O PROBLEMA DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Devo obedecer sempre às leis do Estado? É legítima a liberdade de desobedecer às leis do Estado?
Mohandas Gandhi, mais conhecido por Mahatma Gandhi, foi o fundador do
moderno Estado Indiano e conseguiu a independência da Índia face ao Império
britânico em 1947. O que mais surpreendeu os seus contemporâneos foi a forma
como atingiu esse objectivo. Indignado com a discriminação de que os seus
compatriotas eram alvo, Ghandi decidiu lutar contra o domínio britânico adop-
tando o método da desobediência civil não – violenta, também conhecido por
resistência pacífica (apesar de reconhecer que a guerra é por vezes a única
solução possível e de ter participado em algumas). A luta pela independência
foi longa e o próprio Ghandi foi preso várias vezes pelo governo britânico,
passando um total de sete anos na prisão. Contudo, a organização de gigantescos
movimentos de resistência pacífica acabou por desmoralizar os britânicos e, em
1947, foi declarada a independência da Índia. Tão extraordinário foi o seu
feito que Albert Einstein afirmou: «As gerações por vir terão dificuldade em
acreditar que um homem como este realmente existiu e caminhou sobre a Terra».
Influenciado pela espiritualidade hindu e pelos escritos do filósofo
americano Henri David Thoreau que advogava a resistência a leis injustas,
Ghandi pensou que a melhor forma de protesto moral era a recusa em cooperar com
leis e medidas injustas do governo britânico. Em certas ocasiões a resistência
consistia na ocupação pacífica de propriedades do governo: os manifestantes
sentavam-se e, não oferecendo resistência violenta, também não obedeciam às
ordens da polícia e do exército. Por outro lado, ficou célebre a organização de
uma marcha de 200.000 pessoas em direcção ao mar para colher sal, desafiando o
monopólio da sua exploração por parte dos representantes do Império Britânico.
Considerando que era honroso ser preso por uma justa causa e adoptando um
método de deso- bediência que a pouco e pouco minava a força moral do
adversário, Ghandi inspi- rou várias formas de protesto a favor da mudança
social. Muitas pessoas que protestam contra as guerras, a degradação do
ambiente, os direitos humanos e dos animais utilizam frequentemente métodos
semelhantes.
A referência à figura de Ghandi ajudar-nos-á a compreender, apesar das
características específicas da sua luta, alguns aspectos importantes do que se
entende por desobediência civil.
As acções organizadas por Ghandi foram ilegais? Sim. Na verdade,
desobedeceu a ordens das autoridades políticas, violando leis estabelecidas.
Mas, como as acções criminosas também são ilegais, é correcto dizer que
Ghandi se comportou como um criminoso? A desobediência praticada e organiza- da
por Ghandi teve a forma de um protesto moral destinado a mudar a lei e o
comportamento do governo (ressalvando que no caso específico se tratava de uma
luta pelo fim do domínio britânico). Ao passo que o criminoso que assalta um
banco ou viola flagrantemente as regras do trânsito age para benefício próprio
e tenta passar despercebido, Ghandi violou publicamente a lei para denunciar a
sua injustiça e defender uma causa moral. Ao contrário do criminoso, não
procurou secretamente fugir ao cumprimento da lei nem fez da desobediência um
fim em si mesmo. Depois de desrespeitar a lei, aceitou a penalização de que foi
alvo.
O que é então a desobediência civil?
É uma acção ilegal não criminosa que, por razões
éticas, protesta publicamente contra leis e medidas das autoridades políticas
estando os seus autores dispostos a sofrer as consequências da infracção da
lei. O que transforma a desobediência em protesto moral
é a injustiça das leis ou das suas aplicações.
Há por conseguinte uma diferença significativa entre desobediência civil
e desobediência criminosa. A desobediência civil é pública e visa denunciar
publica- mente injustiças legais, enquanto a desobediência criminosa consiste
num acto ilegal cometido de forma tão secreta quanto possível e que não
pretende mudar nada que esteja errado. No primeiro caso, a ilegalidade é um
meio de combater uma grande injustiça. No segundo caso, infringe-se
deliberadamente a lei para benefício próprio e prejuízo da sociedade.
