientífica se for consistente com as teorias que prevalecem no interior da comunidade dos cientistas. Contudo, podemos perguntar se não é possível a um qualquer grupo reclamar que é uma comunidade científica. Assim, por exemplo, a Sociedade de Investigação Internacional da Terra Plana pode reclamar ser um grupo de cientistas que visam estabelecer como facto científico que a Terra é plana e que a astronomia moderna não é senão uma fraude, um mito. Como distinguir então a verdadeira ciência da pseudociência? Kuhn apresenta cinco critérios que, independentemente das preferências pessoais dos cientistas, separam uma boa teoria científica do que não o é. Esses critérios são:
1 ‒ A exatidão – Este critério exprime o acordo entre as previsões das teorias fundamentais que compõem o paradigma e os resultados do trabalho experimental dos cientistas. É um critério decisivo.
2 – A consistência – Exprime a compatibilidade das teorias fundamentais do paradigma com outras teorias relativamente conhecidas e aceites pela comunidade científica.
3 – A amplitude – Exprime o alcance das teorias fundamentais que compõem o paradigma e a sua capacidade de abranger o maior número possível de fenómenos dentro do quadro do paradigma.
4 – A simplicidade – Um paradigma é tanto mais simples quanto menor o número de leis a que faz apelo para explicar os fenómenos e quanto maior o número de fenómenos que essas leis conseguem explicar.
5 – Fecundidade – Exprime a capacidade do paradigma ou de alguma das suas teorias fundamentais possibilitar novas descobertas científicas.

Estes critérios são em grande parte racionais, não são estabelecidos pela experiência, o que revela, apesar de tudo, que a ciência é uma empresa racional.