O ATEÍSMO DE FEUERBACH
O pensamento de Feuerbach apresenta-se como projecto de constituição de uma «nova filosofia» entendida como antropologia. Esta «filosofia do futuro» é uma antropologia radical que, ao contrário da filosofia kantiana, não dá qualquer lugar a Deus. Trata-se de um «humanismo ateu», de uma aposta convicta na existência do homem sem Deus, sendo essa negação de Deus a condição sem a qual o homem não poderá viver plena e totalmente o seu ser.
A divisa dessa nova filosofia será «O homem é para si mesmo o ser supremo»: não há nenhum ser superior ao homem. Deus é uma ilusão, melhor dizendo, o produto ou o resultado de uma ilusão. Como em seguida se explicitará, aquilo que o homem adorou (Deus) nada mais é do que o homem separado de si, alienado, estranho a si mesmo. Os predicados que nos habituámos a considerar divinos nada mais são do que perfeições próprias da espécie humana que o homem projectou para fora de si, inventando Deus como seu proprietário.
Em suma, Deus é aquilo que o homem sempre desejou ser e erradamente pensou que não era. Deve-se acordar do sonho religioso, libertar o homem de Deus, dessa ficção que ele transformou em realidade, empobrecendo-se a si mesmo, separando-se de qualidades que definiam a sua essência, o seu ser. Denunciar Deus como ilusão do homem é revelar o conteúdo antropológico da religião. A religião falou sempre de Deus como tudo aquilo que o homem não era. Feuerbach diz que é tempo de nos darmos conta que Deus é o homem alienado, separado de propriedades suas.
Esta desalienação, a afirmação de que não há nenhum ser superior ao homem, visa naturalizar o ser humano, transformá-lo de «filho de Deus» (ilusão) em «filho da Natureza». Enquanto não acordar do sonho religioso o homem não descobrirá o seu verdadeiro ser. Continuará a considerar-se criado por Deus à sua imagem e semelhança.
Sendo Deus puro espírito, realidade não-natural, o homem julgará que será tanto mais humano quanto mais se libertar das suas raízes naturais, de tudo o que é material e sensível. Procurando aproximar-se o mais possível desse ilusório modelo divino, o homem tende a desvalorizar o que não é espiritual, vive na terra como se, de direito, fosse cidadão do céu. Deus corresponde assim à negação e desvalorização da dimensão natural, material, corpórea, sensível, do ser humano. Dirá Feuerbach acerca da sua nova filosofia:
«A minha doutrina resume-se em duas palavras: natureza e homem.»
Revelar o conteúdo antropológico da religião e da teologia (denunciar que quando falamos de Deus referimo-nos sem o saber ao homem) é libertar o homem da inferiorização perante um ser que é obra ou criação própria de quem se iludiu sobre si mesmo e revalorizar o ser humano como ser de «carne e sangue». Rejeita-se assim como unilateral e abstracto o conceito de homem como ser essencialmente espiritual, tão característico da generalidade da tradição filosófica ocidental.
A filosofia especulativa, que Feuerbach critica especialmente na figura de Hegel, seu máximo representante, é uma «teologia disfarçado». O seu carácter racionalista, o uso de conceitos muito abstractos, a linguagem muito técnica, o raciocínio profundo e elaborado, são, segundo Feuerbach, «disfarces», véus que pretendem ocultar preconceitos religiosos.
No entender de Feuerbach o idealismo hegeliano representa em termos racionais e especulativos a doutrina teológica cristã segundo a qual o homem e a natureza são criados por Deus. Assim, negar o conteúdo teológico da teologia será também negar a filosofia racionalista ou especulativa, desmascarar o fundamento ilusório em que assenta, melhor dizendo, o facto de se alimentar da ilusão de que Deus é superior ao homem, o Infinito ao finito.
Podemos agora indicar o percurso que vamos efectuar:
Começaremos por desenvolver a argumentação que conduz Feuerbach à negação do conteúdo teológico da religião; em seguida indicaremos o que essa negação implica, ou seja, a naturalização do homem.
1. A NEGAÇÃO DO CONTEÚDO TEOLÓGICO DA RELIGIÃO
«O homem desloca para fora de si a sua própria essência antes de a encontrar em si».
