DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA KANTIANA
DIÁLOGO 1
O que significa fundamentação da moral
JÚLIO – Olá.
ANA - Tudo bem?
JÚLIO
– Comigo está mas o meu pai está insuportável. Emprestou cinco mil
euros a um amigo e agora o tipo não dá notícia há meses. Não se consegue
encontrá – lo. Se calhar emigrou. Cinco mil euros ...
ANA
– Que aborrecimento. O teu pai tem razão em estar aborrecido. Olha na
semana passada o meu professor falou de um caso semelhante para nos
esclarecer sobre o que no manual se chama fundamentação da moral.
JÚLIO – Fun..... quê?
ANA – Fundamentação da moral.
JÚLIO
– Ah! Estudei isso o ano passado. Trata – se de saber qual é o critério
que permite distinguir o certo do errado quando falamos de acções
morais.
ANA – Essa palavra critério....
JÚLIO
– É fácil. O critério é a base em que nos apoiamos para dizer que uma
acção é boa ou não. Tal como os edifícios têm alicerces, as nossas
avaliações têm de se basear em alguma coisa. Essa base é o critério.
ANA
– Imaginemos então que uma pessoa mente como foi o caso, ao que parece,
da pessoa a quem o teu pai emprestou dinheiro. Como se aplica aqui isso
a que chamas critério?
JÚLIO
– Conheces aqueles provérbios populares como « A árvore conhece – se
pelos frutos» e « As boas intenções fazem as boas acções(tornam boas as
acções)»? Claro que conheces. Se olhares bem, temos aqui dois critérios.
Um critério é a intenção com que alguém age e o outro critério é o que
resulta do que fazemos – as consequências da acção.
ANA
– Então se eu aplicar o critério da intenção, se basear a avaliação do
que o amigo do teu pai fez na intenção com que agiu, direi que agiu
erradamente porque agiu com a intenção de prejudicar alguém. Mentiu para
conseguir o empréstimo.
JÚLIO
– Se baseares a avaliação dessa acção nas suas consequências dirás que
as consequências foram más para o teu pai e boas para o seu suposto
amigo.
ANA – Espera aí! Então em que ficamos? Parece que estás a dizer que a acção é boa e má ao mesmo tempo?
JÚLIO
– Não é bem isso. Contudo para esclareceres o assunto terás de estudar
duas teorias que eu estudei o ano passado: a teoria deontológica de Kant
e a teoria utilitarista de Mill.
ANA – Já estou a ficar assustada com esses palavrões.
JÚLIO – Noutras disciplinas encontrei «palavrões» bem piores. Não é nada do outro mundo.
DIÁLOGO 2
A distinção entre acções conformes ao dever e feitas por dever.
ANA – Olá Júlio! Já se resolveu aquele problema dos cinco mil euros?
JÚLIO – Não. Voaram e não sabemos onde foram parar. Deixemos isso. Como vai a filosofia?
ANA
– Começámos a dar a ética de Kant. E já estou a ter dificuldades. Não
percebo aquela distinção entre acções conformes ao dever e acções por
dever ou que cumprem o dever por dever. Não é suficiente cumprir o
dever? Se não roubo, não minto e não mato, não é isso suficiente para
agir moralmente bem? É preciso mais alguma coisa? Não há tanta gente
neste mundo que age contrariamente ao dever? Não deveríamos contentar –
nos com o fato de que há pessoas que fazem o que devem fazer seja qual
for o motivo? Se pago os impostos que devo pagar, que importa saber se é
por receio de ter problemas com o fisco?
JÚLIO
– Calma. Não creio que estejas a leste do assunto. Estás já a criticar
Kant. De certeza que percebeste a distinção de que falaste. O que não
percebeste é por que razão Kant a apresenta.
ANA
– Então eu digo – te o que percebi. As acções conformes ao dever são
acções que cumprem o dever por interesse, ou como o nosso professor
disse, com «segundas intenções».
JÚLIO
– Certo. Se não roubas um objecto que muito desejas por receio das
eventuais consequências – ser descoberto e castigado – é evidente que
cumpres o dever (não roubas) , respeitas uma norma que proíbe roubar.
Contudo, só cumpres o dever por medo das consequências, por interesse em
evitar problemas. O motivo, a razão de ser da tua acção não é o
cumprimento do dever. Para Kant, a tua acção não tem neste caso valor
moral porque o cumprimento do dever depende de algo. Ora, para ele, tens
de respeitar essa norma - « Não roubes» - por si mesma.
ANA
– Quer dizer que a acção somente tem valor moral se o respeito pelo
dever – pelo que é correcto fazer – for absoluto. A pessoa que age em
conformidade com o dever é a que precisa de uma razão suplementar para
cumprir o dever. Parece incapaz de fazer uma coisa unicamente porque
essa é a coisa correcta a fazer. Cumpre o dever pensando também no que
pode ganhar com isso – consciência tranquila, evitar censuras, ter boa
reputação, não arranjar problemas, etc.
JÚLIO
– Quem age por dever cumpre o dever por dever e não por interesse. Diz a
si mesma «É meu dever fazer isto e ponto final.». Não precisa de
sobremesa para comer o prato principal.
ANA – Que rica comparação…
JÚLIO
– Pois. A vontade que decide agir por dever é a vontade para a qual
agir correctamente é o único motivo na base da sua decisão. Imagina que a
tua turma organiza uma viagem de finalistas e que confiam de tal
maneira em ti que não vão investigar quanto se ganhou em rifas e outras
actividades para financiar a campanha. Qual é o teu dever? Não retirar
nada para ti. Ao fazer isto fazes o que é correcto.
