sexta-feira, 16 de novembro de 2012

DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA UTILITARISTA DE STUART - MILL

DIÁLOGOS SOBRE A ÉTICA UTILITARISTA DE JOHN STUART – MILL
DIÁLOGO 1
As consequências é que contam
ANA – Vamos à nossa conversa sobre Mill. Estás disposto a isso Júlio?
JÚLIO – Vamos a isso. Parece mais fácil do que Kant?
ANA – Parece mas as aparências podem iludir. Os filósofos são todos complicados.
JÚLIO – Como começaram?
ANA -  Começámos por esclarecer que a ética de Mill era consequencialista.Enquanto para Kant avaliar a moralidade das nossas acções era perguntar pela razão por que agimos de uma determinada forma, pela intenção com que fazemos aquilo que fazemos, (sendo a ação moral em Kant aquela que cumpre ou respeita o dever pelo próprio dever), em Mill, perguntar pelo valor moral da ação, é perguntar pelas suas consequências.
JÚLIO - Isso significa que …
ANA – Uma acção é moralmente boa ou má devido às suas consequências.
JÚLIO  – Se as consequências forem boas …
ANA– A acção é moralmente boa.
JÚLIO  – Se as consequências forem más ou não tão boas como podiam ser…
ANA – A acção não tem valor moral, ou melhor, não é moralmente correcta. Ás vezes, uma acção não é moralmente correcta por ter más consequências mas porque poderia ter tido melhores consequências.
JÚLIO – Mas atenção: isto só nos diz que a teoria de Mill é consequencialista. Falta saber porque tem o nome de utilitarismo.
ANA – Certo.Trata – se de saber o que significa mais precisamente dizer que uma acção tem boas ou más consequências?
JÚLIO – Só um momento. O telemóvel toca...
ANA – Atende.
JÚLIO – Lamento Ana mas vou ter de ir a casa. Uma inundação.
ANA – Deixaste alguma coisa aberta. Um descuido com más consequências e nada útil.
JÚLIO – Brinca, brinca. Inté.
ANA – Até breve.

