DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA UTILITARISTA DE JOHN STUART – MILL
DIÁLOGO 1
As consequências é que contam
ANA – Vamos à nossa conversa sobre Mill. Estás disposto a isso Júlio?
JÚLIO – Vamos a isso. Parece mais fácil do que Kant?
ANA – Parece mas as aparências podem iludir. Os filósofos são todos complicados.
JÚLIO – Como começaram?
ANA
- Começámos por esclarecer que a ética de Mill era
consequencialista.Enquanto para Kant avaliar a moralidade das nossas
acções era perguntar pela razão por que agimos de uma determinada forma,
pela intenção com que fazemos aquilo que fazemos, (sendo a ação
moral em Kant aquela que cumpre ou respeita o dever pelo próprio dever),
em Mill, perguntar pelo valor moral da ação, é perguntar pelas suas consequências.
JÚLIO - Isso significa que …
ANA – Uma acção é moralmente boa ou má devido às suas consequências.
JÚLIO – Se as consequências forem boas …
ANA– A acção é moralmente boa.
JÚLIO – Se as consequências forem más ou não tão boas como podiam ser…
ANA
– A acção não tem valor moral, ou melhor, não é moralmente correcta. Ás
vezes, uma acção não é moralmente correcta por ter más consequências
mas porque poderia ter tido melhores consequências.
JÚLIO – Mas atenção: isto só nos diz que a teoria de Mill é consequencialista. Falta saber porque tem o nome de utilitarismo.
ANA – Certo.Trata – se de saber o que significa mais precisamente dizer que uma acção tem boas ou más consequências?
JÚLIO – Só um momento. O telemóvel toca...
ANA – Atende.
JÚLIO – Lamento Ana mas vou ter de ir a casa. Uma inundação.
ANA – Deixaste alguma coisa aberta. Um descuido com más consequências e nada útil.
JÚLIO – Brinca, brinca. Inté.
ANA – Até breve.
DIÁLOGO 2
O princípio de utilidade
ANA – Então Júlio, novidades? Muitos estragos com a inundação?
JÚLIO
– Nem por isso. Algumas coisas que não sabem nadar ficaram a nadar mas o
importante é que a água não passou para a casa dos vizinhos. Só uma
parte da escada ficou alagada.
ANA – Ainda bem. O teu descuido podia ter tido piores consequências.
JÚLIO – Foi a falar de consequências que nos despedimos. Continuemos.Segundo Kant
testamos a correcção moral de uma ação baseando-nos no motivo ou
intenção do agente e não nos resultados objectivos da acção. Muitas
pessoas pensam que por mais indesejáveis que sejam os resultados de um
acto a boa intenção do agente deve contar na avaliação do que fez. Mill
discorda completamente: evitar que uma pessoa se afogue é sempre bom
independentemente da motivação de quem salva. A motivação ou a intenção
nada tem a ver com a moralidade da acção. Só tem a ver com o carácter do
agente.
ANA – O nosso professor deu o seguinte exemplo: Durante
a visita a um museu um dos visitantes percebe de que dois funcionários
estão com dificuldades em mudar de lugar um quadro muito famoso e
valioso. Imediatamente apressa-se a ajudá-los mas infelizmente tropeça
num tapete e choca com um dos funcionários derrubando-o. O quadro cai com estrondo e fica muito danificado.
JÚLIO - O
visitante agiu com boa intenção mas as consequências da acção foram
desastrosas. Será que podemos considerar a sua ação moralmente correcta
pois agiu com boa intenção ou devemos considerá-la como moralmente
incorreta porque as consequências foram más?
ANA
- A resposta de Mill seria que a ação foi moralmente incorrecta. Por
quê? Porque segundo a sua perspectiva consequencialista um acto deve ser
julgado pelas suas consequências. Se as consequências forem boas a
acção é boa, se forem más a acção é má.