ANA
– Mas mais importante do que isso é por que razão decidi fazer o que é
correcto. Se guardei bem o dinheiro dos colegas com receio de
posteriormente ser descoberta ou para ser elogiada pela minha
honestidade agi em conformidade com o dever. Se guardei o dinheiro
simplesmente porque essa era a ação correcta agi por dever, ou seja, só
houve um motivo a influenciar a minha acção: fazer o que devia ser
feito. A moralidade da sua acção depende do motivo ou da razão pela qual
agiu honestamente.
JÚLIO – Exacto. Estás a ver como afinal percebeste!
ANA – Espera um pouco. Há uma coisa que ainda me faz confusão. Por que razão Kant insiste tanto nesta distinção tão rigorosa?
JÚLIO
– Em primeiro lugar, Kant quer deixar claro que mais importante do que
cumprir o dever é a forma ou a maneira – o motivo e a intenção – como
cumprimos o dever. Em segundo lugar, Kant quer mostrar que se não houver
obrigações absolutas, se o cumprimento do dever depender dos nossos
bons sentimentos, dos nossos interesses, ou mesmo do nosso carácter, a
moralidade das acções ficará ao sabor das circunstâncias. Se não
tivermos bons sentimentos ou mesmo compaixão pelos outros, cumpriremos o
dever? Se não for do nosso interesse cumpriremos o dever?
DIÁLOGO 4
A lei moral e o dever
ANA – Júlio, que relação há entre a lei moral e o cumprimento do dever como deve ser?
JÚLIO – A relação é simples e creio que estás somente a querer confirmar o que já sabes.
ANA – Pode ser que sim.
JÚLIO – Segundo Kant, a lei moral é uma regra geral, um princípio que está na consciência de todo qualquer ser racional. Com efeito, ela é a lei imanente à consciência moral do sujeito que age. Caso eu não cumpra a lei moral, i. e., se, em determinada
situação, a minha acção não se inspirar única e simplesmente no
respeito pela lei moral mas se deixar influenciar por interesses e
inclinações, não serei por isso levado a tribunal. Assim, por exemplo, posso pagar impostos para evitar problemas. Por não ter valor moral (a acção é realizada não por ser considerada boa em si mesma mas como meio para evitar aborrecimentos) essa acção não deixa de ter valor legal. Falando em termos exclusivamente morais, i. e., tendo em consideração simplesmente a intenção e não o resultado, a forma como se agiu e não o que se fez, eu sou o juiz e o réu.
ANA – Não compliques.
JÚLIO – Hum…
Olha a lei moral diz – nos como devemos cumprir o dever. Exige que a
vontade domine as inclinações sensíveis - desejos, interesses e
sentimentos – e cumpra o dever de forma pura. Ouvir
a voz da lei moral é ficar a saber como cumprir de forma moralmente
correcta o dever. Essa lei diz-nos de forma muito geral o seguinte: «Deves em qualquer circunstância cumprir o dever pelo dever».
ANA – Certo mas diz – me que relação há entre a lei moral e
as regras mais concretas que nos ensinaram que era errado não respeitar
tais como não roubar, não matar inocentes e não mentir. Que diferença
há entre estas normas e a dita lei moral?
JÚLIO
– Fizeste bem em falar de normas morais como «Não deves mentir»; «Não
deves matar»; «Não deves roubar». A lei moral, segundo Kant, diz-nos
como cumprir esses deveres, qual a forma correcta de os cumprir. Assim
sendo, é uma lei puramente racional e puramente formal. Não é uma regra
concreta como «Não matarás!» mas um princípio geral que deve ser seguido
quando cumpro essas regras concretas que proíbem o roubo, o
assassinato, a mentira, etc.
ANA – Deixa ver se fui boa aluna…. Eh,eh. Quem apresenta esta obrigação absoluta «Age por dever!» à minha vontade? A razão.
Que
nome dá Kant ao princípio ético fundamental que exige que eu cumpra o
dever sempre por dever, sem qualquer outra intenção ou motivo? Kant dá -lhe o nome de lei moral.
As acções feitas por dever são assim acções que cumprem o que a lei moral exige.
JÚLIO – Eu bem sabia que só querias umas luzes sobre o assunto.
Temos
na nossa sociedade um conjunto de normas morais que nos dizem aquilo
que devemos fazer, tais como “Não mentir”, “Não roubar”, “Não matar”,
“Não agredir física e psicologicamente o outro”..., normas essas que a
maioria das pessoas da sociedade cumpre. Mas por que é que as cumprem?
Ou melhor, de que modo as cumprem? Ora, normalmente cumprem-nas (cumprem
o dever), não pela obediência a elas mesmas, mas por interesse (o que
para Kant não serve).
Para Kant, a sociedade apenas me diz o que devo fazer, mas não como o devo fazer, com que intenção devo cumprir o dever. Isso é a minha consciência que me diz através da lei moral.
DIÁLOGO 4
Obrigações absolutas e não – absolutas.
ANA
– Falámos da lei moral que ordena que cumpramos o dever por dever e
logo de seguida aparece um outro termo chamado imperativo categórico.
Que relação há entre o imperativo categórico e a lei moral? A lei moral é
um imperativo categórico?
JÚLIO
– Em vez de dizeres que a lei moral é um imperativo categórico é mais
correcto dizeres que a lei moral tem a forma de um imperativo
categórico. É que há muitos imperativos categóricos concretos ou
particulares («É proibido fumar», «Não roubes!», «Não mintas!», etc.) e a
lei moral é um mandamento especial.