Uma vez que se vai negar que a religião tenha um conteúdo teológico, importa esclarecer o que a expressão significa. O conteúdo da religião é aquilo de que ela fala, o objecto do seu discurso. Diz-se que a religião fala de Deus e que por isso o seu conteúdo é teológico.
Como tem a religião concebido Deus? Como Realidade Suprema, como ser separado do homem e radicalmente distinto deste. Para a religião Deus é tudo o que o homem não é: Deus é perfeito, o homem é imperfeito; Deus é omnipotente, o homem tem um poder limitado; Deus é infinito, o homem é finito, etc. Por outras palavras, na perspectiva religiosa Deus possui de modo infinito todas as perfeições ou predicados que o homem apenas possui de forma limitada.
Para Feuerbach esta perspectiva é insustentável porque corresponde a uma inversão da realidade: fez-se de Deus o Ser Supremo quando, no fundo, ele é a suprema ilusão do homem; referimo-nos a Deus como Criador do homem quando, em última análise, ele é uma invenção do homem; fala-se do homem como criado à imagem e semelhança de Deus quando, rigorosamente falando, sem disso se ter apercebido, foi o homem que forjou Deus à sua imagem e semelhança.
Deus é o resultado de uma ilusão do homem acerca de si mesmo. O homem ilude-se sobre si mesmo e assim aliena-se, ou seja, separa-se daquilo que é seu, projectando-o para fora de si.
Que ilusão do homem está na origem ou génese de Deus, essa ficção a que demos o nome de Realidade Suprema?
A raiz da ilusão consiste no facto de o indivíduo humano, ao reconhecer-se limitado e imperfeito, julgar que os seus limites são os limites da sua espécie, isto é, da humanidade. Ora, segundo Feuerbach, isto é um juízo errado porque «o futuro revela sempre que os pretensos limites da espécie humana eram somente os limites do indivíduo.»
No indivíduo humano, a vivência do fracasso e da imperfeição condu-lo a projectar para fora de si o ideal de perfeição e de plenitude. Contudo, essa perfeição e plenitude por ele desejadas não são estranhas à espécie humana, pertencem ao homem, ao género humano.
Não tendo consciência disso, o indivíduo dá à projecção dos seus desejos e da sua necessidade de perfeição o nome de Deus.
Por outras palavras, quando o indivíduo transforma limites que só são seus em limites da espécie, da humanidade, cria-se a ilusão de que a perfeição, a infinitude, transcendem a espécie humana, isto é, não são humanas. Deus surge como resultado dessa ilusão. O indivíduo humano objectiva, «põe fora de si», predicados ou qualidades que considera sinónimos da perfeição e de plenitude. Não se dando conta de que toda essa grandeza que ele deseja pertence à humanidade, inventa um sujeito fictício para esses predicados reais e dá-lhe o nome de Deus. Assim Deus é o homem alienado, separado daquilo que é seu, separado daquilo que constitui a sua essência, a sua humanidade. Tudo aquilo que se atribuiu a Deus pertence realmente ao homem, tudo o que o homem considerou como divino é simplesmente humano.
Compreende-se assim a frase, aparentemente ambígua, de Feuerbach: «A consciência que o homem tem de Deus é a consciência que o homem tem de si».
Por outras palavras, a religião é a consciência que o homem tem de si como separado de Deus, sem saber que isso corresponde a estar separado de si. O homem religioso não se dá conta que a consciência do Infinito nada mais é do que afirmação da infinitude da própria consciência humana. A religião tem um conteúdo simplesmente humano: as determinações ou predicados do objecto religioso não são mais do que determinações do sujeito humano, objectivadas, separadas deste. O segredo da teologia é a antropologia. No sonho religioso, sem que o soubéssemos, o que adorámos como Deus era, na realidade, o ser humano. É para essa verdade absoluta (o divino é o humano porque produzido pelo homem) que é preciso despertar. Tal como o segredo do sonho é a realidade, o segredo de Deus é o homem. Chamou-se a Deus realidade suprema quando, em última análise, ele é a suprema ilusão do homem.
