OS
VALORES E A AÇÃO
1.O
QUE SÃO VALORES
Os valores são termos que usamos para
atribuir muita, pouca ou nenhuma importância às coisas que avaliamos. As coisas
que avaliamos – acerca das quais emitimos juízos de valor - podem ser objetos, pessoas e atos. Muitas
pessoas atribuem muita importância à riqueza material. Isso significa que o
valor da riqueza material é muito significativo nas suas vidas. Outras atribuem
pouca ou mesmo nenhuma importância à riqueza material. Podemos dar exemplos de
alguns valores que, em geral, são objeto de apreço, sendo alguns considerados
fundamentais: liberdade, justiça, honestidade, solidariedade, respeito pela
vida humana.
Habitualmente o valor que
consideramos mais valioso é o valor da vida humana. É adequado lembrar que o
primeiro mandamento bíblico é “Não matarás”.
2.OS VALORES E AS NOSSAS AÇÕES.
Os valores são os critérios das
nossas preferências (são os motivos fundamentais das nossas decisões). Ao
tomarmos decisões agimos segundo valores que constituem o fundamento, a razão
de ser ou o porquê (critério) de tais decisões. Os valores dirigem as
nossas ações.
A atitude valorativa é uma constante
da nossa existência: em nome da amizade,
preferimos controlar e orientar noutra direção uma atracão física pela namorada
ou mulher do nosso amigo; em nome do amor, preferimos desafiar as convenções
sociais em vez de perder a oportunidade de sermos felizes; por uma questão de saúde
preferimos o exercício físico, a dieta e o fim do consumo de tabaco aos
hábitos prejudiciais até então seguidos; em nome da liberdade e da justiça
social, preferimos combater, lutar e correr riscos a aceitar um estado de
coisas que, apesar de tudo, satisfaz os interesses económicos da família a que
pertencemos; por solidariedade, ou
dos direitos humanos, preferimos
auxiliar os famintos e os doentes na Somália e em Moçambique a permanecer em
Lisboa dando consultas e enriquecendo; em nome de Deus, renunciamos a certas "ligações terrenas"; em nome
do cumprimento do dever preferimos
ajudar um familiar doente em vez de assistir a um interessante concerto,
etc.
Os valores são
ideias e ideais que influenciam as nossas decisões e ações, as nossas escolhas
e preferências. À razão que justifica a decisão de agirmos de um modo e não de
outro damos o nome de motivo. Quando justificamos as nossas ações e decisões –
quando indicamos o porquê ou a razão de ser – estamos sempre a referir – nos a
valores. São eles os motivos fundamentais das nossas decisões e ações.
3.JUÍZOS
DE FACTO E JUÍZOS DE VALOR.
Considere os seguintes juízos(proposições):
1. «A pena de morte é aplicada
na Arábia Saudita».
2. «A pena de morte é injusta».
O juízo «A pena de morte é aplicada na Arábia
Saudita» é apenas descritivo:
limita-se a dizer como é que as coisas são na Arábia Saudita no que respeita à
pena de morte. Não avalia nada.
O juízo «A pena de morte é injusta» não é descritivo porque faz uma avaliação. O que
significa dizer que a pena de morte é injusta? Significa dizer que a pena de
morte não deveria existir. Assim, este juízo diz – nos não somente como as
coisas são mas como deveriam ser. Ora, ao dizermos como as coisas deviam ser,
estamos a usar um critério para fazer a nossa avaliação. Neste caso, o critério
valorativo é a justiça.
JUÍZOS DE FACTO
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JUÍZOS DE VALOR
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1.Visam descrever a realidade tal como é apesar de
poderem descrevê-las erradamente. São juízos
descritivos.
2.Têm valor de verdade, ou seja, podem ser
verdadeiros ou falsos.
3. Pretendem que haja uma correspondência ou
adequação entre o que pensamos que as coisas são e o que as coisas realmente
são.
|
1.Dizem-nos como a realidade deve ser, exprimem o
que julgamos que as coisas devem ser. Por isso, avaliam certas ações como
certas ou erradas. São, em geral,
juízos normativos e prescritivos.
2.Discute-se que tenham valor de verdade.
3.Pretendem que haja uma correspondência ou
adequação entre a realidade (o que as pessoas são e fazem) e o que pensamos
que a realidade deve ser (o que as pessoas devem ser e fazer).
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EXEMPLOS
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1.Durante a Segunda Guerra
Mundial, os nazis exterminaram milhões de seres humanos nos campos de
concentração.
2.Em vários países é legalmente
permitido o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
3.Muitos portugueses consomem
carne de vaca.
4.”Boa parte do dinheiro que ganho
vai para impostos”.
5.No século XX houve duas guerras
mundiais que causaram mais de 50 milhões de mortos.
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1.O extermínio de milhões de
pessoas pelos nazis foi um ato criminoso e horrendo.
2. O casamento entre pessoas do
mesmo sexo é moralmente correto.
3. O consumo de carne de vaca é
moralmente errado.
4.Os impostos são um roubo, uma
violação do direito legítimo de propriedade.
5.Todas as guerras são injustas.
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EXERCÍCIOS
1.Esclareça a
distinção entre juízos de valor e juízos de facto.
Os juízos de facto são descritivos, pois
visam descrever como as coisas são, ao passo que os juízos de valor exprimem o
que pensamos que as coisas deviam ser ou o que as torna ou não recomendáveis.
