sábado, 31 de agosto de 2013

A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS - EXEMPLOS DE ANÁLISE CRÍTICA DE IDEIAS OU DE PROBLEMATIZAÇÃO FILOSÓFICA


A NATUREZA DOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS
EXEMPLOS DE ANÁLISE CRÍTICA DE IDEIAS OU DE PROBLEMATIZAÇÃO FILOSÓFICA
Um problema toma-se filosófico quando o seu desenvolvimento rompe as fronteiras de uma disciplina particular e respetivos métodos, exigindo uma abordagem cada vez mais geral.
Os problemas filosóficos levam o pensamento a aproximar-se dos seus limites, resistindo a toda a tentativa de solução.
O desenvolvimento de um problema filosófico, ao exigir uma perspetiva ou investigação cada vez mais geral, mais abarcante, conduz o pensamento até aos seus limites, isto é, a questões às quais nem o simples raciocínio nem a experiência dão solução.
Pode discutir-se se estes limites são atuais (ainda não foi encontrada a via adequada para a sua solução) ou definitivos (limites que nunca serão ultrapassados). Mas esta discussão é já demasiado especializada para esta fase. Importa notar, isso sim, que, em regra, surgem para essas questões respostas alternativas sem haver critério claro de opção por uma ou por outra.
EXEMPLO 1
PROBLEMA – DEUS É A EXPLICAÇÃO DO TODO?
Um exemplo de problema filosófico a que muitas vezes se tenta responder através do simples raciocínio é a questão da existência de Deus. A espontaneidade desse problema é bem atestada no diálogo a seguir apresentado. Na «idade dos porquês», a criança chega rapidamente da pergunta pela explicação de um objeto concreto à pergunta pela explicação da totalidade do universo. Dir-se-ia animada pelo espírito filosófico, faltando- lhe apenas os meios para prosseguir por si a investigação das questões que a sua curiosidade levantou (infelizmente, a regra é que quando tiver os meios e capacidade para o fazer já lhe falta a curiosidade).

Criança: − Porque é que há árvores?
Adulto: −­ Bem, há terra, sementes, água a luz do Sol.
C: − A luz do Sol?
A: − Sim, sem a luz do Sol nada poderia viver.
C: − E como apareceu o Sol?
A: − Formou-se durante biliões de anos...
C: − (interrompendo) muitos milhões?
A: − Sim. O Sol formou-se durante biliões de anos, já muito depois de se ter formado todo o universo.
C: − E como apareceu o universo?
A: − Foi Deus quem o criou.
C: − Ena, pá! Como fez isso?
A: − Ele é todo-poderoso. Criou o mundo pelo seu pensamento...
C: − (interrompendo) É um super-herói?
A: − Mais do que isso, porque os seus poderes não têm limites.
C: − E como apareceu Deus?
A: − Nada o fez aparecer. Existe por si próprio.
C: − Não tem pai nem mãe?
A: − Não. A sua perfeição...
C: − (interrompendo) Coitado!


Examinemos o diálogo para verificarmos como a criança transformou um problema particular, que tem uma resposta científica (que o adulto tentou resumir), num problema filosófico. A sucessão de perguntas mostra que ela admitiu espontaneamente o princípio filosófico «Tudo tem explicação». Se ficou insatisfeita com cada uma das respostas, isso deve-se à aplicação desse mesmo princípio: aquilo que usamos para explicar algo tem de ter, por sua vez, explicação.
RESPOSTA AO PROBLEMA
Quando a criança perguntou pelo princípio de tudo, o adulto deu uma das respostas mais clássicas: Deus. Apesar de não o ter explicitado, ele teria em mente o seguinte raciocínio típico para demonstrar a existência de Deus: «Como tudo o que existe tem explicação, a existência do universo obriga a que exista algo que o explique. E ao ser a partir do qual se explica a existência do universo chamo Deus»."
OBJEÇÃO À RESPOSTA
Mas a criança levantou uma dificuldade terrível a este raciocínio ao pedir explicação para a existência de Deus. Porquê? Porque, se o adulto diz que Deus é um ser espontâneo, que existe por si mesmo e que, por isso, não precisa de ser explicado por outra coisa, diz que o princípio
«Tudo tem explicação» é falso apesar de ter sido a partir dele que construiu a sua prova! Mas quem quiser salvar esse princípio negando a existência de um ser espontâneo (Deus), acabará por concluir que o todo não tem explicação − porque o elemento que invoca para explicar terá, por sua vez, de ser explicado e assim sucessivamente −, pelo que volta a negar o princípio que queria defender.


Apresentemos um esquema dos raciocínios pelos quais as pessoas tentam, em muitas discussões, resolver esta questão:

Tudo tem explicação.
Então, há um princípio que explica o todo.
Mas esse princípio, por sua vez, não pode ter uma explicação (senão seria uma parte do todo que queremos explicar e não a explicação do todo).
Logo: ou é falso que tudo tenha explicação − e, nesse caso, não podemos concluir que haja uma causa do todo − ou... estamos embrulhados!


TENTATIVA DE DEFESA DA RESPOSTA
É claro que o problema não se encerra desta maneira. Tanto o raciocínio do adulto, como a crítica ao mesmo podem ser indefinidamente aperfeiçoados. Por exemplo: substituindo «tudo tem explicação» por «todos os objetos do mundo» para podermos aceitar que haja fora do mundo um ser que explique o mundo.
NOVA OBJEÇÃO

Claro que a crítica também pode ser aperfeiçoada dizendo, por exemplo, que o mundo, sendo o conjunto de todos os seus objetos, não é um objeto do mundo, pelo que não teria de ter a propriedade de ser explicável (da mesma maneira que o conjunto de todos os portugueses que votam não tem a propriedade de ser uma pessoa que vota).