DIÁLOGO 2
O princípio de utilidade
ANA – Então Júlio, novidades? Muitos estragos com a inundação?
JÚLIO – Nem por isso. Algumas coisas que não sabem nadar ficaram a nadar mas o importante é que a água não passou para a casa dos vizinhos. Só uma parte da escada ficou alagada.
ANA – Ainda bem. O teu descuido podia ter tido piores consequências.
JÚLIO – Foi a falar de consequências que nos despedimos. Continuemos.Segundo Kant testamos a correcção moral de uma ação baseando-nos no motivo ou intenção do agente e não nos resultados objectivos da acção. Muitas pessoas pensam que por mais indesejáveis que sejam os resultados de um acto a boa intenção do agente deve contar na avaliação do que fez. Mill discorda completamente: evitar que uma pessoa se afogue é sempre bom independentemente da motivação de quem salva. A motivação ou a intenção nada tem a ver com a moralidade da acção. Só tem a ver com o carácter do agente.
ANA – O nosso professor deu o seguinte exemplo: Durante a visita a um museu um dos visitantes percebe de que dois funcionários estão com dificuldades em mudar de lugar um quadro muito famoso e valioso. Imediatamente apressa-se a ajudá-los mas infelizmente tropeça num tapete e choca com um dos funcionários derrubando-o. O quadro cai com estrondo e fica muito danificado.
JÚLIO - O visitante agiu com boa intenção mas as consequências da acção foram desastrosas. Será que podemos considerar a sua ação moralmente correcta pois agiu com boa intenção ou devemos considerá-la como moralmente incorreta porque as consequências foram más?
ANA - A resposta de Mill seria que a ação foi moralmente incorrecta. Por quê? Porque segundo a sua perspectiva consequencialista um acto deve ser julgado pelas suas consequências. Se as consequências forem boas a acção é boa, se forem más a acção é má.
JÚLIO – E agora voltamos à questão em que ficámos: Mas o que significa mais precisamente dizer que uma acção tem boas ou más consequências?
ANA - Uma acção tem boas consequências se, dadas as alternativas disponíveis, dela resultar a maior felicidade, bem-estar ou prazer (ou pelo menos mais felicidade do que infelicidade) para o maior número possível de pessoas que por essa acção são afectadas. No exemplo dado um grande número de visitantes do museu será privado do prazer de contemplar o famoso quadro e o visitante solidário terá de responder pelos prejuízos involuntariamente causados.
JÚLIO - Então uma acção é boa se for útil.
ANA - Ser útil significa que dela resulta o maior bem – estar ou felicidade para o maior número de pessoas. Repara que no acidente que aconteceu no museu, apesar da boa intenção de quem quis ajudar, o resultado foi mau para muitas pessoas: a que vai ter de reparar parte dos estragos que causou, as pessoas que não poderão ver o quadro durante algum tempo e os responsáveis pelo museu que poderão ver diminuir o número de visitantes. Falta também saber se o quadro poderá ser restaurado.
JÚLIO - O meu irmão que não gosta de visitar museus não ficaria nada aborrecido com tudo isso.
ANA - Mill não está a pensar no teu irmão quando diz que a acção teve más consequências.
JÚLIO - O que eu penso é que Mill considera que a acção teve más consequências para várias pessoas mas não para as que não se interessam por museus. Essas não foram afectadas pelo que aconteceu.
ANA -  De acordo. Para Mill uma acção é boa se tiver boas consequências – ou as melhores consequências possíveis -  para o maior número possível de pessoas a quem ela diz respeito. Mill não diz todas as pessoas porque isso seria absurdo. As pessoas que como o irmão do Carlos não gostam de museus não vão lamentar o que aconteceu ao famoso quadro. Não são directa ou indirectamente afectadas, não sofrem o impacto que a desastrada intervenção do visitante teve.
JÚLIO - O que Mill está a dizer é que a utilidade é o que torna uma acção moralmente valiosa. O critério da moralidade de um acto é o princípio de utilidade. Este princípio é o teste da moralidade das acções.
ANA - Uma acção deve ser realizada se e se só dela resultar a máxima felicidade possível para as pessoas ou as partes que por ela são afectadas, ou que recebem directa ou indirectamente o impacto que a acção provoca.
JÚLIO - O princípio de utilidade é por isso conhecido também como princípio da maior felicidade. A ideia central do utilitarismo é a de que devemos agir de modo a que da nossa acção resulte a maior felicidade ou bem - estar possível para as pessoas por ela afectadas. Uma acção boa é a que é mais útil, ou seja, a que produz mais felicidade global ou, dadas as circunstâncias, menos infelicidade. Quando não é possível produzir felicidade ou prazer devemos tentar reduzir a infelicidade.
ANA – Parece fácil e simples.
JÚLIO – Mas o problema é aplicar este princípio. Nem sempre é fácil.
ANA – Contudo, o princípio de utilidade é, muitas vezes, um bom guia para as nossas decisões.
JÚLIO – Gostava que me esclarecesses.
ANA – Repara que eu não estou a afirmar que o princípio de utilidade é uma receita que aplicamos tranquilamente, sem qualquer angústia ou dúvidas. Agir seja com base em que princípio for, envolve frequentemente riscos.
JÚLIO – Agora é que preciso que me esclareças mesmo....
ANA – Vou tentar. Imagina que alguém tem uma doença que envolve a realização de uma complexa cirurgia.
Uma operação A permite a cura completa, mas apenas 30% dos pacientes a ela sujeitos sobrevivem; uma operação B permite a recuperação apenas parcial, a 50%, embora sem envolver quaisquer riscos para a vida dos pacientes. Imaginemos que um médico decide sujeitar um paciente à operação A e que este sobrevive. Terá o médico, de um ponto de vista utilitarista, agido bem?
JÚLIO – É para eu responder? Eu penso que, de acordo com o princípio da maior felicidade ou bem – estar possível, o médico, embora correndo mais riscos, agiu bem.
ANA – E porquê?
JÚLIO – Porque a cura completa do paciente corresponde ao máximo de bem estar possível (dado o paciente ter sobrevivido).  A operação A não devia ter sido realizada. O cálculo da utilidade esperada aconselha a preferir a operação B. E se a operação tivesse corrido mal? Utilitarista – O risco é a minha profissão.
ANA – Tomar decisões é quase sempre complicado.
JÚLIO – Por falar em complicações  tens de ir ao dentista como me disseste.
ANA – Espero que o dentista contribua para a minha felicidade e bem – estar.
JÚLIO – Tem calma. Por falar em felicidade vai ser esse o tema da nossa próxima conversa.
DIÁLOGO 3
O PRINCÍPIO DE UTILIDADE, A FELICIDADE GERAL E A FELICIDADE INDIVIDUAL.
ANA – Sabes Júlio, esta teoria  utilitarista não me agrada muito. Ter sempre de pensar na felicidade, no prazer ou no bem-estar do maior número possível de pessoas! Se o meu pai me dá um automóvel em vez de apoiar com esse dinheiro uma campanha contra o cancro, é justo dizer que ele agiu mal?
JÚLIO -  Segundo Mill sim. Se o teu pai desse dinheiro para essa luta contra o cancro muito mais pessoas seriam beneficiadas.
ANA – Mas ao comprar o carro o meu pai também beneficiaria muitas pessoas. Pagaria impostos, ajudaria os trabalhadores da empresa porque vendendo mais um carro a empresa teria mais lucro e não haveria demissões…
JÚLIO - Hum…Mas ajudar quem precisa de tratamento …. Há muito mais pessoas precisando de ajuda no tratamento contra o cancro do que a precisar de trabalho na empresa que fabricou e vendeu o carro.
ANA – Acho que a acção do meu pai não foi má, não teve más consequencias.
JÚLIO – Seria melhor ajudar os que sofrem daquela doença. Não foi a melhor acção possível. O teu pai poderia ter agido melhor. A boa ação é a melhor acção possível. A que beneficia o maior número possível de pessoas. O que custava ao teu pai dar o dinheiro do carro para a luta contra uma doença que mata tanta gente?De um ponto de vista utilitarista, dadas as circunstâncias e as alternativas disponíveis o teu pai não agiu correctamente.
ANA – É mais importante a felicidade dos outros do que a minha?
JÚLIO – Mill não diz isso.
ANA - Imagina que tenho muito dinheiro no banco. Devo, na perspectiva utilitarista, retirá – lo todo do banco e dá – lo a pessoas necessitadas contribuindo assim para uma maior felicidade geral?
JÚLIO – Seria absurdo. Mill nunca defendeu tal coisa. Se estivesse aqui, dir – te – ia o seguinte: «Quando se trata de decidir o que é moralmente correcto fazer, não deve ter em conta somente o seu bem-estar. Deve ponderar sobretudo que consequências a sua acção vai ter no bem-estar das pessoas por ela afectadas. A sua felicidade não conta mais do que a felicidade dessas outras pessoas. E quando me refiro a outras pessoas não abro excepções para as pessoas de que mais gosta, para familiares e amigos. Deve ser imparcial quando delibera o que vai fazer».
ANA – Então o utilitarismo não defende que que, em nome da felicidade geral, considerasse meu dever entrar em bancarrota.
JÚLIO - Na verdade, o utilitarismo não defende que deva abdicar de mim em nome da felicidade geral ou de um aumento de felicidade global. A acção correcta é sem dúvida a que maximiza a felicidade, a que contribui para a maior felicidade para todos, incluindo eu - o agente. A minha felicidade é tão importante como a felicidade dos outros – não é mais nem menos importante. Por outro lado, a relativa miséria em que eu ficaria – suponhamos que sem casa, sem dinheiro para comer – superaria a felicidade criada por dar a uma grande quantidade de pessoas uma pequena quantidade de dinheiro. Embora o utilitarismo afirme que alguns sacrifícios são moralmente exigidos não defende que devo sacrificar tudo pelos outros. Com efeito, se dou tudo não poderei continuar a ajudar os necessitados o que reduziria a quantidade global de felicidade.
ANA – HUM... Mesmo para defender o utilitarismo utiliza – se um critério utilitarista....
JÚLIO – Voltemos ao caso do carro que o teu pai te comprou. O teu pai devia ter pensado mais nos outros do que em ti. Precisavas mesmo do carro?
ANA – Dá imenso jeito. E não achas que o meu pai tem o direito de fazer o que bem entende com dinheiro que ganha e gasta? Mais uma teoria que me parece exagerada. Pensar sempre na felicidade geral. É de ficar doida. Que dizer dos meus projectos pessoais, dos meus gostos particulares e das minhas distracções, dos meus compromissos e obrigações familiares?
Supõe que gosto de ouvir música e dedico algum tempo por dia a esse prazer. Não poderia fazer outra coisa? É claro que sim. Poderia envolver-me em actividades que tendem a atenuar o sofrimento dos milhões de pessoas que neste mundo vivem miseravelmente. Haveria mais felicidade global. Ao ouvir música sou a única pessoa que está a beneficiar ou pelo menos há actividades alternativas que beneficiam mais pessoas. Imagina que vou ao cinema com o meu namorado. Devo perguntar se nesse momento não poderia desenvolver uma actividade mais útil para um maior número de pessoas? E se gosto de história desejando ser investigador devo renunciar e seguir uma carreira científica (médica, engenheira) porque o meu país precisa de profissionais qualificados nessa área? Seria mentalmente desgastante pensar sempre no bem - estar do todo e em beneficiar o maior número possível em tudo o que fazemos. Estariam arruinadas as nossas relações pessoais e as nossas obrigações familiares.