JÚLIO – E agora voltamos à questão em que ficámos: Mas o que significa mais precisamente dizer que uma acção tem boas ou más consequências?
ANA
- Uma acção tem boas consequências se, dadas as alternativas
disponíveis, dela resultar a maior felicidade, bem-estar ou prazer (ou
pelo menos mais felicidade do que infelicidade) para o maior número
possível de pessoas que por essa acção são afectadas. No exemplo dado um
grande número de visitantes do museu será privado do prazer de
contemplar o famoso quadro e o visitante solidário terá de responder
pelos prejuízos involuntariamente causados.
JÚLIO - Então uma acção é boa se for útil.
ANA
- Ser útil significa que dela resulta o maior bem – estar ou felicidade
para o maior número de pessoas. Repara que no acidente que aconteceu no
museu, apesar da boa intenção de quem quis ajudar, o resultado foi mau
para muitas pessoas: a que vai ter de reparar parte dos estragos que
causou, as pessoas que não poderão ver o quadro durante algum tempo e os
responsáveis pelo museu que poderão ver diminuir o número de
visitantes. Falta também saber se o quadro poderá ser restaurado.
JÚLIO - O meu irmão que não gosta de visitar museus não ficaria nada aborrecido com tudo isso.
ANA - Mill não está a pensar no teu irmão quando diz que a acção teve más consequências.
JÚLIO
- O que eu penso é que Mill considera que a acção teve más
consequências para várias pessoas mas não para as que não se interessam
por museus. Essas não foram afectadas pelo que aconteceu.
ANA
- De acordo. Para Mill uma acção é boa se tiver boas consequências –
ou as melhores consequências possíveis - para o maior número possível
de pessoas a quem ela diz respeito. Mill não diz todas as pessoas porque
isso seria absurdo. As pessoas que como o irmão do Carlos não gostam de
museus não vão lamentar o que aconteceu ao famoso quadro. Não são
directa ou indirectamente afectadas, não sofrem o impacto que a
desastrada intervenção do visitante teve.
JÚLIO - O que Mill está a dizer é que a utilidade é o que torna uma acção moralmente valiosa. O critério da moralidade de um acto é o princípio de utilidade. Este princípio é o teste da moralidade das acções.
ANA
- Uma acção deve ser realizada se e se só dela resultar a máxima
felicidade possível para as pessoas ou as partes que por ela são
afectadas, ou que recebem directa ou indirectamente o impacto que a
acção provoca.
JÚLIO
- O princípio de utilidade é por isso conhecido também como princípio
da maior felicidade. A ideia central do utilitarismo é a de que devemos
agir de modo a que da nossa acção resulte a maior felicidade ou bem -
estar possível para as pessoas por ela afectadas. Uma acção boa é a que é
mais útil, ou seja, a que produz mais felicidade global ou, dadas as
circunstâncias, menos infelicidade. Quando não é possível produzir
felicidade ou prazer devemos tentar reduzir a infelicidade.
ANA – Parece fácil e simples.
JÚLIO – Mas o problema é aplicar este princípio. Nem sempre é fácil.
ANA – Contudo, o princípio de utilidade é, muitas vezes, um bom guia para as nossas decisões.
JÚLIO – Gostava que me esclarecesses.
ANA
– Repara que eu não estou a afirmar que o princípio de utilidade é uma
receita que aplicamos tranquilamente, sem qualquer angústia ou dúvidas.
Agir seja com base em que princípio for, envolve frequentemente riscos.
JÚLIO – Agora é que preciso que me esclareças mesmo....
ANA – Vou tentar. Imagina que alguém tem uma doença que envolve a realização de uma complexa cirurgia.
Uma
operação A permite a cura completa, mas apenas 30% dos pacientes a ela
sujeitos sobrevivem; uma operação B permite a recuperação apenas
parcial, a 50%, embora sem envolver quaisquer riscos para a vida dos
pacientes. Imaginemos que um médico decide sujeitar um paciente à
operação A e que este sobrevive. Terá o médico, de um ponto de vista
utilitarista, agido bem?