Nenhum destes desenvolvimentos possíveis interessa agora. Interessa apenas perceber que, à semelhança do verdadeiro espírito filosófico, a curiosidade da criança não deixou encerrar o problema e que, levando-o tão longe quanto lhe foi possível, deparou com um problema que atinge os limites da capacidade do nosso pensamento. (Note-se que a criança atingiu também os limites do pensamento na sua idade: a sua última observação parece mostrar que ela só pode pensar que um ser sem pai nem mãe tem de ser imperfeito...)

EXEMPLO 2
PROBLEMA – O ser humano é mau por natureza?
A pergunta «O que é o homem?» é tipicamente filosófica. Desdobra-se em várias outras das quais escolhemos uma − «O ser humano é mau por natureza?» para exemplo de problema filosófico que resiste às soluções dadas na base da experiência.

RESPOSTA AO PROBLEMA
Para muitas pessoas, talvez a maioria, o problema não chega a existir porque a experiência humana votaria maciçamente contra o homem. Tendo em mente os noticiários da TV (guerras, acusações mútuas, assassínios, conflitos de toda a espécie...) e o seu conhecimento da história mundial (onde a paz e as relações amigáveis entre povos e grupos parecem ser coisa rara), essas pessoas concluem, sem mais exame, que o homem é mau por natureza, que «o homem é o lobo do homem». De acordo com esta teoria da malignidade do ser humano, cada pessoa procura, à partida, dominar ou controlar cada uma das outras, estar acima das outras. Só por interesse obedece a leis ou princípios morais que promovam a igualdade.
CONTRA-ARGUMENTO
No entanto, a experiência pode também proporcionar argumentos contra essa tese, dando uma base para respostas alternativas.
Por exemplo: muitos psicólogos têm chamado a atenção para o que os jogos das crianças revelam sobre a natureza humana. Tanto nas brincadeiras de «faz de conta» como nos jogos mais desportivos, onde já há vencedores e vencidos, as crianças manifestam prazer ao desenvolverem atividades com regras que deverão ser iguais para todos, regras que elas mesmas criam e recriam. A adesão a leis é, neste caso, espontânea. O prazer da brincadeira e do jogo não está, à partida, dependente de um desejo de dominar e controlar os outros.
O prazer da criança no jogo revelaria, contra a teoria da malignidade do homem, que os seres humanos também estão vocacionados para tratar os outros como iguais. As leis seriam um meio de realização dessa vocação (não há jogo sem regras criadas para haver jogo) e não apenas uma limitação dos impulsos básicos e «malignos» do homem. Através da brincadeira, do jogo, a criança estaria a aprender a ser pessoa, e, acrescentam os psicólogos, impedir essa aprendizagem na infância seria criminoso.

OBJEÇÃO AO CONTRA-ARGUMENTO
É claro que a discussão não acaba aqui. Os defensores da malignidade do homem poderiam dizer que é ridículo invocar ninharias, como as brincadeiras de crianças, contra tudo o que revela a experiência histórica da humanidade; poderiam argumentar que mesmo no jogo das crianças se vê a batota, se vê o mais forte dominar e alterar as regras do jogo a seu bel-prazer, que o desejo de vitória é já sintoma do desejo de domínio total e assim por diante.

NOVA DEFESA DO CONTRA-ARGUMENTO
A crítica a esta tese poderia, por sua vez, lembrar que a história do conhecimento mostra como o que para muitos era «ninharia» foi, para outros que souberam refletir sobre ela, a base de descobertas essenciais (por exemplo, a reflexão sobre a ferrugem e a consequente descoberta do oxigénio foi um momento crucial na formação da química científica). Pode também afirmar-se que a batota e a imposição de regras pela força são sempre casos minoritários que, portanto, não permitem tirar conclusões para a natureza de todos os participantes do jogo. Noutro plano, a crítica da tese da malignidade do homem podia avançar a ideia de que a experiência também mostra a existência de instituições e, portanto, de regras e valores que o homem criou para estabelecer laços fraternos e não de dominação. Os conflitos que a tese da malignidade do homem invoca deveriam, em consequência, ser abordados, não como tendência natural do homem, mas como o resultado das perversões que nos teriam sido legadas por aprendizagem social. Que as crianças, ao lado da sua aprendizagem espontânea da igualdade, teriam o modelo parental onde o poder corresponde a decisões arbitrárias (pelo menos para as crianças) do adulto impostas apenas pela força, pela aprendizagem, em instituições como a escola ou, em geral o Estado, que teriam copiado esse modelo e assim por diante...
A discussão, como todas as importantes discussões filosóficas, pode prolongar-se indefinidamente com o aperfeiçoamento dos argumentos e criando novos. Mas, note-se, o que se pretende esclarecer de momento não é questão da malignidade ou não da natureza humana, mas sim a natureza dos problemas filosóficos. 

1 comentário:

  1. Realmente as vezes pensamos pelo facto de sermos adultos e termos a noção de outras fontes do saber. deduzimos que podemos explicar tudo a todos... Há perguntas que nos levam de um raciocino a uma fonte da sabedoria.

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