JÚLIO - Uma das principais críticas dos adversários do utilitarismo é a de que exige demasiado do agente moral. Mas Mill, pelo menos, nunca disse que sendo a promoção do bem – estar geral o nosso dever fundamental deveríamos promovê-lo a todo o custo. O que ele pensa é que há nos seres humanos uma forte inclinação para ser egoísta. Eu primeiro, depois eu… depois os meus familiares e amigos e só a seguir o resto. Parece aquela situação em que se pede muitíssimo para pelo menos conseguir alguma coisa.
ANA – Isso parece – me impossível, quase desumano. Nem toda a gente vale o mesmo para mim.
JÚLIO - Seja como for o que Mill quer dizer é que se  trata, através da educação segundo o princípio de utilidade, de abrir um espaço amplo para que a inclinação para o bem geral se sobreponha com frequência cada vez maior ao egoísmo. O princípio da maior felicidade em Mill exige que cada indivíduo se habitue a não separar a sua felicidade da felicidade geral sem deixar de ter projectos, interesses e vida pessoal.
ANA – Espero que seja assim porque caso contrário....
JÚLIO – O Mill conseguiu irritar – te!
ANA – De que maneira... Já não chegava o Kant com a mania das mãos puras e limpas!
JÚLIO – Que te agrade ou não, Mill não entende por felicidade, apenas a felicidade do agente, mas a felicidade para o maior número possível de pessoas. Para que uma acção tenha valor moral, não é suficiente que a felicidade seja a do agente, mas é necessário que seja a felicidade das pessoas afectadas pela acção realizada.
Não há mal em as consequências dos teus actos satisfazerem os teus interesses desde que: a) não tenhas em vista só os teus interesses; b) Penses primeiro no bem – estar da maioria das pessoas a quem a acção pode mudar a sua situação.