ANA – OK. Mas o que significa dizer que a lei moral tem a forma de um imperativo categórico.
JÚLIO
– Significa que tem a forma de uma obrigação absoluta. Obrigação
categórica e absoluta são termos equivalentes. A lei moral é uma lei que
nos diz qual a forma correcta de cumprir o dever. Mas não nos diz nada
de concreto, ou seja, não diz «Não roubes», «Não mintas» e «Não mates
inocentes indefesos». Diz – nos a forma correcta de cumprir esses
deveres. A forma correcta é: respeitar absolutamente esses deveres.
Matar, roubar e mentir são proibições absolutas e devemos evitar a sua
infracção não porque tenhamos medo das consequências, não porque
tenhamos medo de Deus e dos seus castigos eternos mas simplesmente
porque é o nosso dever, a coisa correcta a fazer. A lei moral diz – nos
que é nossa obrigação absoluta fazer o que é correcto e ponto.
ANA
– Por isso é que tem a forma de um imperativo categórico. Ordena que se
cumpra o dever incondicionalmente. Ordena que se cumpra o dever
absolutamente. Se não minto devo fazê – lo em toda e qualquer
circunstância, sempre. A lei moral como imperativo categórico ordena
que independentemente das consequências mas não de forma irresponsável
se faça o que é correcto.
JÚLIO – É isso.
ANA – Kant insiste muito em que cumprir o dever é uma obrigação absoluta.
JÚLIO
- Falar em moral consiste em falar em certas obrigações que temos
para connosco e para com os outros. Mas existem dois tipos de
obrigações. As obrigações que adquirimos apenas em certos casos, em
função dos nossos desejos ou projectos, e as obrigações que teremos
sempre, sejam quais forem os nossos desejos, sejam quais forem os nossos
projectos.
ANA – Dá - me um exemplo
JÚLIO - Só tenho a obrigação de estudar medicina na condição de quer
ser médico. Caso mude de ideias e abandone o projecto de vir a ser
médico, também a obrigação de estudar medicina desaparece. Apenas
adquiro a obrigação de saber o código da estrada se quiser tirar a carta
de condução. Se não for esse o meu projecto (ou não for esse o meu
desejo), esta obrigação deixa de existir.
ANA
– A essas obrigações que dependem de condições dá Kant o nome de
imperativos hipotéticos. Se, por hipótese, quiser ser médica então é meu
dever estudar medicina, se quiser ser campeã olímpica é minha obrigação
obter os mínimos para participar e treinar imenso. Mas se não quiser
nada disso, as obrigações não têm cabimento.
JÚLIO – Isso mesmo. A palavra “imperativo” quer dizer obrigação; por outro lado, com a palavra “hipotético”, Kant está a referir-se às obrigações que adquirimos apenas na condição – ou hipótese – de termos um certo desejo ou projecto, mas não sempre.
ANA
– Deixa ver se percebi. A obrigação de salvar uma pessoa do
afogamento, se estiver ao nosso alcance fazê-lo, é absoluta, não é
hipotética. Não depende de termos certos desejos, projectos ou
sentimentos particulares. O mesmo acontece com a obrigação de não tratar
os outros apenas como meios e sim como pessoas.
JÚLIO – Está percebido.
ANA
– Mas diz – me. Há uma coisa que ainda não entendi. Por que razão
insiste tanto Kant na ideia de que há obrigações absolutas. O autor que
estamos agora a estudar – Stuart – Mill – afirma que não há obrigações
morais absolutas.
JÚLIO
- Se a moral consistisse em seguir regras hipotéticas, teríamos a
obrigação, por exemplo, de cumprir a palavra dada apenas em certas
condições, mas não sempre. Esta obrigação dependeria, digamos, do desejo
de ficarmos bem vistos aos olhos de Deus ou aos olhos dos outros, do
desejo de agradar a alguém, etc. Se agradar a Deus ou aos outros
deixasse de nos preocupar, a obrigação de cumprir com a palavra dada
simplesmente desapareceria. Ora, não é isso que acontece. Continuamos a
ter o dever de cumprir a palavra dada quer isso nos agrade quer não.
ANA
– É difícil não lhe dar razão. É por isso também que Kant diz que a
moralidade – o cumprimento do dever não pode depender de sentimentos por
melhores que eles sejam.
JÚLIO
– Bem visto.Kant considerava ainda que a moralidade não é uma questão
de bons sentimentos. Nós temos sentimentos de simpatia em relação a umas
pessoas, mas não em relação a todas, e há, até, quem nos seja de certo
modo indiferente. Se as nossas obrigações morais dependessem de termos
ou não bons sentimentos, teríamos tendência para tratar as pessoas de
maneira muito diferente, consoante o que sentíssemos por elas, mesmo que
essas pessoas estivessem nas mesmas condições.
ANA - O nosso professor deu este exemplo:alguém precisa urgentemente
de ajuda e eu estou em condições de dar essa ajuda. Se a pessoa que
necessita de ajuda despertasse em mim um sentimento favorável, eu teria a
obrigação de a ajudar; mas, se os meus sentimentos fossem outros, a
obrigação de ajudar deixaria de existir. Ora, isto não parece correcto. Kant pensava que eu teria a obrigação de ajudar em ambos os casos.
Se alguém se está a afogar e eu estou em condições de o evitar, a minha
obrigação é ajudar, quer a vítima desperte em mim excelentes
sentimentos ou me seja indiferente. A obrigação de ajudar não pode,
portanto, estar dependente dos sentimentos dos agentes.