Um exemplo de um juízo de facto é «Há seres extraterrestres inteligentes» e um
exemplo de um juízo de valor é «É errado mentir».
2.Distinga na
lista seguinte os juízos de facto dos juízos de valor. Justifique a sua opção.
a) Portugal venceu a França por um a zero na final do
Euro 2016 de futebol.
É um juízo de facto, pois visa descrever
(correta ou incorretamente) o que essas pessoas pensaram.
b) A derrota da seleção francesa foi muito injusta.
É um juízo de valor porque avalia como
imerecida a derrota francesa dando a entender que o resultado deveria ter sido
bem diferente.
c) Muitos franceses consideraram que o resultado foi muito
injusto.
É um juízo de facto, pois visa descrever
(correta ou incorretamente) o que essas pessoas pensaram.
d) É proibido andar nu na rua.
É um juízo de facto, pois visa descrever
(correta ou incorretamente) o que acontece.
e) É uma pouca vergonha andar nu na rua.
É um juízo de valor, pois não visa descrever
o que acontece.
f) Para os hindus, a vaca é sagrada.
É um juízo de facto, pois visa descrever
(correta ou incorretamente) o que acontece.
g) Para os hindus, não é moralmente aceitável que se
coma carne de vaca.
É um juízo de facto, pois visa descrever
(correta ou incorretamente) o que acontece.
PARTE
1
O
PROBLEMA DA OBJETIVIDADE DOS JUÍZOS DE VALOR MORAIS.
Nota: Iremos dar exclusivamente
atenção aos juízos de valor morais por duas razões: 1.São aqueles a que o
programa dá destaque especial e 2. Um dos temas deste capítulo – O Diálogo entre Culturas – suscita o debate sobre a avaliação de diversas
práticas morais em diferentes culturas.
A
formulação do problema
Considere o seguinte juízo: “A Terra gira em torno do Sol”. Trata-se de um juízo de facto. Tem duas caraterísticas importantes: 1.Tem valor de verdade(neste caso, é
verdadeiro) e 2.É objetivo (a sua
verdade só depende de como a realidade é e não da perspetiva
e do ponto de vista de cada pessoa ou do modo de pensar da maioria dos membros
de uma sociedade ou cultura).
Um juízo objetivo não
depende do ponto de vista do observador. Se uma pessoa disser que “A Terra gira em torno do Sol” e outra
disser que “A Terra não gira em torno do Sol”,
uma delas está obrigatoriamente errada. Não podem ter ambas razão. A Terra não
pode, ao mesmo tempo, girar e não girar em torno do Sol.
Considere agora outro
juízo: “As pessoas que cometem adultério
devem ser apedrejadas até à morte”. Trata-se de um juízo de valor moral que
condena drasticamente o adultério. Não se descreve um facto mas diz-se que o
adultério deve ser punido e como deve ser punido. E aqui começam os problemas.
Será que podemos dizer que este juízo tem valor de verdade, ou seja, que é
falso ou é verdadeiro? Será que podemos dizer que é objetivo, isto é, que a sua
eventual verdade não depende das opiniões e dos pontos de vista ou de uma
pessoa ou de uma dada sociedade?
A questão que vamos
debater será, por conseguinte, esta: Será
que há verdades morais objetivas?
Acerca deste problema
iremos estudar três teorias:
1.
O Objetivismo
Moral.
2.
O Subjetivismo
Moral.
3.
O Relativismo
Cultural.
Estas três teorias são
três respostas diferentes ao problema acima sublinhado.
Este
problema surge porque nos apercebemos de que há pessoas e culturas com valores
muito diferentes dos nossos, que preferem aquilo que nós rejeitamos ou que
valorizam aquilo que temos dificuldade em considerar importante. Os exemplos da
diversidade de costumes e de práticas morais são abundantes e os que
apresentamos de seguida servirão para a ilustrar e, ao mesmo tempo, dar
conteúdo concreto ao debate que irá seguir-se.
1. A maioria dos holandeses
considera que a eutanásia é moralmente correta. A eutanásia foi legalizada e
regulamentada em 2002.
2.Na Arábia Saudita, os
muçulmanos que abandonem a sua religião (apostasia) ou se convertam a outra religião
são condenados à morte. Na Jordânia, país maioritariamente muçulmano, os
apóstatas são, por lei, privados dos seus direitos como cidadãos e vêem os
seus bens confiscados. Em ambos os casos, a apostasia é um crime do ponto de
vista moral e legal.
3. A pena de morte está
legalmente instituída em 31 dos 50 estados dos EUA e 60% dos americanos
considera-a um procedimento moralmente correto. A maioria dos portugueses
rejeita-a mas ainda vigora em 50 países.
4.Na Arábia Saudita é proibido o
culto de qualquer religião exceto o Islamismo. A península arábica é
considerada a pátria de Maomé e por
isso o mais sagrado dos territórios. Permitir a prática de outras religiões e
a construção de igrejas e sinagogas, seria um ato abominável.
5. No Irão, desde a criação da República Islâmica, em 1979, o
consumo de álcool é passível de punição. A desobediência implica 80
chicotadas, tanto para consumidores como para vendedores, de acordo com o
Código Penal do país. Quem é apanhado pela terceira vez, pode ser condenado à
morte. A organização de direitos humanos Anistia Internacional condena essa
lei e exige que seja abolida.