2. DEUS COMO ALIENAÇÃO E EMPOBRECIMENTO DO HOMEM
Se aquilo que pertence essencialmente ao homem é dado a Deus, a religião cristã aliena o homem de si mesmo, empobrece-o. Compreendemos agora que reduzir a filosofia e a religião a uma antropologia, mostrando que o homem é o mistério da religião, é um processo acompanhado pela preocupação de desalienar o ser humano.
A projecção da essência humana (de predicados que definem o homem como tal) para uma esfera transcendente, a posição do divino como distinto e superior ao humano, é uma atitude que exprime a redução do homem ao estatuto de criatura inferior, pecadora, imperfeita.
Aquilo que foi objectivado pelo sujeito humano transformou-se em sujeito absoluto, divino, que reduz o homem a objecto. Na religião o homem aliena-se, separa-se de si, diminui-se perante a grandiosidade de um ser que é afinal obra sua, renuncia à sua autonomia porque a sua essência foi transferida para um Outro Ser: o homem inventou Deus e, não tendo disso consciência, considerou-se criatura ou obra de um Ser fictício.
«A religião é a separação do homem de si mesmo: o homem coloca Deus acima de si como um ser que se lhe opõe. Deus é o que o homem não é, o homem é o que Deus não é; Deus é o Ser infinito, o homem o ser finito; Deus é perfeito, o homem é imperfeito; Deus é eterno, o homem é temporal.»
[Feuerhach, op, cit., p. 41.]
Na religião, o homem esvazia-se de si mesmo para dar conteúdo real a um conceito que sem a alienação e o empobrecimento do homem ficaria sempre vazio: o conceito de Deus.
Para Feuerbach, é sem dúvida característico da atitude religiosa acreditar que Deus está fora do homem, transcendendo-o. Contudo, esta consciência que o homem tem de si é uma forma infantil de autoconsciência. A passagem do estado infantil ao estado adulto corresponde à passagem da fantasia à realidade.
De objecto do pensamento divino o homem passa a sujeito de si mesmo. O que era considerado estranho e superior ao homem é agora concebido como humano. O fundamento antropológico da religião é claramente revelado. A essência teológica da religião é negada porque é o homem que cria Deus, alienando-se, e não Deus que cria o homem. Uma vez compreendido que «Deus» é o nome que o homem dá à projecção da sua essência para um plano transcendente e ideal, a auto-alienação do homem é ultrapassada. Se Deus, em última análise, se identifica com a essência ou natureza do homem, então pode-se dizer que o homem é o deus do homem.
«Homo homini deus est - tal é o princípio prático supremo - tal é a viragem da história mundial.»
Os predicados que atribuímos a Deus não pertencem realmente a Deus mas sim àquele que ilusoriamente lhos atribui. Ora, um sujeito sem predicados nada é, é algo de indeterminado e, logo, ausente da realidade. Como se vê, não se negam os atributos divinos. O alvo atingido pela negação é o sujeito desses atributos ou predicados. Os atributos divinos não são negados desde que recuperem o seu sentido humano, antropológico e não teológico: o de serem predicados que exprimem o carácter infinito do homem.
Nesta ordem de ideias, falar de ateísmo em Feuerbach exige que se entenda o termo num sentido muito peculiar e restrito.
Se Deus não fosse bondoso, justo e sábio, não seria Deus, o seu conceito não faria sentido. Contudo, para que haja bondade, justiça e sabedoria, não é necessária a existência de Deus. A negação daquele a quem atribuímos esses predicados não é acompanhada pela negação desses predicados. O que há de infinito e perfeito no homem foi atribuído a uma quimera (Deus).
Denunciada essa ficção resultante de uma auto-alienação do homem, os predicados projectados para um além ilusório são atribuídos ao seu verdadeiro e real sujeito (o homem).
Reconduzidos à sua origem real, não sofrem uma diminuição de qualidade ou de estatuto porque a projecção desses predicados em direcção ao Infinito nada mais revelava do que a infinitude ou divindade dos atributos humanos que eram erradamente colocados fora e acima do homem. O ateísmo de Feuerbach consiste em negar Deus sem que isso corresponda à negação do que há de divino (infinito) no homem.