JÚLIO
– É para eu responder? Eu penso que, de acordo com o princípio da maior
felicidade ou bem – estar possível, o médico, embora correndo mais
riscos, agiu bem.
ANA – E porquê?
JÚLIO – Porque a cura completa do paciente corresponde ao máximo de bem estar possível (dado o paciente ter sobrevivido). A
operação A não devia ter sido realizada. O cálculo da utilidade
esperada aconselha a preferir a operação B. E se a operação tivesse
corrido mal? Utilitarista – O risco é a minha profissão.
ANA – Tomar decisões é quase sempre complicado.
JÚLIO – Por falar em complicações tens de ir ao dentista como me disseste.
ANA – Espero que o dentista contribua para a minha felicidade e bem – estar.
JÚLIO – Tem calma. Por falar em felicidade vai ser esse o tema da nossa próxima conversa.
DIÁLOGO 3
O PRINCÍPIO DE UTILIDADE, A FELICIDADE GERAL E A FELICIDADE INDIVIDUAL.
ANA – Sabes Júlio, esta
teoria utilitarista não me agrada muito. Ter sempre de pensar na
felicidade, no prazer ou no bem-estar do maior número possível de
pessoas! Se o meu pai me dá um automóvel em vez de apoiar com esse
dinheiro uma campanha contra o cancro, é justo dizer que ele agiu mal?
JÚLIO - Segundo Mill sim. Se o teu pai desse dinheiro para essa luta contra o cancro muito mais pessoas seriam beneficiadas.
ANA – Mas
ao comprar o carro o meu pai também beneficiaria muitas pessoas.
Pagaria impostos, ajudaria os trabalhadores da empresa porque vendendo
mais um carro a empresa teria mais lucro e não haveria demissões…
JÚLIO
- Hum…Mas ajudar quem precisa de tratamento …. Há muito mais pessoas
precisando de ajuda no tratamento contra o cancro do que a precisar de
trabalho na empresa que fabricou e vendeu o carro.
ANA – Acho que a acção do meu pai não foi má, não teve más consequencias.
JÚLIO
– Seria melhor ajudar os que sofrem daquela doença. Não foi a melhor
acção possível. O teu pai poderia ter agido melhor. A boa ação é a
melhor acção possível. A que beneficia o maior número possível de
pessoas. O que custava ao teu pai dar o dinheiro do carro para a luta
contra uma doença que mata tanta gente?De um ponto de vista utilitarista, dadas as circunstâncias e as alternativas disponíveis o teu pai não agiu correctamente.
ANA – É mais importante a felicidade dos outros do que a minha?
JÚLIO – Mill não diz isso.
ANA - Imagina
que tenho muito dinheiro no banco. Devo, na perspectiva utilitarista,
retirá – lo todo do banco e dá – lo a pessoas necessitadas contribuindo
assim para uma maior felicidade geral?
JÚLIO – Seria absurdo. Mill nunca defendeu tal coisa. Se estivesse aqui, dir – te – ia o seguinte: «Quando
se trata de decidir o que é moralmente correcto fazer, não deve ter em
conta somente o seu bem-estar. Deve ponderar sobretudo que consequências
a sua acção vai ter no bem-estar das pessoas por ela afectadas. A sua
felicidade não conta mais do que a felicidade dessas outras pessoas. E
quando me refiro a outras pessoas não abro excepções para as pessoas de
que mais gosta, para familiares e amigos. Deve ser imparcial quando delibera o que vai fazer».
ANA – Então o utilitarismo não defende que que, em nome da felicidade geral, considerasse meu dever entrar em bancarrota.