O respeito pela lei é importante porque nenhuma sociedade subsistiria –
esta- ria condenada à anarquia ou a constantes abusos de poder quer do Estado
quer dos indivíduos – sem a obediência às leis aprovadas.
Contudo, nem sempre o que é legal é legítimo, ou seja, justo e conforme
ao que exige a consciência moral. Por exemplo, na África do Sul, durante o regime
do apartheid, o sistema legal proibia, entre outras coisas, que os
membros da maioria negra vivessem nos bairros dos brancos e frequentassem as
mesmas escolas, havendo nos jardins bancos para negros e bancos para brancos.
Na Alemanha nazi era possível prender pessoas que não tinham cometido qualquer
crime e confiscar-lhes os bens porque tinham sido aprovadas pelo governo leis
que o permitiam. Sistemas legais como os da Alemanha nazi ou do apartheid sul-africano
mostram que o que é legal – em conformidade com o direito positivo – pode não
ser legíti- mo, ou seja, pode ser injusto. Devemos, por conseguinte, não
confundir legalidade com legitimidade. O Estado legítimo será aquele que
procura que o que é legal seja também justo.
Desobediência civil e democracia
Repare que os dois exemplos anterormente referidos dizem respeito a
Estados (historicamente desaparecidos) que não podemos considerar democráticos
ou Estados de direito.
E em Estados ditos democráticos justifica-se a desobediência civil?
As sociedades ditas livres ou abertas são aquelas que procuram evitar
abusos de poder negando a qualquer ser humano – governante ou governado,
privilegiado ou desfavorecido – o direito de estar acima da lei. Mas as leis
podem ser injustas e repressivas e as próprias sociedades democráticas não
parecem estar imunes a esta crítica.
«Algumas pessoas argumentam que a violação da lei nunca se
pode justificar: se não estamos satisfeitos com a lei, devemos tentar mudá-la
através dos meios legais, como as campanhas, a redacção de cartas, etc. Mas há
muitos casos em que tais protestos legais são completamente inúteis. Há uma
tradição de violação da lei em tais circunstâncias conhecida por desobediência
civil. A ocasião para a desobeciência civil emerge quando as pessoas descobrem
que lhes é pedido que obedeçam a leis ou a políticas governamentais que
consideram injustas. A desobediência civil trouxe mudanças importantes no
direito e na governação. Um exemplo famoso é o movimento das sufragistas
britânicas, que conseguiu publicitar o seu objectivo de dar o voto às mulheres
através de uma campanha de desobediência civil pública que incluía o
auto-acorrentamento das manifestantes. A emancipação limitada foi finalmente
alcançada em 1918, quando foi permitido o voto às mulheres com mais de 30 anos,
em parte devido ao impacto da Primeira Guerra Mundial. No entanto, o movimento
das sufragistas desempenhou um papel significativo na mudança da lei injusta
que impedia as mulheres de participar em eleições supostamente democráticas.
Mahatma Gandhi
e Martin Luther King foram ambos defensores apaixonados da desobediência civil. O desafio de Martin
Luther King ao preconceito racial através de métodos análogos aos de Ghandi
ajudou a garantir direitos civis básicos para os negros americanos nos estados
americanos do Sul.
Outro exemplo de desobediência civil está patente na recusa de alguns
americanos em participarem na Guerra do Vietname, apesar de serem requisitados
pelo governo. Alguns americanos justificaram esta atitude afirmando acreditar
que matar é moralmente errado, pensando por isso que era mais importante violar
a lei do que lutar e possivelmente matar outros seres humanos. Outros havia que
não objectavam a todas as guerras, mas sentiam que a guerra no Vietname era
injusta e que sujeitava os civis a grandes riscos, sem nenhuma boa razão. A
dimensão da oposição à guerra no Vietname acabou por conduzir os Estados Unidos
à retirada. Sem dúvida que a violação pública da lei alimentou esta oposição.
A desobediência civil corresponde a uma tradição de violação não
violenta e pública da lei, concebida para chamar a atenção para leis ou
políticas injustas. Os que agem nesta tradição de desobediência civil não
violam a lei unicamente para seu benefício pessoal; fazem-no para chamar a
atenção para uma lei injusta ou uma política moralmente objectável e para
publicitar ao máximo a sua causa. Por isso é que estes protestos ocorrem
habitualmente em lugares públicos, de preferência na presença de jornalistas,
fotógrafos e câmaras de televisão».