O ateísmo de Feuerbach não é um niilismo: a negação do sujeito divino (de Deus) corresponde à rejeição da distância, melhor dizendo, da distinção entre o humano e o divino. Como diz Xhaufflaire,
«Contrariamente aos ateus ou aos agnósticos comuns que negam os predicados divinos, culminando assim numa espécie de niilismo, Feuerbach pretende, pelo contrário, reconhecer o seu valor e humaniza-os negando totalmente o seu sujeito divino. O verdadeiro conteúdo das religiões não representa portanto algo de separado, de indiferente, de específico. O seu (das religiões) verdadeiro sujeito e objecto é o homem. Feuerbach nota que, paradoxalmente, é na religião em que Deus é mais humano, é no cristianismo que mais se insiste na diferença entre o humano e o divino. Daí resulta um maior enfraquecimento e empobrecimento do homem: só se enriquece Deus empobrecendo o homem. O homem afirma em Deus o que nega em si mesmo.
Toda a bondade, toda a verdade, toda a beleza são retiradas ao homem pela fé cristã porque só Deus é bom, verdadeiro e belo. O homem cristão despoja-se em favor de Deus, porque se torna simples objecto de um sujeito divino que na realidade é uma simples objectivação de si próprio [. . .] A ilustração característica do ser cristão é, para Feuerbach, a religiosa que renuncia a um esposo terrestre e real para se entregar a um esposo celeste e imaginário.»
[In Feuerbach, Théologie de la Secularization, Paris, Ed. du Cerf, 1970, p. 220.]
3. A NATURALIZAÇÃO DO HOMEM
A transformação da teologia em antropologia não consiste na simples substituição de um sujeito fictício (Deus) por outro real (o homem). Uma nova visão do homem está presente nesta transformação. Ao denunciar Deus como ficção que o homem inventou ao desvalorizar-se a si mesmo, a filosofia de Feuerbach liberta o homem da submissão a um ser que não tem existência na realidade mas simplesmente no sonho religioso.
Para o homem que superou a ilusão religiosa o único ser supremo é o próprio homem: não há nenhum ser superior ao homem. O homem não foi feito à imagem de Deus.
Negada a existência desse modelo supremo, supera-se uma determinada concepção do homem: uma concepção superficial, limitada e abstracta. É tempo de acabar com a falsa ideia de que Deus é o modelo de realidade do qual o homem deve tentar ser a cópia. Sendo Deus concebido como puro espírito, conceber o homem à sua imagem conduziu à sobrevalorização da dimensão espiritual do homem e à desvalorização do corpo, da realidade sensível, isto é, do homem enquanto ser natural. A filosofia especulativa, desde Platão e sobretudo a partir de Descartes, foi vítima da ilusão teológica. Lembremo-nos de que em Kant o homem é valorizado como ser inteligível ou numénico, que é a racionalidade que constitui o seu verdadeiro ser e de que em Hegel o homem é definido como espírito finito. A filosofia especulativa (teologia disfarçada) atrofiou o homem, desprezou a sua condição de ser natural (para Feuerbach o homem é filho da Natureza), perdeu de vista o homem concreto.
Obcecada pelo desejo de eternidade, considerou o espírito como aquilo que há de eterno no homem - como o sinal ou a marca de Deus na criatura - e definiu como verdadeiramente real o que permanece e não desaparece. O corpo, elemento perecível, não é, nesta perspectiva espiritualista, aquilo que constitui o verdadeiro ser do homem.
Descendente de uma linhagem de pensadores que, pelo menos, começa em Platão, o filósofo especulativo, perseguido pelo desejo de eternidade, recuando perante o absurdo da morte, desvaloriza a realidade sensível, refugiando-se nas paragens do conceito, do pensamento abstracto. Que a repulsa da morte funcione como meio de desvalorização do sensível é, para Feuerbach, uma visão caprichosa das coisas, mais do que isso, uma esquizofrenia alimentada por séculos de cristianismo.
«O homem deve abandonar o cristianismo porque é somente então que ele compreenderá e atingirá a sua determinação, que se tornará homem. Com efeito, o cristão não é homem: é meio anjo e meio animal. Só quando o homem é homem em todas as suas dimensões e se sabe homem, quando não quer ser mais do que aquilo que é, pode e deve ser, quando não se quer tornar um ser fantástico, um ser que contradiz a sua natureza, a sua determinação, um ser, por conseguinte, inacessível, um ser privado de carne e sangue, um ser privado de pulsões (instintos) e necessidades sensíveis, é que ele é um ser completo, porque já não há nele falha alguma que motive o desejo do além. E a plenitude do homem inclui igualmente a própria morte.»