6. A vaca é um animal sagrado
para o hinduísmo, religião de 80% da população da Índia. Os hindus, em geral,
acreditam que o a vaca encarna valores como o altruísmo e a
não-violência. Afinal, a vaca dá muito de si, como o leite e o couro. Em
troca, recebe muito pouco: erva e água. Comer carne de vaca é objeto de
profunda censura moral e, muitas vezes, os infratores são linchados.
7. Mais de
14.500 cidadãos da Arábia Saudita já assinaram uma petição que exige o fim do
sistema de guarda das mulheres por parte dos homens. Trata-se da primeira
campanha contra esta lei saudita, que impõe que todas as mulheres precisam da
autorização de um homem (o pai, o marido, o irmão, ou até o filho) para poder
viajar, sair da prisão, ou para casar, e ainda para trabalhar, estudar, ter
acesso aos cuidados de saúde ou até mesmo para sair de casa no dia-a-dia. Os
assinantes da petição consideram moralmente lamentável que as mulheres
sauditas estejam submetidas a estes costumes opressivos.
8. Os governos de todo o mundo devem implementar
imediatamente uma nova recomendação da Organização Mundial da Saúde das
Nações Unidas (OMS) para pôr fim aos "testes de virgindade"
degradantes, discriminatórios e sem base científica a que são submetidas
mulheres e meninas, declarou hoje a Human Rights Watch. Há
décadas, as Forças Armadas da Indonésia obrigam recrutas do sexo feminino e
noivas de oficiais militares a se submeterem ao “teste dos dois dedos” para
determinar se seus hímens estão intactos.
A Human Rights Watch documentou essa prática abusiva e fez um
apelo às Forças Armadas indonésias para que a abolissem. Em resposta, o
porta-voz militar indonésio, Fuad Basya, disse que os testes de virgindade
servem para excluir recrutas femininas inaptas. “Precisamos examinar a
mentalidade dessas candidatas. Se já não são virgens, são indisciplinadas e
isso significa que a mentalidade delas não é boa”, afirmou Basya ao jornal
“The Guardian”.
9. Milhares de mulheres morrem
anualmente no Paquistão nos chamados "crimes de honra". Em muitos
casos, os assassinos, quase sempre parentes da vítima, não são punidos,
porque a legislação permite que as famílias os perdoem. No Paquistão, os
"crimes de honra" contra as mulheres são uma prática comum.
Raramente condenada pela sociedade, raramente condenada pelos tribunais.
Milhares
de mulheres e raparigas paquistanesas são esfaqueadas, queimadas ou mutiladas
todos os anos pelos maridos, pais ou irmãos, se estes suspeitam de que elas
fizeram cair a desonra sobre a família, por serem infiéis, tentarem obter o
divórcio, fugirem com um namorado ou recusando casar com um homem escolhido
pela família. Se a vítima morre, o crime torna-se um "assassínio de
honra", um termo que acaba por simbolizar a ironia cruel de uma
sociedade islâmica conservadora que apregoa a defesa da mulher mas que muitas
vezes admite a violência selvagem sobre elas em nome da honra da família e dos
homens. O problema dos "crimes de honra" no Paquistão, embora
esteja longe de ser novo ou único, tem despertado nos últimos meses a atenção
internacional, desde que Samia Sarwar, de 29 anos, foi morta a tiro no
escritório de um conhecido ativista dos direitos humanos. Os pais
encomendaram o crime, porque ela tinha envergonhado a família ao procurar
divorciar-se.
10. 39.000 crianças do sexo feminino
casam todos os dias; são 14 milhões todos os anos. Casarão em cerimónias mais ou
menos públicas, dependendo do estado da legislação do país em causa. Mas,
mesmo nos países onde o casamento precoce, infantil, forçado é proibido, ele
não deixa de acontecer, sob a capa do silêncio de familiares, de membros da
comunidade, de agentes da autoridade. São pais que vendem filhas para poder
alimentar as outras crianças, que as dão em troca de um favor, em pagamento
de uma dívida ou mesmo acreditando que, casando-as, as estão a proteger de
uma vida miserável ou de violência.
Casarão com idades tão precoces como os 5 anos, abandonarão a
escola, não terão acesso a serviços de saúde, iniciarão a sua vida sexual de
uma forma abrupta, sem qualquer possibilidade para poder dizer não ou para se
proteger de infeções, como o VIH, ou de evitar uma gravidez indesejada e que
não conseguem carregar, física e psicologicamente.
Como não frequentarão a escola e dificilmente adquirirão uma
competência, desaparecerão do espaço público, perderão qualquer voz na tomada
de decisões que afetam as suas vidas, as vidas das suas comunidades e até dos
seus filhos e filhas… pura e simplesmente deixarão de contar.(Mónica Ferro, O
Observador, 10/09/2014)
|
1. O
Objetivismo moral.
Para o defensor do objetivismo moral há juízos morais
objetivos, isto é, juízos que não podem depender, em caso
algum, apenas dos sentimentos de cada pessoa ou do que uma sociedade ou a
maioria dos seus membros aprova.
Para os objetivistas há coisas objetivamente erradas.