JÚLIO - Um sentimento de simpatia pode levar-nos a desejar
ajudar. Mas, de um ponto de vista moral, não é o desejo de ajudar que
está em causa. O que está em causa é a obrigação. Para se ver a
diferença, basta pensar que alguém pode sentir-se na obrigação de ajudar
a mãe a lavar a louça do jantar em vez de ir calmamente passear, e não
ter muita vontade (ou o desejo) de o fazer. Infelizmente, podemos reconhecer
que temos uma obrigação e não sermos capazes de a respeitar. Mas a
obrigação não desaparece só por não sermos capazes num certo momento de a
respeitar ou por não desejarmos fazê-lo. A obrigação continua a
existir, e nós continuamos a ser responsáveis por ela.
DIÁLOGO 5
As
duas mais importantes formulações do imperativo categórico: a fórmula
da lei universal e a fórmula da humanidade. Para que servem estas
fórmulas e qual a sua relação.
ANA
– Olá Júlio, agradeço a tua paciência comigo. Depois de distinguir
imperativos hipotéticos de categóricos – obrigações relativas de
obrigações absolutas – Kant apresenta duas fórmulas sobre como devemos
agir. Para quê?
JÚLIO
– Se bem me lembro essas fórmulas são testes da moralidade das nossas
acções. Sempre que agimos e queremos saber se estamos a agir de forma
moralmente correcta devemos ter presentes essas fórmulas. Se não as
respeitamos a nossa acção não tem valor moral. Por qual queres começar?
ANA – Comecemos pela segunda: Age
de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como
meio.
JÚLIO – Há quem lhe chame também fórmula do respeito pelos direitos da pessoa humana.
ANA – O que se entende aqui por humanidade?
JÚLIO – Creio que é a pessoa humana.
ANA – Mas o que é isso de pessoa?
JÚLIO – Lembro – me de um programa de inspiração cristã que passava ao domingo na TV e que se intitulava Toda a gente é pessoa.
Pessoa significa um ser racional que tem valor absoluto. Um ser humano
pode ter mais inteligência do que outro, ser mais útil à sociedade mas
todos são humanos e por isso nenhum vale mais do que outro. Essas
comparações só se fazem entre coisas. Todos merecem respeito absoluto
pelos seus direitos. Dez, duzentas ou duas mil vidas humanas não valem
mais do que uma.
ANA
– Um ser humano não é uma simples coisa ou objecto. Este copo aqui em
cima da mesa é uma coisa, um objecto. O seu valor é relativo, ou seja,
depende – tal como esta caneta ou o automóvel que está ali estacionado,
de mim. Se me apetecer trocar de automóvel vendo aquele e compro outro.
Se não usar o copo para beber ele não serve para nada. Se a caneta
começar a falhar ou se gostar mais de outra deito – a fora ou deixo de a
usar. As coisas são instrumentos ao nosso serviço como a televisão que
tens na sala. Os seres humanos uma vez que são pessoas não podem ser
coisas. Têm, como Kant diz, dignidade, valor absoluto. As pessoas não
são ou não devem ser objectos que pura e simplesmente usamos, vendemos
ou trocamos.
JÚLIO
– É muito importante esta noção de pessoa na ética kantiana. Como
pessoa o ser humano tem direitos que, em circunstância alguma podem ser
violados ou infringidos. A ética kantiana parece a ética de um fanático do dever mas mais do que isso é a ética dos direitos da pessoa humana. Isto marca uma grande diferença entre Kant e Mill, como irás ver.
ANA – Vamos em pormenor a essa famosa fórmula. Comecemos por esta parte: simultaneamente como fim e nunca apenas como meio. Aqui diz – se que podemos usar os outros mas…
JÚLIO
– Mas nunca os reduzindo à condição de meios ou instrumentos ao serviço
dos nossos interesses, taras e manias. A fórmula não proíbe as pessoas
de serem meios umas para as outras porque, se o proibisse, proibiria
qualquer prestação de serviços. A lei moral não proíbe um comerciante de
usar os seus clientes para prosperar, mas, se ele enganar nos preços e
não devolver dinheiro esquecido pelos clientes, está a tratá-los apenas
como meios, instrumentos ou objectos.
ANA – Se tiver uma dor de dentes, uso o dentista para me tratar. Só o transformaria num simples meio se não lhe reconhecesse o direito
de receber pelo seu trabalho e ridiculamente dissesse que cumpriu a
obrigação de me aliviar e saísse do consultório sem pagar. Imagina que
alguém me ajudou numa situação financeira difícil. Mais tarde essa
pessoa passa por situação financeira semelhante à minha. Supõe também
que posso ajudá – la. Se não o fizer estou no fundo a transformá – la
num instrumento que me foi útil e que agora não sendo necessário eu
descarto. Não é correcto. Eu tinha o dever de a ajudar e ela o direito
moral de ser ajudada.
JÚLIO
– A escravatura é uma violação dramática desta fórmula. Um escravo é um
ser sem direitos, uma coisa, uma propriedade de alguém. O «senhor» é o
dono absoluto dessa vida humana. Pode fazer o que quiser dele tal como
tu fazes o que quiseres dos teus cosméticos ou da bola de andebol que
tens no terraço. Podes vendê – la, oferecê – la. O que bem entenderes.
ANA – E o racismo?
JÚLIO
– Embora diferente, o racismo é também uma violação da fórmula do
respeito pela humanidade ou pela pessoa humana. Enquanto pessoas os
seres humanos têm valor intrínseco absoluto, isto é, dignidade. Todos
temos direitos iguais. Não deve ser violada a nossa integridade física e
moral, devemos poder circular livremente, ter direito a exprimir as
nossas ideias e a dar – mo – nos uns com os outros. O racismo – como foi
o caso do Apartheid na África do Sul – transforma algumas pessoas em
cidadãos de segunda classe, retira humanidade aos seres humanos.