Nigel Warburton, Elemento Básicos de Filosofia, Lisboa, Gradiva,
pp. 132-133
A desobediência civil revela-nos que há uma diferença que nunca deve ser
esquecida entre obrigação moral e obrigação política ou jurídica, isto é, uma
diferença entre os direitos das pessoas e os deveres dos cidadãos. Em suma,
mostra-nos que não somos somente cidadãos, somos também pessoas. Contudo, estas
considerações não impedem que seja um procedimento polémico.
ACTIVIDADES
1.
a) É moralmente justificável que algumas vezes desobedeçamos às
leis? Porquê?
R: É moralmente justificável que algumas vezes
desobedeçamos às leis porque estas podem ser injustas. O que transforma a
desobediência em protesto moral é a injustiça das leis ou das suas aplicações.
b) Se é moralmente justificável a desobediência, em que
condições é legítimo termos liberdade para o fazer?
R: A
desobediência à lei nunca sendo legal é legítima se não for um acto criminoso.
Recusar pagar impostos porque discordamos por exemplo do uso desse dinheiro
para alimentar a indústria de armamento é acto legítimo e não criminoso.
Devemos também estar dispostos a sofrer as consequências de um acto legítimo
mas ilegal- sermos presos, por exemplo. Devemos desobedecer sem cometer crimes
ou prejudicar outras pessoas. Não se justifica que a desobediência se traduza
em actos que violem a propriedade dos outros ou a sua integridade física.
c) Tem
conhecimento de situações históricas em que pessoas desobedeceram por razões
morais às leis do Estado. Em que casos pensa que a desobediência foi
justificada?
2. Suponha que vive num país cujo Estado promulga as seguintes
leis:
a) Qualquer pessoa que provoque um incêndio florestal será
condenada a 6 meses de prisão e
a 600 contos de multa.
b) Qualquer pessoa seropositiva será confinada a um centro
sanitário de alta segurança, para evitar o contágio e a propagação da doença.
c) Qualquer pessoa que tenha opiniões contrárias ao regime
político vigente será condenada à morte.
d) Nenhum trabalhador estrangeiro tem o direito de trazer ou
chamar a sua família para o país de acolhimento.
Que leis lhe parecem justas? Quais justificariam
desobediência civil?
R: O caso b) viola o direito à livre circulação das pessoas e é por isso
uma forma de limitação da vida dessas pessoas que sabemos ser injustificável.
Trata – se de um abuso inadmissível.
O caso c) é uma flagrante e inadmissível violação da liberdade de
expressão e do direito à vida.
O caso d) infringe o direito de reunião familiar que está
generalizadamente consagrado.
3. Considere os seguintes casos e mostre se são formas legítimas
de protesto:
a) Num país em que o aborto é legal, uma pessoa decide impedir a
entrada de clientes numa clínica onde aquele é praticado.
b) Nesse mesmo país e também para protestar contra a lei
que permite o aborto, um indivíduo coloca uma bomba na referida clínica.
c) Defensores do ambiente despejam detritos de um rio
poluído no pátio de uma empresa que consideram uma das maiores responsáveis
pela poluição.
d) Um cidadão pacifista de nacionalidade britânica decide
não pagar os seus impostos enquanto parte destes continuarem a ser destinados a
despesas militares. Comunica tal decisão à Fazenda Pública inglesa. É
sancionado pela Justiça com um mês de prisão. Profundamente convicto da sua
razão e dos seus princípios, actua do mesmo modo ano após ano. O juiz também
não abdica da sua posição e todos os anos pune-o com um mês de prisão.
R: Só o último caso parece ser uma forma legítima de protesto.
4. Os adversários da desobediência civil sustentam que é sempre
errado violar a lei. Os defensores da desobediência civil afirmam que por vezes
é correcto infringir a lei. Os primeiros afirmam que se em sociedades
profundamente injustas a desobediência civil se justifica, em sociedades
democráticas esta não tem cabimento.