A violação, o assassinato de inocentes, a mutilação genital, etc, são exemplos
de atos objetivamente errados. Quando afirmo "A mutilação genital feminina é cruel e desumana"
faço-o porque se trata de algo objetivamente cruel e desumano, e não porque choca
os meus sentimentos ou porque a cultura (a maneira de pensar) da sociedade em que
estou inserido a considera imoral.
À questão: “Será que há verdades morais objetivas?”, o
objetivista moral responderá afirmativamente. Os partidários do objetivismo moral acreditam
que os juízos de valor morais podem ser verdadeiros ou falsos – têm valor de
verdade e dizem que essa verdade ou falsidade não depende de pontos de vista,
de sentimentos ou de gostos, sejam estes individuais ou coletivos. Esse valor
de verdade é independente da opinião ou ponto de vista de cada pessoa ou de
cada cultura. Assim se considerarmos os juízos «A eutanásia é moralmente
errada» e «A eutanásia é moralmente correta», temos, segundo os objetivistas,
de reconhecer que um dos juízos é falso. Por conseguinte, alguém
está objectivamente certo ou objectivamente errado. Não vale tudo.
Para o objetivismo moral, há verdades morais
objetivas, universais. Eis algumas:
o É errado matar pessoas inocentes.
o Não se deve causar dor e sofrimento desnecessários.
o Não é correto roubar.
o Devemos cumprir as nossas promessas e contratos.
o Não devemos privar os outros da sua liberdade.
o Devemos dizer a verdade.
Imagine que alguém mata ou tortura pessoas com uma
orientação sexual que despreza. O objetivista moral pergunta se, analisando imparcialmente
ou sem preconceitos estes atos, não chegaríamos todos à conclusão de que eles
são moralmente inadmissíveis. Parece-lhe óbvio que sim e isso é, na sua
perspetiva, a prova de que há juízos morais objetivamente verdadeiros e
verdades morais universais. Não será razoável pensar que todos os seres humanos
condenariam moralmente a pessoa que, por exemplo, gostasse de torturar crianças
de tenra idade?
O objetivismo moral parece uma teoria difícil de
rejeitar mas há quem pense que é uma teoria errada. É o caso dos defensores das
duas teorias que iremos estudar de seguida. Estas teorias são, em certa medida,
críticas ao objetivismo moral.
O OBJETIVISMO MORAL
|
1. Segundo o objetivismo moral,
existem juízos morais que são verdades objectivas, isto é, verdades que não
dependem de sentimentos de aprovação subjetivos e são capazes de ir além dos
limites de cada cultura ou sociedade. É legítimo pensar em juízos morais que valem independentemente de estarem de acordo com sentimentos e
preferências individuais e de corresponderem ou não ao que a cultura de cada sociedade pensa ser verdadeiro.
2. Há tradições, hábitos
e costumes que são objetivamente errados. Nem tudo depende dos sentimentos e
preferências individuais ou das convenções de uma sociedade.
3.Há verdades morais
universais. As verdades morais são independentes de qualquer ponto de vista particular
seja ele o de um indivíduo ou o de uma sociedade.
4. O racismo, por exemplo, é
objetivamente errado, isto é, não se trata de uma questão de opinião ou ponto
de vista. Quem pensar o contrário está errado.
5. Os adversários do objetivismo
moral pensam que em questões de ordem moral, como o aborto, o infanticídio, a
eutanásia ou a pena de morte, não é
possível chegar a um consenso sempre que há sempre desacordo. Não é
possível ser imparcial quando diferentes culturas estão em confronto.
Cada pessoa defenderá como corretas as normas da sociedade em que foi educada,
e considerará errado o que lhe for oposto. Mas o objetivista defende que a história prova o contrário. Os defensores
da abolição da escravatura em Inglaterra
foram educados numa sociedade esclavagista mas consideravam essa
prática errada. Estariam, portanto, de acordo com qualquer outra sociedade
que condenasse o racismo, mesmo que essa sociedade não fosse a sua.
|
2. O
Subjetivismo moral (“A cada um a sua verdade”).
Para os defensores
do subjetivismo moral, não há juízos morais que possam ser considerados
objetivos e universais. Porquê? Porque todos os juízos morais se baseiam em
sentimentos e cada pessoa sente de modo diferente. Para os subjetivistas, os
juízos morais descrevem apenas os nossos sentimentos de aprovação ou reprovação
acerca do caráter das pessoas e do que elas fazem.
Exemplificando: muitas pessoas sentem aversão ou
repulsa por costumes e práticas tais como a mutilação genital feminina ou a
lapidação(apedrejamento) de pessoas adúlteras. Mostrarão o que sentem em juízos
como “ Os crimes de honra são um atentado à dignidade das mulheres” ou “A
mutilação genital feminina é moralmente inadmissível”. Quem aprova tais
práticas dirá, não exprimindo qualquer sentimento negativo, que “Os crimes de
honra não são moralmente errados” ou “ A mutilação genital feminina é uma
tradição que deve ser respeitada”. Dizer “A é
correto” significa “Gosto de A” ou “Aprovo A”; dizer “A é incorreto” significa
“Não gosto de A” ou “Desaprovo A”.
Como se vê os juízos morais sobre o
que é certo ou errado dependem de sentimentos de aprovação ou de reprovação.