JÚLIO
- Na verdade, o utilitarismo não defende que deva abdicar de mim em
nome da felicidade geral ou de um aumento de felicidade global. A
acção correcta é sem dúvida a que maximiza a felicidade, a que
contribui para a maior felicidade para todos, incluindo eu - o agente. A
minha felicidade é tão importante como a felicidade dos outros – não é
mais nem menos importante. Por outro lado, a relativa miséria em que eu
ficaria – suponhamos que sem casa, sem dinheiro para comer – superaria a
felicidade criada por dar a uma grande quantidade de pessoas uma
pequena quantidade de dinheiro. Embora o utilitarismo afirme que alguns
sacrifícios são moralmente exigidos não defende que devo sacrificar tudo
pelos outros. Com efeito, se dou tudo não poderei continuar a ajudar os
necessitados o que reduziria a quantidade global de felicidade.
ANA – HUM... Mesmo para defender o utilitarismo utiliza – se um critério utilitarista....
JÚLIO – Voltemos
ao caso do carro que o teu pai te comprou. O teu pai devia ter pensado
mais nos outros do que em ti. Precisavas mesmo do carro?
ANA
– Dá imenso jeito. E não achas que o meu pai tem o direito de fazer o
que bem entende com dinheiro que ganha e gasta? Mais uma teoria que me
parece exagerada. Pensar sempre na felicidade geral. É de ficar doida.
Que dizer dos meus projectos pessoais, dos meus gostos particulares e
das minhas distracções, dos meus compromissos e obrigações familiares?
Supõe
que gosto de ouvir música e dedico algum tempo por dia a esse prazer.
Não poderia fazer outra coisa? É claro que sim. Poderia envolver-me em
actividades que tendem a atenuar o sofrimento dos milhões de pessoas que
neste mundo vivem miseravelmente. Haveria mais felicidade global. Ao
ouvir música sou a única pessoa que está a beneficiar ou pelo menos há
actividades alternativas que beneficiam mais pessoas. Imagina que vou ao
cinema com o meu namorado. Devo perguntar se nesse momento não poderia
desenvolver uma actividade mais útil para um maior número de pessoas? E
se gosto de história desejando ser investigador devo renunciar e seguir
uma carreira científica (médica, engenheira) porque o meu país precisa
de profissionais qualificados nessa área? Seria mentalmente desgastante
pensar sempre no bem - estar do todo e em beneficiar o maior número
possível em tudo o que fazemos. Estariam arruinadas as nossas relações
pessoais e as nossas obrigações familiares.
JÚLIO - Uma
das principais críticas dos adversários do utilitarismo é a de que
exige demasiado do agente moral. Mas Mill, pelo menos, nunca disse que
sendo a promoção do bem – estar geral o nosso dever fundamental
deveríamos promovê-lo a todo o custo. O que ele pensa é que há nos seres
humanos uma forte inclinação para ser egoísta. Eu primeiro, depois eu…
depois os meus familiares e amigos e só a seguir o resto. Parece aquela
situação em que se pede muitíssimo para pelo menos conseguir alguma
coisa.
ANA – Isso parece – me impossível, quase desumano. Nem toda a gente vale o mesmo para mim.
JÚLIO
- Seja como for o que Mill quer dizer é que se trata, através da
educação segundo o princípio de utilidade, de abrir um espaço amplo para
que a inclinação para o bem geral se sobreponha com frequência cada vez
maior ao egoísmo. O princípio da maior felicidade em Mill exige que
cada indivíduo se habitue a não separar a sua felicidade da felicidade
geral sem deixar de ter projectos, interesses e vida pessoal.
ANA – Espero que seja assim porque caso contrário....
JÚLIO – O Mill conseguiu irritar – te!
ANA – De que maneira... Já não chegava o Kant com a mania das mãos puras e limpas!
JÚLIO
– Que te agrade ou não, Mill não entende por felicidade, apenas a
felicidade do agente, mas a felicidade para o maior número possível de
pessoas. Para que uma acção tenha valor moral, não é suficiente que a
felicidade seja a do agente, mas é necessário que seja a felicidade das
pessoas afectadas pela acção realizada.