ANA – Mas ser egoísta, pensar em mim e não nos outros, é errado?

JÚLIO – Segundo Mill é errado.E segundo Kant também. Para Kant, é moralmente errado que o agente abra excepções para si próprio e faça depender o cumprimento do dever da satisfação dos seus interesses e desejos. A imparcialidade é a palavra de ordem. Para Mill ter em conta o interesse geral e colocá-lo acima dos interesses exclusivos do próprio agente quando se decide o que fazer é condição fundamental da moralidade de um acto.

ANA – Não conseguimos ser assim.

JÚLIO – Não sei se somos todos egoístas mas o que estes dois autores nos dizem é que é moralmente errado ser egoísta e defender que todas as pessoas devem agir sempre em função dos seus próprios interesses. Devemos lutar contra uma fácil tendência humana: sermos egoístas. O egoísmo não pode estar na base da moral. A razão é muito simples: apenas um egoísta estaria interessado numa moral baseada no egoísmo; mas, na verdade, também não é do interesse do egoísta que os outros sejam como ele. Não é do interesse do egoísta transformar a sua atitude numa regra universal, ou seja, que todos seguissem.
ANA – De acordo. Mas parece – me que subtilmente se passa de um extremo a outro. Mas vamos lá recapitular para quem vai ler estes materiais de apoio.
JÚLIO – Estás a falar de quê?
ANA – Nada. Esquece. O imperativo moral utilitarista é este: Age sempre se maneira a produzir a maior quantidade possível de bem estar geral para o mundo (para todos os envolvidos).
JÚLIO - O objectivo da moral é contribuir para transformar o mundo num lugar melhor.A moralidade é acerca de como produzir as melhores consequências, e não acerca de boas intenções. As intenções apenas contam porque revelam o que queremos fazer. A exigência de imparcialidade e de universalidade está presente na moral utilitarista.
O bem-estar a promover não é apenas o do agente mas o de todos os envolvidos.
Uma consideração imparcial dos interesses implica que o modo de o bem estar ser distribuído não é importante em si mesmo.
Se ao optar por uma situação A, três pessoas ficam satisfeitas e duas não, e se ao optar por B apenas duas pessoas ficam satisfeitas e três não, o princípio utilitarista obriga a optar por A mesmo que o agente esteja entre as pessoas insatisfeitas.