São, por isso, subjetivos. Descrevem o que cada um sente. Se alguém diz ”O João
é honesto” está a fazer um juízo subjetivo ( está a falar mais dos seus
sentimentos do que de qualidades objetivas do João) porque está a dizer “Gosto
da atitude do João” ou “Agrada-me a maneira de ser do João”.
O subjetivismo moral ou relativismo individual - a verdade de um juízo moral
como “O aborto é imoral” é relativa a cada indivíduo - nega que haja juízos morais
objetivos mas afirma que há juízos morais verdadeiros.
Exemplificando: Que uma pessoa que diga “A interrupção
voluntária da gravidez é imoral ” significa que está dizer “Não gosto que o
aborto seja permitido”, ou seja, está apenas a descrever que tem sentimentos
negativos acerca da interrupção voluntária da gravidez. E se estiver a ser genuína,
o seu juízo é verdadeiro. O juízo é verdadeiro se descrever um sentimento
sincero. A verdade é a verdade do que eu sinto.
Se outra pessoa disser “A interrupção
voluntária da gravidez é moralmente aceitável ”, estaria, para o subjetivista, a descrever um sentimento positivo acerca do
aborto. E o seu juízo também será verdadeiro se descrever um sentimento
sincero.
Em suma, a cada indivíduo a sua verdade de
acordo com o que sente. Nenhuma verdade é melhor do que outra.
O subjetivista pensa que ninguém tem o
direito de dar lições de moral aos outros. Cada indivíduo tem um código moral
próprio baseado nos seus sentimentos que lhe permite distinguir o certo do
errado sem precisar de consultar os outros ou submeter-se ao que a maioria das
pessoas pensa.
À questão: “Será que há verdades morais objetivas?”, o subjetivista moral
responderá que, no respeitante a problemas morais todas as respostas são
subjetivas. Sobre as questões morais só
há verdades subjetivas.
Um dos principais argumentos que os subjetivistas morais invocam
para negar que haja juízos morais objetivos é o denominado “argumento da discordância”.
Consideram que essa discordância é uma
evidência: é um facto aparentemente indesmentível que os seres humanos não se
entendem sobre questões morais. Uns consideram imoral o que outros consideram
moralmente correto ou aceitável. Há juízos objetivos sobre a composição química
da água, o formato da Terra, a localização de cidades, a relação entre a Terra
e a Lua (quanto a estes assuntos os seres humanos entendem-se) mas, pensam os
subjetivistas, não há juízos objetivos sobre questões morais como o aborto, a
eutanásia, a pena de morte, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a forma de
punir certas infrações, etc,etc.
O SUBJETIVISMO MORAL
|
1.Teoria segundo a qual não há verdades morais objetivas ou
universais mas unicamente verdades morais subjetivas.
2.Baseia esta
conclusão na ideia de que há uma discordância generalizada dos seres humanos
acerca de questões morais.
3.A cada um a sua verdade.
4.Os
nossos juízos morais descrevem apenas sentimentos de aprovação ou de
reprovação. Dizer
“A é correto” significa “Gosto de A” ou “Aprovo A”; dizer “A é incorreto”
significa “Não gosto de A” ou “Desaprovo A”.
Se genuinamente uma pessoa sente que uma determinada ação é correta, se esta
está de acordo com o que sente ser correcto, então o juízo moral que sobre
ela faz é verdadeiro.
5.Moralmente verdadeiro é
o que os meus sentimentos me dizem ser verdadeiro. Cada indivíduo tem um código moral próprio que lhe permite distinguir
por si o certo do errado sem precisar de consultar os outros ou submeter-se
ao que a maioria das pessoas pensa sobre o assunto.
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CRÍTICAS
AO SUBJETIVISMO MORAL
1.O subjetivismo
moral torna inviável a discussão de questões morais.
Se todos estão certos porque defendem o que
sentem, não tem sentido pretender que mudem de opinião ou argumentar que estão
enganados.Se as verdades morais dependem dos sentimentos
de aprovação ou de desaprovação de cada indivíduo basta que os nossos juízos
morais estejam de acordo com os nossos sentimentos para serem verdadeiros. Um
genuíno debate moral em que cada interlocutor tente convencer o outro das suas
razões acerca de algo em que acredita perde qualquer sentido.
Imaginemos que João defende que o aborto é errado e que Maria defende
que o aborto é moralmente aceitável. Segundo o subjetivista, eles não estão
realmente em desacordo sobre se o aborto é ou não moralmente legítimo. Estão
simplesmente a descrever os seus sentimentos sobre a moralidade do aborto. Será
perda de tempo que um tente convencer o outro de que está enganado. Se João
sente verdadeiramente que o aborto é errado, ou seja, se desaprova fortemente
essa prática, então esse juízo é verdadeiro. Se o seu ponto de vista
corresponde ao que sente, então é subjetivamente certo. O mesmo se passa com
Maria. Não faz sentido debater ou discutir porque será conversa de surdos. Cada
qual exprime gostos diferentes e julga que gostos não se discutem. O que é
verdade para ti é verdadeiro e o que é verdade para mim é verdadeiro e ponto
final.
2.Não podemos
admitir que a teoria do subjetivismo moral seja verdadeira porque isso implica
que ninguém pode estar errado acerca de questões morais.
Se a verdade de um juízo depende dos sentimentos de cada um, nenhum
sentimento é melhor do que o outro, na medida em que for uma descrição fiel do
que cada um sente. Mas mesmo assim, não sabemos todos que os sentimentos nos
fazem, por vezes, cometer erros? Não os podemos considerar um guia infalível em
assuntos morais.