Não
há mal em as consequências dos teus actos satisfazerem os teus
interesses desde que: a) não tenhas em vista só os teus interesses; b)
Penses primeiro no bem – estar da maioria das pessoas a quem a acção
pode mudar a sua situação.
ANA – Mas ser egoísta, pensar em mim e não nos outros, é errado?
JÚLIO – Segundo Mill é errado.E segundo Kant também. Para
Kant, é moralmente errado que o agente abra excepções para si próprio e
faça depender o cumprimento do dever da satisfação dos seus interesses e
desejos. A imparcialidade é a palavra de ordem.
Para Mill ter em conta o interesse geral e colocá-lo acima dos
interesses exclusivos do próprio agente quando se decide o que fazer é
condição fundamental da moralidade de um acto.
ANA – Não conseguimos ser assim.
JÚLIO
– Não sei se somos todos egoístas mas o que estes dois autores nos
dizem é que é moralmente errado ser egoísta e defender que todas as
pessoas devem agir sempre em função dos seus próprios interesses.
Devemos lutar contra uma fácil tendência humana: sermos egoístas. O
egoísmo não pode estar na base da moral. A razão é muito simples: apenas
um egoísta estaria interessado numa moral baseada no egoísmo; mas, na
verdade, também não é do interesse do egoísta que os outros sejam como
ele. Não é do interesse do egoísta transformar a sua atitude numa regra
universal, ou seja, que todos seguissem.
ANA
– De acordo. Mas parece – me que subtilmente se passa de um extremo a
outro. Mas vamos lá recapitular para quem vai ler estes materiais de
apoio.
JÚLIO – Estás a falar de quê?
ANA – Nada. Esquece. O imperativo moral utilitarista é este: Age sempre se maneira a produzir a maior quantidade possível de bem estar geral para o mundo (para todos os envolvidos).
JÚLIO
- O objectivo da moral é contribuir para transformar o mundo num lugar
melhor.A moralidade é acerca de como produzir as melhores consequências,
e não acerca de boas intenções. As
intenções apenas contam porque revelam o que queremos fazer. A
exigência de imparcialidade e de universalidade está presente na moral
utilitarista.
O bem-estar a promover não é apenas o do agente mas o de todos os envolvidos.
Uma consideração imparcial dos interesses implica que o modo de o bem estar ser distribuído não é importante em si mesmo.
Se
ao optar por uma situação A, três pessoas ficam satisfeitas e duas não,
e se ao optar por B apenas duas pessoas ficam satisfeitas e três não, o
princípio utilitarista obriga a optar por A mesmo que o agente esteja
entre as pessoas insatisfeitas.
No
fundo, o utilitarismo diz-nos apenas o seguinte: avalia cada situação
com toda a imparcialidade e escolhe a alternativa que mais benefícios
traga a todos os que serão afectados pelas tuas acções.
ANA
– Muito bem, não me parece um mau programa. Mas a estrita
imparcialidade e a insistência nas consequências são discutíveis, muito
discutíveis.
JÚLIO – Então discute.
ANA - Imagina
que prometeste acompanhar a tua namorada a uma clínica onde ela irá
realizar exames médicos. Para esse mesmo dia recebes um convite de um
amigo para assistir a um concerto de beneficência a favor de uma
instituição de acolhimento de menores que passa por graves dificuldades
financeiras. Deves acompanhar a tua namorada ou ir ao concerto? Como
para um utilitarista o que conta são as consequências e que de uma acção
resulte o melhor estado de coisas a resposta seria ir ao concerto. Da
acção de ir ao concerto resultará mais felicidade ou bem – estar no
mundo – um melhor estado de coisas – do que da acção de acompanhar a sua
namorada à clínica.