ANA – Há uma passagem - tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem – que me intriga.
JÚLIO – Esta
fórmula não fala só de respeitar os outros. Diz que nenhum ser humano
se deve tratar a si mesmo apenas como um meio. A prostituição, o
masoquismo são exemplos de violação desta norma, mas, mesmo quando
desrespeitamos directamente os direitos dos outros, como no caso da
escravatura, da violação, do roubo e da mentira, estamos também a
abdicar da nossa dignidade. Quem faz dos outros objectos torna – se
desumano, também perde a sua dignidade ou humanidade.
ANA – Esta fórmula parece uma Declaração Universal dos Direitos Humanos.
JÚLIO
– Não estás a dizer disparate nenhum. Tratar os seres humanos como
humanos e iguais em direitos é o lema. Kant lança as bases de uma ética
da pessoa – dos direitos absolutos da pessoa humana – e, no essencial,
as Declarações dos Direitos e do Cidadão de 1789 – século a que Kant
pertenceu – e a dos Direitos Universais de 1948 retomam esses
princípios. O ser humano é um fim – em – si (não é um simples meio,
instrumento ou coisa que se pode usar de qualquer maneira), é uma
pessoa, um ser com valor absoluto. Digo – te uma coisa que porventura o
teu professor referiu: Kant é um filósofo imensamente influente e não só
no plano da ética. Em
Kant o ideal comanda a existência do humana em todas as suas dimensões.
É o ideal de uma acção puramente racional num ser humano inclinado para
o mal, o ideal de um conhecimento absoluto num ser humano limitado e o
ideal de uma paz perpétua entre seres cuja história de milhares de anos
apresenta um oásis de paz de 300 anos – e não consecutivos. Só houve paz
durante esses anos…
No plano das relações internacionais propôs a constituição de uma Federação Mundial de Estados submetida ao Direito Internacional. Esta seria a forma adequada, a condição sem a qual se tornaria impensável o ideal de racionalidade e moralidade na relação entre os seres humanos de estados e culturas diferentes. Competiria a uma "Sociedade das Nações" administrar a "paz perpétua" entre os Estados. E não podemos negar que a ideia cosmopolita de uma "Sociedade das Nações" não tenha conhecido alguns ténues lampejos de realização. A seguir à Primeira Guerra Mundial uma Sociedade com esse nome foi fundada — é a antepassada da ONU — inspirando-se no projecto kantiano da "Paz Perpétua".
ANA – Lembro – me de ter ouvido algo parecido. Mas vamos à segunda fórmula: «Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, lei universal». Primeiro o que é uma máxima?
JÚLIO – Para avaliar moralmente uma acção – para saber se é moralmente correcta ou incorrecta – devemos dar especial atenção ao motivo ou intenção do agente. Ora, segundo Kant, o motivo do agente é indicado pela máxima segundo
a qual este age. Imagina que encontras uma pulseira de ouro. Se a
devolveres com a esperança de obter uma recompensa, a máxima segundo a
qual ages será esta: «Vou devolver algo que encontrei porque acredito que vou ser recompensado por o fazer.». Se a devolve por ter receio de ser descoberto e eventualmente punido, a máxima será esta: «Vou devolver algo que encontrei porque acredito que posso ser descoberto e punido se não o fizer.» Como
pode ver, uma mesma acção – devolver algo encontrado – pode seguir
máximas diferentes, ou seja, pode haver diferentes motivos para a
realizar. Por isso mesmo, conforme o motivo ou a razão que nos leva a
proceder de um certo modo, assim a máxima terá valor moral ou não.
ANA – Uma
máxima é pois uma regra de acção que nos indica o motivo por que
fazemos algo. Para Kant, a avaliação moral de um acto depende da máxima
do agente. E o que significa universalizar a máxima?
JÚLIO – Pode dizer – se que é tornar pública, dar a conhecer aos outros a intenção com que ajo.
ANA – Só que há aquela expressão «como se» …
JÚLIO
– Creio que quer dizer o seguinte: devo adoptar uma máxima que possa
ser válida não só para mim mas para todos os outros agentes morais. Devo
agir como se estivesse ser um modelo a seguir. A
moral é um conjunto de regras que reflectem várias obrigações
particulares; cumprir a palavra dada, não mentir, não tirar a vida a
pessoas inocentes, não roubar, respeitar os direitos dos outros, etc. Ao
agir de acordo com estas regras (e outras do mesmo tipo) estamos a
seguir mandamentos universalizáveis, isto é, mandamentos que desejamos
que todos sigam e respeitem.
Pelo contrário, mentir, roubar, matar pessoas inocentes, etc. não são
actos moralmente permissíveis. Porquê? Bem, segundo Kant, por razões
semelhantes às que impedem o egoísta de querer que todos sejam como ele.
Tal como desejar que os outros ajam egoisticamente é contrário aos
interesses do egoísta, desejar que todos mintam tem igualmente
consequências contraditórias.
ANA – Se bem entendo a questão é esta: Como
posso eu saber que a máxima da minha acção é moralmente correcta ou
incorrecta? Submetendo-a a uma prova que teste a possibilidade de a
universalizar, isto é, de a fazer valer não só para mim como para todos
os seres racionais.