 No fundo, o utilitarismo diz-nos apenas o seguinte: avalia cada situação com toda a imparcialidade e escolhe a alternativa que mais benefícios traga a todos os que serão afectados pelas tuas acções.
ANA – Muito bem, não me parece um mau programa. Mas a estrita imparcialidade e a insistência nas consequências são discutíveis, muito discutíveis.
JÚLIO – Então discute.
ANA - Imagina que prometeste acompanhar a tua namorada a uma clínica onde ela irá realizar exames médicos. Para esse mesmo dia recebes um convite de um amigo para assistir a um concerto de beneficência a favor de uma instituição de acolhimento de menores que passa por graves dificuldades financeiras. Deves acompanhar a tua namorada ou ir ao concerto? Como para um utilitarista o que conta são as consequências e que de uma acção resulte o melhor estado de coisas a resposta seria ir ao concerto. Da acção de ir ao concerto resultará mais felicidade ou bem – estar no mundo – um melhor estado de coisas – do que da acção de acompanhar a sua namorada à clínica.
JÚLIO – Aonde queres chegar com esse exemplo?
ANA - Habitualmente diríamos que tinhas a obrigação de acompanhar a tua namorada à clínica porque o prometeste. Estás vinculado a essa promessa e, embora por vezes, por uma questão de prioridade tenhamos de ignorar algumas obrigações, as promessas são para cumprir.
JÚLIO - Segundo os críticos, o utilitarismo não convive bem com a ideia de obrigação moral ou de promessas porque estas remetem para o passado – para o que se prometeu ou para obrigações que contraímos. Uma doutrina que avalia as acções com base nas suas consequências, baseando – se no que delas irá eventualmente resultar, centra – se no futuro.
ANA - O problema do utilitarismo é o de que parece tornar incompreensível a noção de obrigação moral como algo que vincula agora um agente a algo não por causa das suas consequências mas simplesmente porque de facto temos obrigações morais.
JÚLIO – Mas também te digo que podia dar o dinheiro do ingresso no concerto, não ir ao concerto e acompanhar a minha namorada à clínica.
ANA – Para ficares bem com a tua consciência...
JÚLIO – Era uma solução.
ANA – A imparcialidade transforma – nos em máquinas de calcular as consequências das nossas acções. Desvaloriza determinados laços afectivos e obrigações que são importantes para a generalidade das pessoas. Falo das relações e obrigações que temos a respeito dos nossos familiares e amigos.
JÚLIO – Tenho uma certa dificuldade em não te dar razão.
ANA – Queres um exemplo? Supõe que aconteceu uma fuga de gás num prédio. Após uma explosão desencadeia – se um incêndio. Várias pessoas fogem a tempo de salvarem as suas vidas mas duas não o conseguem. Tendo assistido aos factos ficas saber que as duas pessoas são a tua mãe e um famoso cientista que está prestes  a descobrir a cura para uma doença muito grave. Só há tempo para salvar uma das pessoas em perigo. Só tu as podes  salvar e tens coragem para o fazer. Quem deves salvar?
JÚLIO - Na perspectiva utilitarista devemos ser imparciais para criar um estado de coisas melhor no mundo. Nesta ordem de ideias, entre uma mulher comum – é assim que a devemos considerar se formos imparciais - e o brilhante cientista parece claro que devemos salvar o cientista. Porquê? Não propriamente por já ter salvo a vida de muitas pessoas mas porque continuará com a sua descoberta a fazer o mesmo se sobreviver. Salvar o cientista produzirá um melhor estado de coisas – maximizará o bem – do que salvar a idosa senhora.
ANA – Só que a idosa senhora é a tua mãe que te criou, sofreu e se sacrificou por ti e que é uma pessoa especial, muito especial porque nela e com ela viveste experiências que não vives com mais ninguém. Sê utilitarista a ver se consegues!
JÚLIO – É um exemplo extremo, exagerado.
ANA – Pode acontecer – te. Nunca se sabe. O que eu quero salientar é o seguinte: esta teoria  desvaloriza estes laços e obrigações,  não lhes atribui significado moral relevante. Será possível abstrairmos, colocar de parte as exigências da nossa vida pessoal, o amor e o afecto quando tomamos decisões morais? Não é exigir demais? Se a imparcialidade está ligada à justiça, ao tratamento justo das pessoas e dos animais não – humanos não estaremos neste caso a ser demasiadamente imparciais, frios e cruéis, ao ponto de desprezarmos pessoas importantes e a quem muito devemos? Há pessoas que podem dizer muito à humanidade mas há outras que nos dizem muito mais a nós.
JÚLIO - Parece indiscutível que retirar certos afectos do centro da vida moral é exigir demais de seres que neles encontram sentido para as suas vidas.  Reconheço que tens razão embora salvaguarde a hipótese de estarmos a ser injustos com o Mill, ou seja, podemos não o estar a compreender bem.
ANA – Caso assim seja, as minhas desculpas mas se o estamos a compreender o problema é dele, melhor, da teoria utilitarista.