JÚLIO – Aonde queres chegar com esse exemplo?
ANA
- Habitualmente diríamos que tinhas a obrigação de acompanhar a tua
namorada à clínica porque o prometeste. Estás vinculado a essa promessa
e, embora por vezes, por uma questão de prioridade tenhamos de ignorar
algumas obrigações, as promessas são para cumprir.
JÚLIO
- Segundo os críticos, o utilitarismo não convive bem com a ideia de
obrigação moral ou de promessas porque estas remetem para o passado –
para o que se prometeu ou para obrigações que contraímos. Uma doutrina
que avalia as acções com base nas suas consequências, baseando – se no
que delas irá eventualmente resultar, centra – se no futuro.
ANA
- O problema do utilitarismo é o de que parece tornar incompreensível a
noção de obrigação moral como algo que vincula agora um agente a algo
não por causa das suas consequências mas simplesmente porque de facto
temos obrigações morais.
JÚLIO
– Mas também te digo que podia dar o dinheiro do ingresso no concerto,
não ir ao concerto e acompanhar a minha namorada à clínica.
ANA – Para ficares bem com a tua consciência...
JÚLIO – Era uma solução.
ANA – A imparcialidade transforma – nos em máquinas de calcular as consequências das nossas acções.
Desvaloriza determinados laços afectivos e obrigações que são
importantes para a generalidade das pessoas. Falo das relações e
obrigações que temos a respeito dos nossos familiares e amigos.
JÚLIO – Tenho uma certa dificuldade em não te dar razão.
ANA – Queres um exemplo? Supõe
que aconteceu uma fuga de gás num prédio. Após uma explosão desencadeia
– se um incêndio. Várias pessoas fogem a tempo de salvarem as suas
vidas mas duas não o conseguem. Tendo assistido aos factos ficas saber
que as duas pessoas são a tua mãe e um famoso cientista que está
prestes a descobrir a cura para uma doença muito grave. Só há tempo
para salvar uma das pessoas em perigo. Só tu as podes salvar e tens
coragem para o fazer. Quem deves salvar?
JÚLIO -
Na perspectiva utilitarista devemos ser imparciais para criar um estado
de coisas melhor no mundo. Nesta ordem de ideias, entre uma mulher
comum – é assim que a devemos considerar se formos imparciais - e o
brilhante cientista parece claro que devemos salvar o cientista. Porquê?
Não propriamente por já ter salvo a vida de muitas pessoas mas porque
continuará com a sua descoberta a fazer o mesmo se sobreviver. Salvar o
cientista produzirá um melhor estado de coisas – maximizará o bem – do
que salvar a idosa senhora.
ANA
– Só que a idosa senhora é a tua mãe que te criou, sofreu e se
sacrificou por ti e que é uma pessoa especial, muito especial porque
nela e com ela viveste experiências que não vives com mais ninguém. Sê
utilitarista a ver se consegues!
JÚLIO – É um exemplo extremo, exagerado.
ANA – Pode acontecer – te. Nunca se sabe. O que eu quero salientar é o seguinte: esta
teoria desvaloriza estes laços e obrigações, não lhes atribui
significado moral relevante. Será possível abstrairmos, colocar de parte
as exigências da nossa vida pessoal, o amor e o afecto quando tomamos
decisões morais? Não é exigir demais? Se a imparcialidade está ligada à
justiça, ao tratamento justo das pessoas e dos animais não – humanos não
estaremos neste caso a ser demasiadamente imparciais, frios e cruéis,
ao ponto de desprezarmos pessoas importantes e a quem muito devemos? Há
pessoas que podem dizer muito à humanidade mas há outras que nos dizem
muito mais a nós.
JÚLIO
- Parece indiscutível que retirar certos afectos do centro da vida
moral é exigir demais de seres que neles encontram sentido para as suas
vidas. Reconheço que tens razão embora salvaguarde a hipótese de
estarmos a ser injustos com o Mill, ou seja, podemos não o estar a
compreender bem.