3.O SM defende que ninguém está errado acerca de
problemas morais (a cada um a sua verdade), estaremos dispostos a admitir que
não está errado quem tem sentimentos favoráveis aos “crimes de honra”, à
discriminação das mulheres ou a homicídios em massa?
4. De acordo esta teoria será impossível persuadir uma
pessoa intolerante a rever e mudar a sua posição. Ninguém está errado. Mas não
será contraditório tolerar a intolerância?
5.Se alguém agir
de acordo com sentimentos perversos, se sinceramente sentir que matar seres
humanos é aceitável, não será que o subjetivismo moral nos deixa sem argumentos
para condenar, por exemplo, assassinos em série como Ted Bundie?
Descobri que todos os juízos morais são subjetivos e
que não se pode, por isso, provar que alguém está objetivamente certo ou
errado. A racionalidade dos juízos de valor morais é zero. Não há nenhuma razão
objetiva para que alguém obedeça às leis. Descobri que para ser verdadeiramente
fiel a mim mesmo e livre teria de me libertar desses grilhões e tornar-me
completamente desinibido. Rapidamente me apercebi de que o maior obstáculo à
minha liberdade e à expressão do meu verdadeiro eu consistia no insuportável
juízo de valor de que devia respeitar os direitos dos outros. Perguntei-me:
“Mas quem são estes outros?”. Serão outros seres humanos com direitos? Por que
razão é mais errado matar um ser humano do que um porco ou uma ovelha? Porque
deveria sacrificar o meu prazer de matar só porque a vítima humana é
considerada como mais importante do que estes animais e outros? De certeza que
nesta época marcada pelas luzes da ciência não me vai dizer que Deus assinalou
uns prazeres como certos e outros como errados ou maus? Seja como for,
asseguro-lhe, minha cara jovem, que não se pode comparer o prazer que eu posso
ter em comer presunto e o prazer que sinto ao antecipar que a violaria e
mataria.
Esta é a sincera e honesta conclusão a que o exame
consciencioso do meu “eu” espontâneo e desinibido me conduziu.
Ted Bundy, Carta a uma Jovem Admiradora
3.O
Relativismo Cultural (“A cada sociedade ou cultura a sua verdade”).
A tese ou ideia
central do relativismo cultural pode ser descrita desta forma:
Moralmente correto é igual a socialmente
aprovado pela maioria dos membros de uma dada sociedade.
«X é moralmente correto» significa «A sociedade A aprova X».
Moralmente
incorreto é igual a socialmente desaprovado pela maioria dos membros de uma
dada sociedade.
«X é moralmente errado»
significa «A sociedade A reprova X».
Segundo
o relativismo cultural, cada sociedade tem autonomia completa para estabelecer,
de acordo com as suas crenças morais, o que é certo e o que é errado. Se são as
nossas convicções morais que estabelecem em cada sociedade o que é correto e
incorreto, então tal como os hábitos
alimentares e os tipos de vestuário variam de sociedade para sociedade, também os nossos juízos
de valor morais variam de uma sociedade para outra. O relativismo cultural insiste discordância dos seres humanos acerca da
correção ou incorreção moral de certas práticas e costumes.
Exemplificando:
Na sociedade
Indiana, constituída por 80% de hindus, é proibido matar vacas. A vaca, por
várias razões, é considerada um animal sagrado cuja vida deve ser
absolutamente respeitada. O juízo moral (juízo que avalia se certos atos,
práticas e costumes são morais ou imorais) que exprime esta crença é “Matar um
animal sagrado como a vaca é moralmente inadmissível”.
Na nossa sociedade, não acreditamos que a vaca seja sagrada. Nem a
vaca nem qualquer outro animal. A maioria dos portugueses acredita que não há
mal nenhum em comer carne seja de vaca ou de outro animal. O juízo moral que
exprime esta crença é “Matar um animal como a vaca não é moralmente inadmissível”.
O mesmo se diga do caso
de matar inocentes. Em certas circunstâncias, os Esquimós consideram correto
que se matem bebés. Certas tribos da Amazónia, matam bebés ou porque nascem
com alguma deficência ou porque são filhos de mães solteiras. Na nossa
sociedade, tais atos são moralmente repugnantes.
Em certas sociedades, os casamentos forçados
não são objeto de censura moral ao passo que noutras são considerados
práticas imorais. Em algumas sociedades, a homossexualidade é considerada um
pecado que deve ser punido com a morte. Defende – se assim que o juízo moral
“ A homossexualidade é um pecado que merece a morte” é verdadeiro. Noutras
sociedades, a homossexualidade não é vista como um pecado mas como uma
orientação sexual alternativa legítima. O juízo “A homossexualidade é um pecado
que merece a morte” é neste caso visto como falso. O que em certos lugares é
declarado como moralmente permitido e admissível, correto ou incorreto,
noutras é declarado inadmissível e incorreto.
|
«Matar é
errado», «Roubar é incorreto» e «Mentir é imoral». Muitas pessoas pensam que estes
juízos são verdades objetivas e universais, ou seja, que em qualquer sociedade
é verdade que matar, roubar e mentir são atos moralmente incorretos.