JÚLIO – Isso. Imagina
que uma pessoa com problemas financeiros decide pedir dinheiro
emprestado. Sabe que não pode devolver o dinheiro que lhe for
emprestado, mas prometê-lo – mentir – é a única forma de obter aquilo de
que precisa. A máxima da acção poderia enunciar-se assim “Se isso
servir os teus interesses, não devolvas dinheiro emprestado ao seu
dono.”
ANA – No
fundo, a máxima ou regra é esta “Mente sempre que isso for do teu
interesse”. Universalizada a máxima estaríamos como que a dá - la a
conhecer a todos. O que aconteceria a seguir? Ninguém confiaria em
ninguém, é claro. Mas a mentira só é eficaz se as pessoas confiarem umas
nas outras. É preciso que eu confie no António, por exemplo, para me
deixar enganar por ele. Mas se eu souber que todos mentem sempre que
isso lhes convenha, deixarei de confiar nos outros. Mentir tornar-se-á inútil
porque não irei acreditar em nada do que possam dizer-me. Por estranho
que pareça, ao exigir que todos mintam, estou a tornar a mentira
impossível. A regra “Mente sempre que isso for do teu interesse” não
pode ser transformada numa lei universal.
JÚLIO
– Repara bem nas consequências disto: só as máximas que são
universalizáveis têm valor moral. Se as máximas sem valor moral não são
universalizáveis, tal implica que a nossa obrigação moral básica
consiste em praticar apenas
as acções que todos os outros possam ter como modelo. É esta obrigação,
portanto, que estaria por trás das nossas normas morais particulares. A
lei moral proposta por Kant, pelo contrário, não prescreve qualquer
conteúdo preciso. É puramente formal. Isto é: limita-se a dizer, seja
qual for o conteúdo da acção, qual a forma a que deve obedecer a regra
nela exemplificada: ser um modelo capaz de ser imitado por todos os
seres racionais.
ANA
- Para saber, em cada circunstância da vida, se a acção que queremos
praticar está, ou não, de acordo com a moral, temos de perguntar se
aquilo que nos propomos fazer poderia servir de modelo para todos os
outros. Se faltar a uma promessa, não é algo que todos possam imitar,
então temos a obrigação de não o fazer, por muito que isso nos possa
custar; se mentir não serve de modelo para os outros, então não temos o
direito de abrir uma excepção apenas para nós. Etc.
JÚLIO - O
imperativo categórico é o teste que permite verificar se uma máxima
pode ser uma norma moral universal, uma regra a que todos devem
obedecer. É moralmente errado agir segundo máximas que não podem ser
universalizadas, ou seja, é moralmente incorrecto abrir uma excepção
para nós próprios quando sabemos que não podemos querer que todos ajam
como nós.
ANA – Ouve lá, não serás por acaso professor de filosofia?
JÚLIO – Eh, eh. Consegues topar a relação entre as duas fórmulas?
ANA – Parece – me que sim. Continuando
com o mesmo exemplo. Quem pede dinheiro emprestado sem intenção de o
devolver está a tratar a pessoa que lhe empresta dinheiro. É evidente
que está a tratá-la como um meio para resolver um problema e não como
alguém que merece respeito, consideração. Pensa única
mente em utilizá-la para resolver uma situação financeira grave sem ter
qualquer consideração pelos interesses próprios de quem se dispõe a
ajudá-lo.
Sempre
que fazemos da satisfação dos nossos interesses a finalidade única da
nossa acção, não estamos a ser imparciais e a máxima que seguimos não
pode ser universalizada. Assim sendo, estamos a usar os outros apenas
como meios, simples instrumentos que utilizamos para nosso proveito.
JÚLIO – Isso.
ANA
- Quando decido independentemente de quaisquer interesses, isto é,
quando sou imparcial e adopto uma perspectiva universal, obedeço a
regras que, a bem dizer, criei ao
mesmo
tempo para mim e para todos os seres racionais. Agir de forma puramente
desinteressada é ao mesmo tempo agir segundo uma máxima universalizável
– são os interesses e egoísmos que nos dividem – e respeitando o valor
absoluto dos outros – só o egoísmo e os interesses nos levam a
instrumentalizar os outros.
JÚLIO – Esta conversa deixou – me cansado. Vou beber qualquer coisa. Também queres?
ANA – Sim e por hoje chega de Kant. E promete que não vais falar do FMI.
JÚLIO – Está bem, está bem.
DIÁLOGO 6
A intenção e as consequências: a boa vontade.
ANA
– Hoje terminámos a ética kantiana e começámos a estudar o
utilitarismo. Durante a aula dei comigo a pensar num acontecimento
histórico, o lançamento de bombas atómicas sobre as cidades de Hiroshima
e Nagazaki em 1945. Depois do que já aprendi creio que percebo por que
razão a ética kantiana não é consequencialista nem utilitarista e porque
valoriza tanto a intenção.
JÚLIO – Então hoje mudamos de lugar. É a tua vez de me esclareceres.
ANA
- Quando o presidente americano Harry Truman decidiu lançar a primeira
bomba atómica sobre a cidade japonesa de Hiroxima, matando de uma vez só
mais de cem mil pessoas (civis inocentes), cometeu ou não um atentado
contra a moral? Truman queria pôr fim à guerra o mais depressa possível e
obrigar o governo japonês a render-se. Quis evitar a perda de muitos
milhares de soldados e civis que teria lugar se a guerra se prolongasse.
Lançar a bomba sobre Hiroxima tinha previsivelmente melhores consequências do que não o fazer. Se o valor moral das acções depender apenas das consequências, Truman não cometeu qualquer crime. A sua acção foi a correcta.