DIÁLOGO 4
O princípio de utilidade e as normas morais convencionais
JÚLIO - O utilitarismo é uma teoria bastante simples. No fundo, diz-nos apenas o seguinte: avalia cada situação com toda a imparcialidade e escolhe a alternativa que mais benefícios traga a todos os que serão afectados pelas tuas acções.
ANA - O utilitarismo é simples apenas na aparência. Aplicar o seu princípio na prática pode revelar-se extremamente complicado.
JÚLIO - Porquê complicado?
ANA - O utilitarismo implica que estejamos permanentemente a fazer cálculos complexos e a prever de cada vez que é necessário tomar uma decisão qual das opções trará mais benefícios prováveis e menos custos. Mas isto seria impossível.
JÚLIO - Confesso que não tinha pensado nisso. Será assim tão difícil?
ANA - É inevitável. Mas ainda que conseguíssemos fazer os cálculos necessários, viver numa sociedade utilitarista é pouco seguro.
JÚLIO - Não vejo porquê.
ANA - É que um utilitarista não hesitaria em mentir, roubar ou matar se fazê-lo, consideradas as coisas imparcialmente, tivesse melhores consequências do que prejuízos para a sociedade. Regras como “não devemos matar pessoas inocentes” não têm para ele qualquer importância. Tudo o que conta são as conveniências que cada situação nos impõe.
JÚLIO - Será que na ética utilitarista não há lugar para as regras morais comuns?Será que vale tudo desde que os fins justifiquem os meios?
ANA – O que é isso de regras morais comuns?
JÚLIO – São regras que nos proibem de matar inocentes, roubar e mentir, por exemplo. São regras partilhadas por uma certa comunidade de indivíduos e que devem ser cumpridas.
ANA – Para o utilitarismo a regra ou o princípio moral fundamental – e que está acima de todos os outros – é o princípio de utilidade. Quando duas normas morais entram em conflito, quando não sabemos qual devemos seguir como no caso de conflitos morais mais ou menos dramáticos, é ao princípio de utilidade que devemos recorrer. Além disso, e não menos importante, o princípio de utilidade é que justifica e dá sentido às normas morais convencionais. Devemos segui – las quando as consequências são boas.
JÚLIO - As normas morais como as que proíbem o roubo, o assassinato ou a mentira têm, para Mill, muito valor. As normas morais comuns estão em vigor em muitas sociedades por alguma razão. Resistiram à prova do tempo e em muitas situações fazemos bem em segui-las nas nossas decisões. Vendo bem as coisas, as regras da moral convencional que gozam de maior prestígio devem tal reputação ao facto de terem contribuído para a promoção do bem-estar da humanidade e da convivência harmoniosa, isto é, têm cumprido o critério utilitarista. Dizer a verdade é um acto normalmente mais útil do que prejudicial e por isso a norma «Não deve mentir» sobreviveu ao teste do tempo.
ANA - Contudo, não devem ser seguidas cegamente. Nas nossas decisões morais devemos ser guiados pelo princípio de utilidade e não pelas normas ou convenções socialmente estabelecidas. Para o utilitarista, as acções são moralmente correctas ou incorrectas conforme as consequências: se promovem imparcialmente o bem-estar, são boas. Isto quer dizer que não há acções intrinsecamente boas. Só as consequências as tornam boas ou más. Assim sendo, de acordo com o princípio de utilidade, não há, para o utilitarista, deveres que devam ser respeitados em todas as circunstâncias.

1 comentário:

  1. Este diálogos foram uma criação do Luís ou foram retirados de uma obra? (Qual?)

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