Não é essa, contudo, a posição do relativismo cultural. Para esta teoria,
não há juízos morais universal e objetivamente verdadeiros. Traduz-se
esta ideia dizendo que, para o relativismo cultural, os juízos morais são culturalmente relativos. Não há nada nos juízos acima apresentados que
os torne verdadeiros ou falsos. São as crenças morais da maioria das pessoas em
cada sociedade que determinam a sua verdade ou falsidade.
Isto quer dizer que um juízo moral é verdadeiro numa
dada sociedade se a maioria dos seus membros acreditam que é verdadeiro. É
falso se a maioria dos seus membros acreditam que é falso.
A verdade ou falsidade dos nossos juízos morais – as
formas como avaliamos costumes e práticas em diferentes contextos culturais – depende, para o relativismo cultural, do que cada sociedade aprova ou desaprova. Por
isso se diz que o relativismo cultural é a teoria que defende que os juízos
morais são
relativos ao que os membros de cada sociedade pensam e sentem.
Se não há nada que esteja certo ou errado
independentemente do que cada sociedade pensa e acredita ser certo ou errado,
então não há práticas e costumes moralmente certos ou errados em si mesmos ou
objetivamente certos ou errados. Se um português defender o juízo moral “A
mutilação genital feminina é inaceitável” , uma outra pessoa defensora do
relativismo educada numa sociedade com padrões culturais diferentes e
favoráveis a essa prática argumentará: “ Estás a
querer dizer que esta prática é errada em si mesma, objetivamente errada? Se é
isso que estás a querer dizer, estás a transformar a maneira de pensar e de
sentir da maioria dos membros da sociedade a que pertences em verdade objetiva
e universal, que deve valer para toda a gente neste planeta. Mas isso não faz
sentido. O teu ponto de vista é o ponto de vista da cultura a que pertences.
Nada mais. Não é a verdade. Há uma grande diferença entre o que julgas ser errado e algo ser mesmo
errado. Em questões morais só estamos errados quando não aceitamos o que é aprovado
pela maioria dos membros da sociedade em que fomos educados e vivemos. Se a
minha sociedade aprova a prática da mutilação genital feminina e eu estou de
acordo com isso então estou a agir bem e dispenso lições de moral”. Que mania que algumas pessoas têm de dizer “ Nós estamos certos e eles estão errados”!
Em questões morais ninguém é dono da verdade.
O bem e o mal,
o certo e o errado, são um assunto interno de cada cultura. Nenhuma outra tem o
direito de interferir. Tal como não há um critério, uma base objetiva, exterior aos
mundos do futebol e da natação que nos permita decidir “Quem é melhor ou
superior, Cristiano Ronaldo ou Michael Phelps?” também não temos, segundo o
relativista, um critério objetivo para determinar que certas práticas são
erradas em si mesmas e outras corretas. Seria preciso que existisse uma espécie
de sociedade exterior e acima das outras todas do planeta e que constituísse um
modelo de moralidade. Isso, como é óbvio, não existe. O que existe é uma grande
variedade de crenças e de convicções sobre o bem e o mal, o correto e o
incorreto.
Rejeitando que
haja um padrão objetivo do certo e do errado – ou seja, que haja regras morais
universalmente boas ou más – o relativista cultural defende que nenhuma
sociedade tem o direito de censurar outra.
Poderá
perguntar: mas “nós” não consideramos errado que se matem pessoas inocentes? Ao
avaliarmos essa prática como errada, não estamos a censurá-la, a dizer “eles”
estão errados? O relativista, baseado na ideia de que uma prática ou costume
não pode ser moralmente errada a não ser que a sociedade onde ela é seguida a
reprovar, dirá que se discordamos dessa prática não a devemos seguir, deixando
“em paz” quem a segue.
Nenhuma
sociedade é, pois, moralmente superior a outra ou melhor do que ela.
Ninguém tem legitimidade para dar lições
de moral.
Há diferentes maneiras de definir o que é
correto ou incorreto e nenhuma sociedade ou cultura está mais certa ou mais
errada do que outra.
Mas será que temos boas razões para aceitar a
teoria do relativismo cultural? Vejamos primeiro como os partidários desta
teoria a tentam defender.
ARGUMENTOS
A FAVOR DO RELATIVISMO CULTURAL
1.O argumento da diversidade e da
discórdia generalizada.
O argumento mais usado pelos relativistas culturais é o seguinte:
Premissa 1 – O que é considerado moramente correto ou incorreto
varia de sociedade para sociedade.
Premissa 2 – O que é moralmente correcto ou incorreto depende do que
cada sociedade acredita ser moralmente correcto ou incorreto.
Conclusão – Logo, não há juízos morais objetivos
(aceites independente- mente do contexto cultural).
Reduzamos o argumento a uma forma simples:
Premissa – Diversas culturas dão diferentes
respostas às mesmas questões morais.
Conclusão – Logo, não há nenhuma resposta
objetivamente verdadeira a essas questões (não há verdades morais universais).
Este argumento parece bastante convincente porque pensamos que a
discórdia é um poderoso obstáculo à objetividade dos juízos morais.
2.O
argumento da promoção da tolerância intercultural.
A ideia de que o relativismo cultural promove a tolerância é geralmente
assim defendida:
Premissa – As diversas culturas têm conceções diferentes sobre o que é moralmente
certo ou errado do ponto de vista moral.