JÚLIO
– Kant argumentaria: mas, para salvar a vida de muitos milhares de
pessoas, Truman sacrificou a vida de outras pessoas inocentes. Será que é
moralmente aceitável usar as pessoas como se fossem apenas coisas de
que podemos dispor à vontade para os nossos fins – como se fossem
instrumentos ou objectos? Se pensarmos que não são apenas as
consequências que contam, se pensarmos que tratar as pessoas como
pessoas – e não como simples meios – é a nossa obrigação moral básica,
Truman agiu mal.
ANA - Kant defendia que o valor moral das acções depende unicamente da intenção com que são praticadas. Além disso, pensava que a única intenção capaz de dar valor moral a uma acção é a de cumprir o dever pelo dever.
O nosso dever é nunca tratar as pessoas como simples instrumentos. E é
este dever que é necessário ter em mente quando escolhemos as nossas
acções.
JÚLIO
- Kant teria pensado que Truman não reconheceu à população de Hiroxima a
dignidade de pessoas; em vez disso, usou-as como um simples meio para
obter o fim da guerra, e, portanto, agiu erradamente.
ANA
- Para os defensores das éticas deontológicas como é o caso da de Kant,
o valor moral das acções não depende apenas das consequências. Outros
factores têm de ser considerados: por exemplo, os direitos dos
envolvidos.
JÚLIO
- De acordo com a perspectiva deontológica, maximizar o bem-estar não é
permissível sempre que fazê-lo implique violar um direito. Isso
distingue radicalmente a ética kantiana da ética utilitarista. Truman
violou um direito fundamental das pessoas – o direito à vida. As teorias
deontológicas entendem a moral como um conjunto de restrições – ou
direitos – centrados no agente. Estes direitos impõem limites ao que é
permissível fazer para maximizar o bem-estar. Para poupar a vida de
muitos milhares de pessoas, caso a guerra continuasse e dado que os
japoneses só se rendiam mortos, Truman mandou matar alguns milhares de
inocentes. Segundo Kant, uma vida não pode ser trocada por outra porque
cada vida tem um valor absoluto.
ANA - John
Stuart Mill, um filósofo inglês do século XIX, foi um crítico severo de
Kant e um dos mais famosos defensores de uma moral consequencialista.
Mill pensava que o que conta são as consequências das acções e que temos
a obrigação moral de optar sempre pela acção que melhores consequências
tenha para todos os envolvidos, ou que evite a maior quantidade de
sofrimento possível. Ora, foi precisamente esta exigência que a decisão
de Truman parece ter tido em conta. Se forem as consequências de uma
acção que contam, poderemos condenar Truman por ter feito o que fez?
JÚLIO
– Kant pensa que sim. Certas acções, apesar de poderem ter boas
consequências ou serem úteis, não devem ser praticadas. O lançamento da
primeira bomba atómica sobre a população civil de Hiroxima teve a
consequência de evitar um número maior de baixas se a guerra tivesse
continuado. No entanto, isto não justifica tirar a vida a pessoas
inocentes.
Matar pessoas inocentes é sempre errado, sejam quais forem as consequências.
Kant
pensava que sem conhecermos as intenções dos agentes não podemos
determinar o valor moral das acções. Por muito boas ou por muito úteis
que sejam as suas consequências, uma acção pode não ter valor moral.
ANA
– É difícil não concordar com Kant. Imagina que a tua tia conduz o seu
automóvel pelas ruas de uma cidade. Subitamente, um pneu rebenta e o
carro desgovernado atravessa uma faixa para peões atropelando e ferindo
gravemente duas pessoas. Imagina um outro caso: um bandido, fugindo da
polícia, atravessa faixa a alta velocidade vê dois peões, atropela - os e
fere - os gravemente. As duas acções tiveram o mesmo resultado mas
diremos que são iguais? É claro que não. A sua tia não atropelou e feriu
intencionalmente os transeuntes. Simplesmente não pôde controlar o
carro e mesmo que vá ter de pagar os prejuízos causados não diremos que
agiu mal. Não cometeu nenhum crime. Diferente é o caso do bandido. Viu
os peões mas querendo fugir da polícia, não hesitou em atropelá – los. A
sua acção foi intencional e apesar de o resultado ter sido igual, todos
diremos que a sua acção foi má. O seu comportamento foi criminoso.
JÚLIO – Contudo, de boas intenções está o inferno cheio….
ANA – O nosso professor referiu este exemplo: Numa
obra de Stefan Zweig narra – se o seguinte episódio: O capitão Tomi
Hoffmiller foi convidado de honra para uma festa numa bela casa. Noite
dentro apercebe – se de que não dançou com a filha do seu ilustre
hóspede. Tentando remediar a falta de atenção dirige – se à moça e
convida – a para dançar. É nesse momento que a moça começa a chorar
descontroladamente e sofre um colapso. Tomi fica a saber, para sua
enorme surpresa, que a moça não podia andar.
JÚLIO
- Na perspectiva de Kant, a intenção de Tomi foi boa, quis fazer o que
era correcto. De um ponto de vista moral, isso é o que conta. O filósofo
alemão não teria dificuldade alguma em admitir que as consequências da
acção do capitão foram más. Contudo, moralmente falando, as
consequências não contam.
ANA - O valor moral das acções decorre da intenção com que são praticadas.
JÚLIO – Se a intenção for cumprir o dever pelo dever então a vontade do agente recebe o nome de boa vontade.
ANA – A boa vontade é a vontade das pessoas boas.
