A NATUREZA DOS PROBLEMAS
FILOSÓFICOS
EXEMPLOS DE ANÁLISE CRÍTICA DE
IDEIAS OU DE PROBLEMATIZAÇÃO FILOSÓFICA
Um problema toma-se filosófico quando o seu desenvolvimento rompe as
fronteiras de uma disciplina particular e respetivos métodos, exigindo uma
abordagem cada vez mais geral.
Os problemas filosóficos levam o pensamento a aproximar-se dos seus
limites, resistindo a toda a tentativa de solução.
O desenvolvimento de um problema filosófico, ao exigir uma perspetiva
ou investigação cada vez mais geral, mais abarcante, conduz o pensamento até
aos seus limites, isto é, a questões às quais nem o simples raciocínio nem a
experiência dão solução.
Pode discutir-se se estes limites são atuais (ainda não foi encontrada
a via adequada para a sua solução) ou definitivos (limites que nunca serão
ultrapassados). Mas esta discussão é já demasiado especializada para esta fase.
Importa notar, isso sim, que, em regra, surgem para essas questões respostas
alternativas sem haver critério claro de opção por uma ou por outra.
EXEMPLO
1
PROBLEMA
– DEUS É A EXPLICAÇÃO DO TODO?
Um exemplo de problema filosófico a que muitas vezes se tenta
responder através do simples raciocínio é a questão da existência de Deus. A
espontaneidade desse problema é bem atestada no diálogo a seguir apresentado.
Na «idade dos porquês», a criança chega rapidamente da pergunta pela explicação
de um objeto concreto à pergunta pela explicação da totalidade do universo.
Dir-se-ia animada pelo espírito filosófico, faltando- lhe apenas os meios para
prosseguir por si a investigação das questões que a sua curiosidade levantou
(infelizmente, a regra é que quando tiver os meios e capacidade para o fazer já
lhe falta a curiosidade).
Criança: − Porque é que há árvores?
Adulto: − Bem, há terra, sementes, água a luz do Sol.
C: − A luz do Sol?
A: − Sim, sem a luz do Sol nada poderia viver.
C: − E como apareceu o Sol?
A: − Formou-se durante biliões de anos...
C: − (interrompendo) muitos milhões?
A: − Sim. O Sol formou-se durante biliões de anos, já
muito depois de se ter formado todo o universo.
C: − E como apareceu o universo?
A: − Foi Deus quem o criou.
C: − Ena, pá! Como fez isso?
A: − Ele é todo-poderoso. Criou o mundo pelo seu
pensamento...
C: − (interrompendo) É um super-herói?
A: − Mais do que isso, porque os seus poderes não têm
limites.
C: − E como apareceu Deus?
A: − Nada o fez aparecer. Existe por si próprio.
C: − Não tem pai nem mãe?
A: − Não. A sua perfeição...
C: − (interrompendo) Coitado!
Examinemos o diálogo para verificarmos como a criança transformou um
problema particular, que tem uma resposta científica (que o adulto tentou
resumir), num problema filosófico. A sucessão de perguntas mostra que ela
admitiu espontaneamente o princípio filosófico «Tudo tem explicação». Se ficou insatisfeita com cada uma das
respostas, isso deve-se à aplicação desse mesmo princípio: aquilo que usamos
para explicar algo tem de ter, por sua vez, explicação.
RESPOSTA
AO PROBLEMA
Quando a criança perguntou pelo princípio de tudo, o adulto deu uma
das respostas mais clássicas: Deus. Apesar de não o ter explicitado, ele teria
em mente o seguinte raciocínio típico para demonstrar a existência de Deus: «Como tudo o que existe tem explicação, a
existência do universo obriga a que exista algo que o explique. E ao ser a
partir do qual se explica a existência do universo chamo Deus»."
OBJEÇÃO À RESPOSTA
Mas a criança levantou uma dificuldade terrível a este raciocínio ao
pedir explicação para a existência de Deus. Porquê? Porque, se o adulto diz que
Deus é um ser espontâneo, que existe por si mesmo e que, por isso, não precisa
de ser explicado por outra coisa, diz que o princípio
«Tudo tem explicação» é falso − apesar de ter sido a partir dele que construiu a
sua prova! Mas quem quiser salvar esse princípio negando a existência de um ser
espontâneo (Deus), acabará por concluir que o todo não tem explicação − porque
o elemento que invoca para explicar terá, por sua vez, de ser explicado e assim
sucessivamente −, pelo que volta a negar o princípio que queria defender.
Apresentemos um esquema dos
raciocínios pelos quais as pessoas tentam, em muitas discussões, resolver esta questão:
|
Tudo
tem explicação.
Então,
há um princípio que explica o todo.
Mas
esse princípio, por sua vez, não pode ter uma explicação (senão seria uma
parte do todo que queremos explicar e não a explicação do todo).
Logo:
ou é falso que tudo tenha
explicação − e, nesse caso, não podemos concluir que haja uma causa do todo −
ou... estamos embrulhados!
|
TENTATIVA
DE DEFESA DA RESPOSTA
É claro que o problema não se encerra desta maneira. Tanto o
raciocínio do adulto, como a crítica ao mesmo podem ser indefinidamente
aperfeiçoados. Por exemplo: substituindo «tudo
tem explicação» por «todos os
objetos do mundo» para podermos aceitar que haja fora do mundo um
ser que explique o mundo.