Apresentam vários argumentos contra a
desobediência civil. Tente verificar se são racionalmente persuasivos.
a)Uma das funções do Estado é a manutenção da lei e da ordem de
modo a que os cidadãos gozem de paz, segurança e bem-estar. Beneficiamos dos
seus serviços e da sua protecção. Mesmo que julguem ter uma justa causa as
pessoas que violam as leis estão a perturbar a estabilidade social. É para o
bem da sociedade que existem leis e quem as lhes desobedece publicamente está a
estimular a sua infracção. Violar a lei seja por que razão for promove o
desrespeito pela lei e pelo governo e, em última análise promove a anarquia, o
caos social, pondo em perigo o Estado de direito. A desobediência civil é um
remédio pior do que o mal que visa atacar.
R: O Estado de direito pode ser aperfeiçoado. Leis
democraticamente aprovadas não são necessariamente leis justas. A desobediência pública não põe
necessariamente em causa o Estado de direito mas procura aperfeiçoar as suas
medidas legais. O conformismo perante leis injustas é sinal de cidadania
atrofiada. Mais importante do que estabilidade social é a justiça. Mais é desta
que depende a estabilidade social. O argumento derrapa porque partindo da
desobediência a uma ou algumas medidas legais conclui que o Estado de direito
se arrisca a desaparecer quando o que se pretende é dar mais legitimidade às
suas leis e não derrubá - lo. Ações como as de Martin Luther King na defesa dos direitos civis dos
negros , de Ghandi contra a prepotência dos colonizadores britânicos evidenciam
que o estado de Direito não foi posto em
causa mas sim reformado e melhorado. Nenhuma das sociedades em que essas ações
decorreram deixou de ser uma democracia.
b) Nos estados democráticos e de direito, o governo exerce as
suas funções segundo a vontade da maioria do povo representada pelos deputados
eleitos. O governo é portanto uma criação da vontade da maioria. Como é
evidente os resultados das eleições não nos agradam sempre e algumas leis
também não. Contudo, temos a obrigação política de respeitar a vontade da
maioria. Os partidários da desobediência civil tentam obter através da violação
de certas leis o que não conseguiram mediante processos democráticos. A
desobediência civil é a negação da democracia.
R: Não é a negação da democracia mas a denúncia de
que nenhuma democracia é perfeita. Os processos democráticos não são por vezes
suficientes para que se mudem leis
injustas. A desobediência civil não é uma “declaração de
guerra” ao sistema democrático uma vez que não pretende derrubar quem aprova as
leis mas corrigir deficiências das leis aprovadas. Não se utiliza a força para
que seja aprovada nem há coacção sobre as pessoas para que não as cumpram.
Deste modo, a vontade da maioria não é ostensivamente posta em causa. Sendo a
liberdade de opinião uma das marcas distintivas de um sistema democrático, a
desobediência civil inscreve – se nesse ambiente mental. A liberdade de opinião
está associada ao espírito crítico pelo que a desobediência civil revela uma
sociedade civil activa e atenta e examinadora dos resultados dos actos dos
legisladores. Faz parte da essência do espírito democrático activo porque
recusa pronunciar – se somente nos períodos eleitorais. A desobediência civil
pode muitas vezes justificar – se como correspondendo à transformação dos
valores de uma sociedade que não é acompanhada pelos legisladores. Ou seja, na base
da ação de desobediência civil pode estar não a insatisfação de alguns poucos
mas o modo de pensar da maioria
c) A democracia põe ao dispor dos cidadãos meios menos drásticos
e desestabilizadores do que a desobediência civil para corrigir injustiças e
abusos de poder. As pessoas podem fazer ouvir a sua voz, realizar
manifestações, fazer greves, etc. Além disso há eleições frequentes que podem
depor governos que abusaram do poder e promulgaram algumas leis injustas. Numa
sociedade livre a desobediência civil é um mal desnecessário.
R: Como
dizia Martin Luther – King, a justiça adiada é, em muitos casos, justiça
negada. King argumentava que ninguém deseja ceder direitos aos injustiçados, sem
que estes lutem por eles. As pessoas desejam, sim, aumentar os direitos já
conquistados e nunca ceder em favor dos menos favorecidos, quando tal ajuda
implique ter que dividir direitos.
Excelente texto!!
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