ANA – Caso assim seja, as minhas desculpas mas se o estamos a compreender o problema é dele, melhor, da teoria utilitarista.
DIÁLOGO 4
O princípio de utilidade e as normas morais convencionais
JÚLIO
- O utilitarismo é uma teoria bastante simples. No fundo, diz-nos
apenas o seguinte: avalia cada situação com toda a imparcialidade e
escolhe a alternativa que mais benefícios traga a todos os que serão
afectados pelas tuas acções.
ANA - O utilitarismo é simples apenas na aparência. Aplicar o seu princípio na prática pode revelar-se extremamente complicado.
JÚLIO - Porquê complicado?
ANA
- O utilitarismo implica que estejamos permanentemente a fazer cálculos
complexos e a prever de cada vez que é necessário tomar uma decisão
qual das opções trará mais benefícios prováveis e menos custos. Mas isto
seria impossível.
JÚLIO - Confesso que não tinha pensado nisso. Será assim tão difícil?
ANA
- É inevitável. Mas ainda que conseguíssemos fazer os cálculos
necessários, viver numa sociedade utilitarista é pouco seguro.
JÚLIO - Não vejo porquê.
ANA
- É que um utilitarista não hesitaria em mentir, roubar ou matar se
fazê-lo, consideradas as coisas imparcialmente, tivesse melhores
consequências do que prejuízos para a sociedade. Regras como “não
devemos matar pessoas inocentes” não têm para ele qualquer importância.
Tudo o que conta são as conveniências que cada situação nos impõe.
JÚLIO
- Será que na ética utilitarista não há lugar para as regras morais
comuns?Será que vale tudo desde que os fins justifiquem os meios?
ANA – O que é isso de regras morais comuns?
JÚLIO
– São regras que nos proibem de matar inocentes, roubar e mentir, por
exemplo. São regras partilhadas por uma certa comunidade de indivíduos e
que devem ser cumpridas.
ANA
– Para o utilitarismo a regra ou o princípio moral fundamental – e que
está acima de todos os outros – é o princípio de utilidade. Quando duas
normas morais entram em conflito, quando não sabemos qual devemos seguir
como no caso de conflitos morais mais ou menos dramáticos, é ao
princípio de utilidade que devemos recorrer. Além disso, e não menos
importante, o princípio de utilidade é que justifica e dá sentido às
normas morais convencionais. Devemos segui – las quando as consequências
são boas.
JÚLIO - As normas morais como as que proíbem o roubo, o assassinato ou a mentira têm, para Mill, muito valor. As
normas morais comuns estão em vigor em muitas sociedades por alguma
razão. Resistiram à prova do tempo e em muitas situações fazemos bem em
segui-las nas nossas decisões. Vendo bem as coisas, as regras da moral
convencional que gozam de maior prestígio devem tal reputação ao facto
de terem contribuído para a promoção do bem-estar da humanidade e da
convivência harmoniosa, isto é, têm cumprido o critério utilitarista.
Dizer a verdade é um acto normalmente mais útil do que prejudicial e por
isso a norma «Não deve mentir» sobreviveu ao teste do tempo.
ANA - Contudo,
não devem ser seguidas cegamente. Nas nossas decisões morais devemos
ser guiados pelo princípio de utilidade e não pelas normas ou convenções
socialmente estabelecidas. Para
o utilitarista, as acções são moralmente correctas ou incorrectas
conforme as consequências: se promovem imparcialmente o bem-estar, são
boas. Isto quer dizer que não há acções intrinsecamente boas. Só
as consequências as tornam boas ou más. Assim sendo, de acordo com o
princípio de utilidade, não há, para o utilitarista, deveres que devam
ser respeitados em todas as circunstâncias.
Este diálogos foram uma criação do Luís ou foram retirados de uma obra? (Qual?)
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