JÚLIO
– Não necessariamente. Para Kant, a boa vontade não tem a ver com o
carácter das pessoas. Tem a ver com a intenção que está na base da
acção. Agir moralmente não é necessariamente sinónimo de ser bondoso. É
agir com uma só intenção: fazer o que é correcto. É reconhecer que há
obrigações morais que são absolutas porque não estão sujeitas a
quaisquer excepções, mesmo que respeitá-las tenha consequências
negativas para todos. Kant, para evitar confusões, diz mesmo que quem
cumpre o dever sem qualquer outra intenção, mesmo que o faça aborrecido
ou, como diz o povo, de «má vontade», é mais digno de apreço do que quem
o cumpre porque gosta de o fazer. No primeiro caso, o esforço contra o
que nos afasta do cumprimento puro do dever é maior.
ANA – Então o conceito de boa vontade é um conceito que permite fazer a ligação entre todos os grandes temas da ética de Kant.
JÚLIO – Explica lá melhor. Não estou a ver.
ANA - É uma vontade que cumpre o dever respeitando absolutamente a lei moral, ou seja, cuja única intenção é cumprir o dever. É uma vontade imparcial,
que age segundo regras ou máximas que podem ser seguidas por todos
porque não violam os interesses de ninguém. É uma vontade que respeita todo e qualquer ser humano considerando – o uma pessoa e não uma coisa ou um meio ao serviço deste ou daquele interesse. É uma vontade autónoma porque decide cumprir o dever por sua iniciativa e não por receio de autoridades externas ou da opinião dos outros.
JÚLIO – Ena pá, está bem visto. (O autor deste diálogo pede desculpa por eventual auto – elogio).
ANA – Para encerrar a conversa em beleza falta dar um pouco mais de atenção ao conceito de autonomia ou de vontade autónoma.
Quando decido independentemente de quaisquer interesses, isto é, quando
sou imparcial e adopto uma perspectiva universal, obedeço a regras que
criei ao mesmo tempo para mim e para todos os seres racionais. Uma
vontade autónoma é uma vontade puramente racional, que faz sua
uma lei da razão, lei presente na consciência de todos os seres
racionais. Ao agir por dever obedeço à voz da minha razão e nada mais.
JÚLIO
- Mas se eu, por exemplo, cumprir o dever de não mentir por considerar
que essa é a vontade de Deus, como está expresso nos dez mandamentos,
não estarei a agir de uma forma moralmente correcta?
ANA
- Kant responderá que não. Nas questões morais a vontade do ser humano
não é um meio para o cumprimento da vontade de um outro ser.
Kant julgava que a religião não pode estar na base da moral pela
seguinte razão: os seres humanos são livres e, portanto, autónomos. Ser
autónomo significa que dependemos apenas de nós próprios
– e não dos outros ou das circunstâncias – para orientarmos a nossa
vida. Ser autónomo, pensava Kant, implica agir com base em critérios ou
regras que somos nós próprios a ditar, de acordo com a nossa
consciência. Se as regras morais nos fossem impostas de fora, por Deus,
não haveria autonomia, não seríamos nós a ditar as regras. Portanto, não seríamos realmente livres.
JÚLIO – Mas não se diz frequentemente que ser religioso e devoto é ser boa pessoa. Não se desconfia dos ateus?
ANA
– Não acredito que ser religioso seja necessário para ser boa pessoa. O
problema é que como já te disse o valor moral das acções não depende de
se ser boa pessoa ou não. Depende da forma como cumprimos o dever seja
qual for o nosso carácter. E também se deve dizer que ser adepto da
ética kantiana não implica ser ateu, não acreditar na existência de
Deus. Kant não era ateu. Kant separou a moral da religião. É uma grande
revolução. No lugar de Deus estão os direitos da pessoa humana. Isso é
que é sagrado respeitar. Para saber o que devo fazer não preciso de
Deus, não preciso de afirmar nem de negar a sua existência. Basta ouvir a
voz da minha razão.
O
agente moral é autónomo quando age por dever, ou seja, quando a sua
máxima passa o teste do imperativo categórico e se torna regra segundo a
qual todos podem agir. O agente autónomo aceita a lei moral, não porque
alguma autoridade externa o convenceu ou porque receia as consequências
de não a aceitar. Aceita-a porque a lei é criada por si mesmo quando as
escolhas morais são imparcial e desinteressadamente determinadas pela
sua razão. É ao mesmo tempo legislador e sujeito dessa lei. A ética
kantiana não admite autoridades morais externas e superiores à razão. A
autonomia é a unidade entre o que a razão ordena e o que a vontade quer.
JÚLIO - A
palavra de ordem é ser um modelo para os outros e não «Agradar a Deus»
ou a outro tipo de autoridade. É nossa obrigação cumprir o dever porque
isso é justo e não porque terá boas consequências. Uma pessoa pode
obedecer aos mandamentos de Moisés apenas por ter receio que Deus a
castigue, e não por pensar que os mandamentos são realmente justos. Quando
o cumprimento do dever não é motivo suficiente para agir tendo de se
invocar razões externas como o receio das consequências, o temor a Deus,
etc., a vontade submete-se a autoridades que não a razão. Por isso, a
sua acção é heterónoma, incapaz de respeitar incondicionalmente o dever.
Todas as éticas de tipo consequencialista são, para Kant, heterónomas,
reduzem a moralidade a um conjunto de imperativos hipotéticos.
ANA – Por falar em consequencialismo, para a próxima falaremos de Stuart – Mill se já não estiveres farto disto.
JÚLIO – Combinado. Veremos também quem nos parece mais persuasivo e convincente.
Excelente! Ajudou muito e de forma muito original
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