NOVA
OBJEÇÃO
Claro que a crítica também pode ser aperfeiçoada dizendo, por exemplo,
que o mundo, sendo o conjunto de todos os seus objetos, não é um objeto do
mundo, pelo que não teria de ter a propriedade de ser explicável (da mesma
maneira que o conjunto de todos os portugueses que votam não tem a
propriedade de ser uma pessoa que vota).
Nenhum destes desenvolvimentos possíveis interessa agora. Interessa
apenas perceber que, à semelhança do verdadeiro espírito filosófico, a
curiosidade da criança não deixou encerrar o problema e que, levando-o tão
longe quanto lhe foi possível, deparou com um problema que atinge os limites da
capacidade do nosso pensamento. (Note-se que a criança atingiu também os
limites do pensamento na sua idade: a sua última observação parece mostrar que
ela só pode pensar que um ser sem pai nem mãe tem de ser imperfeito...)
EXEMPLO
2
PROBLEMA
– O ser humano é mau por natureza?
A pergunta «O que é o homem?»
é tipicamente filosófica. Desdobra-se em várias outras das quais
escolhemos uma − «O ser humano é mau
por natureza?» para exemplo de problema filosófico que resiste às
soluções dadas na base da experiência.
RESPOSTA
AO PROBLEMA
Para muitas pessoas, talvez a maioria, o problema não chega a existir
porque a experiência humana votaria maciçamente contra o homem. Tendo em mente
os noticiários da TV (guerras, acusações mútuas, assassínios, conflitos de toda
a espécie...) e o seu conhecimento da história mundial (onde a paz e as
relações amigáveis entre povos e grupos parecem ser coisa rara), essas pessoas
concluem, sem mais exame, que o homem é mau por natureza, que «o homem é o lobo do homem». De
acordo com esta teoria da malignidade do ser humano, cada pessoa procura, à
partida, dominar ou controlar cada uma das outras, estar acima das outras. Só
por interesse obedece a leis ou princípios morais que promovam a igualdade.
CONTRA-ARGUMENTO
No entanto, a experiência pode também proporcionar argumentos contra
essa tese, dando uma base para respostas alternativas.
Por exemplo: muitos psicólogos têm chamado a atenção para o que os
jogos das crianças revelam sobre a natureza humana. Tanto nas brincadeiras de
«faz de conta» como nos jogos mais desportivos, onde já há vencedores e
vencidos, as crianças manifestam prazer ao desenvolverem atividades com
regras que deverão ser iguais para todos, regras que elas mesmas criam e
recriam. A adesão a leis é, neste caso, espontânea. O prazer da brincadeira e
do jogo não está, à partida, dependente de um desejo de dominar e controlar os
outros.
O prazer da criança no jogo revelaria, contra a teoria da malignidade
do homem, que os seres humanos também estão vocacionados para tratar os outros
como iguais. As leis seriam um meio de realização dessa vocação (não há jogo
sem regras criadas para haver jogo) e não apenas uma limitação dos
impulsos básicos e «malignos» do homem. Através da brincadeira, do jogo, a
criança estaria a aprender a ser pessoa, e, acrescentam os psicólogos, impedir
essa aprendizagem na infância seria criminoso.
OBJEÇÃO
AO CONTRA-ARGUMENTO
É claro que a discussão não acaba aqui. Os defensores da malignidade
do homem poderiam dizer que é ridículo invocar ninharias, como as brincadeiras
de crianças, contra tudo o que revela a experiência histórica da humanidade;
poderiam argumentar que mesmo no jogo das crianças se vê a batota, se vê o mais
forte dominar e alterar as regras do jogo a seu bel-prazer, que o desejo de
vitória é já sintoma do desejo de domínio total e assim por diante.
NOVA
DEFESA DO CONTRA-ARGUMENTO
A crítica a esta tese poderia, por sua vez, lembrar que a história do
conhecimento mostra como o que para muitos era «ninharia» foi, para outros que
souberam refletir sobre ela, a base de descobertas essenciais (por exemplo, a
reflexão sobre a ferrugem e a consequente descoberta do oxigénio foi um momento
crucial na formação da química científica). Pode também afirmar-se que a batota
e a imposição de regras pela força são sempre casos minoritários que, portanto,
não permitem tirar conclusões para a natureza de todos os participantes do
jogo. Noutro plano, a crítica da tese da malignidade do homem podia avançar a
ideia de que a experiência também mostra a existência de instituições e, portanto,
de regras e valores que o homem criou para estabelecer laços fraternos e não de
dominação. Os conflitos que a tese da malignidade do homem invoca deveriam, em
consequência, ser abordados, não como tendência natural do homem, mas como o
resultado das perversões que nos teriam sido legadas por aprendizagem social.
Que as crianças, ao lado da sua aprendizagem espontânea da igualdade, teriam o
modelo parental onde o poder corresponde a decisões arbitrárias (pelo menos
para as crianças) do adulto impostas apenas pela força, pela aprendizagem, em
instituições como a escola ou, em geral o Estado, que teriam copiado esse
modelo e assim por diante...
A discussão, como todas as importantes discussões filosóficas, pode
prolongar-se indefinidamente com o aperfeiçoamento dos argumentos e criando
novos. Mas, note-se, o que se pretende esclarecer de momento não é questão da
malignidade ou não da natureza humana, mas sim a natureza dos problemas
filosóficos.
Realmente as vezes pensamos pelo facto de sermos adultos e termos a noção de outras fontes do saber. deduzimos que podemos explicar tudo a todos... Há perguntas que nos levam de um raciocino a uma fonte da sabedoria.
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