Feuerbach, A Essência do Cristianismo, p. 401.
A filosofia moderna, e não só, nos seus mais famosos representantes, é considerada por Feuerbach como uma forma de pensar que não conseguiu emancipar-se em relação à teologia ou à religião. Com efeito, uma vez que sempre houve a tendência a sobrevalorizar, no homem, a dimensão espiritual face à dimensão corpórea ou sensível, essa filosofia, quer disso tenha consciência ou não, nada mais fez do que traduzir em termos filosóficos ou abstractos, a ideia bíblica de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus (realidade puramente espiritual). Denunciado o carácter alienante e ilusório da religião, revelado que Deus é o resultado de uma alienação do homem e que para o homem não há outro ser supremo a não ser ele mesmo, não fará sentido continuar a ver o homem à imagem e semelhança de Deus. Por que razão é isto importante?
Porque, se fazemos de Deus o modelo que o homem deve procurar imitar, estamos a convidar o homem a desprezar aquilo que o afasta de Deus, isto é, o que é corpóreo, material ou sensível.
Esta visão unilateral do homem, esta errada tentativa de identificação do homem com uma dimensão do seu ser (o espírito) será ultrapassada a partir do momento em que o homem se deixar de empobrecer ao projectar-se para o céu e, colocando os pés bem assentes na terra, valorize a sua dimensão corpórea ou sensível. A naturalização do homem corresponde a uma nova concepção do homem, como homem total, não só espírito, mas também, carne.
A nova filosofia tem os pés assentes na terra. Embora o seu princípio ou começo seja o homem total, não pode deixar de, em relação à velha filosofia, acentuar o plano sensível. Algumas passagens de Princípios da Filosofia do Futuro atestam-no.
«O real na sua realidade efectiva, ou enquanto real, é o real enquanto objecto dos sentidos, é o sensível.»
Contudo, esta valorização do sensível, a posição da realidade empírica no seu devido lugar (ser um princípio e não uma realidade dependente, derivada), não deve criar a ideia de que estamos perante um materialismo simplista. A sensibilidade é de algum modo a unidade do material e do espiritual.
«A sensibilidade (Sinnlichkeit) não é para mim senão a unidade verdadeira, não pensada, não fabricada, mas real, existente, do ser material e do ser espiritual: é para mim a realidade.»
Reduzir o homem ao pensamento, entendido como consciência pura, é desnaturá-lo, ao mesmo tempo que se deturpa a natureza da realidade definindo-a como objecto do pensamento.
Ao negar a filosofia especulativa e a teologia racional, estamos a negar a negação do homem, ser «de carne e sangue», que só é homem se o for em todas as suas dimensões.
4. A RELAÇÃO EU-TU: O AMOR
«Como homem tu referes-te essencialmente, necessariamente, a um outro eu ou ser: a mulher.»
Quando Feuerbach se refere ao ser humano, ao sujeito da nova filosofia, como realidade sensível devemos falar mais de sentimento do que de sensação. A relação originária do homem com a realidade é o amor, sentimento que desperta num sujeito em virtude da presença de um outro.
A comunhão com o ser é determinada na sua origem pelo sentimento que aceita o outro como tal, na sua integral realidade, isto é, pelo amor. O amor não vive de abstracções mas de seres realmente existentes, não tem por objecto realidades metafísicas mas entes reais e sensíveis. Como a forma primordial de o homem se relacionar com a realidade é o amor (a relação eu-tu) justifica-se que a realidade não seja um objecto pensado, abstracto.
O amor é o fundamento da nova filosofia: o coração é o critério da realidade. O sensualismo, a primazia do corpo, do ser sensível, a afirmação categórica de que a realidade enquanto tal é o sensível justifica-se pelo facto de ser o amor a forma essencial de integração do homem na realidade, de comunhão com o ser.
Com efeito, «o coração não quer objectos ou seres abstractos, metafísicos ou teológicos quer objectos e seres sensíveis»
Feuerbach, Principias da Filosofia do Futuro. § 34.°