Premissa – Se diferentes sociedades têm crenças morais diversas, não há verdades
morais objetivas e universais.
Conclusão – Logo, devemos adotar uma atitude de tolerância face às crenças e
práticas morais de outras culturas (devemos aceitar o que é aceite em outras
sociedades).
O extraordinário desenvolvimento tecnológico,
científico e militar dos europeus fez com que julgassem os seus valores
culturais como superiores. Povos pertencentes a sociedades diferentes foram na
sua maioria desqualificados como inferiores, bárbaros e selvagens. Em geral, os
europeus, convictos da sua superioridade cultural, pensaram que era seu dever
civilizar povos que julgavam desprovidos de civilização, mudando as suas
culturas de modo a parecerem-se com as culturas europeias. Esta pretensa missão
civilizadora ficou conhecida pela expressão «fardo do homem branco». Tomando
posse das terras e bens dos nativos, o «homem branco» assumia em contrapartida
o «fardo», o encargo de os civilizar. Durante o século XIX, os missionários
cristãos em África e nas ilhas do Pacífico forçaram várias tribos nativas a
mudar os seus padrões de comportamento. Chocados com a nudez pública, a
poligamia e o trabalho no Dia do Senhor, decidiram reformar de modo paternalista
o modo de vida dos «pagãos». Proibiram os homens de ter mais de uma mulher,
instituíram o sábado como dia de descanso e vestiram toda a gente. Estas
alterações culturais, impostas a pessoas que dificilmente compreendiam a nova
religião, mas que tinham de se submeter ao homem branco, revelaram-se em muitos
casos prejudiciais: criaram mal-estar social, desespero entre as mulheres e
orfandade entre as crianças.
Uma das
principais razões da popularidade do relativismo cultural é a ideia de que
promove a tolerância e o respeito pela diversidade cultural. Segundo o RC, cada cultura
vê a realidade com óculos de diferentes cores e nenhuma tem o direito de dizer
que a sua visão é a única apropriada. Quando se trata das crenças e práticas
morais de outras sociedades, devemos tentar usar os óculos que os membros
dessas culturas usam. Dizer que algumas práticas morais de certas culturas são
intrinsecamente erradas – erradas em si mesmas – é sinal de preconceito
cultural: julgamos que algumas culturas (normalmente a nossa) são, moralmente
falando, melhores e mais evoluídas do que outras. Os relativistas argumentam
que tal atitude é etnocêntrica. O etnocentrismo é a atitude que consiste em
julgar os padrões culturais de outras sociedades tendo como termo de comparação
os nossos. Frequentemente esta atitude conduziu a concluir que a nossa cultura
é superior às outras e a forçar os que eram considerados moralmente inferiores
a mudarem as suas crenças e práticas.
Quem é quem para julgar o
que é correto e errado? O que nos dá o direito de dizer que as crenças e
práticas de outras culturas são erradas simplesmente porque diferem das nossas? Não é presunção e arrogância pensar assim? Por que razão não adoptar o
princípio Viver
e deixar viver e repeitar todos
os costumes e tradições? Não mostrou a história da humanidade que quando uma
dada cultura quiz ser autoridade moral para outras daí resultaram abusos,
guerras, extermínios, exploração e perseguições? O relativismo cultural, ao
defender que o moralmente correcto é aquilo que cada sociedade define e aprova
como moralmente correcto, parece ser a teoria que mais adequadamente defende a
virtude da tolerância e o diálogo entre culturas.
O RELATIVISMO
CULTURAL
|
1.O relativismo cultural
defende que é moralmente correto o que uma sociedade (a maioria dos seus
membros) pensa e acredita ser moralmente correto. Se numa
sociedade o infanticídio for considerado um mal, isso não significa que o
infanticídio seja em si mesmo errado; significa apenas que há nessa sociedade
uma maioria de pessoas que o desaprova.
2.Se um dado juízo moral é
aceite pelas generalidade dos membros de uma sociedade isso é suficiente para
que ele seja verdadeiro. Não interessa o que sociedades com modos de
pensar e de sentir diferentes possam julgar. A cada sociedade a sua verdade. Nenhuma sociedade dá “lições de moral”
a outra. Moralmente verdadeiro é o que cada sociedade considera moralmente
verdadeiro. Há tantas verdades quantas as diferentes convicções e crenças
morais de sociedade para sociedade.
3. Não há juízos morais
aceites por todas as sociedades (sejam eles quais
forem há sociedades que os rejeitam e outras que os aceitam). Não há juízos morais objetivos e
universais. No relativismo moral não há verdades absolutas, pois tudo é relativo ao
ponto de vista de cada sociedade. As verdades morais são relativas porque
apenas reflectem o que a maioria das pessoas aprova em cada sociedade.
4. O relativismo cultural implica que nenhum código de
conduta está realmente certo e nenhum está realmente errado. Tudo
depende da maneira de sentir e pensar de cada sociedade. As noções de
certo e de errado teriam apenas aplicação no interior das fronteiras de cada
cultura, não tendo qualquer validade fora delas. Ao rejeitar o infanticídio, a poligamia ou a
poliandria, por exemplo, a nossa cultura não estaria mais próxima da verdade
que as sociedades onde estes padrões de cultura se aplicam. Tal como
conduzimos à esquerda ou à direita segundo as convenções de cada país, nada
há na natureza do infanticídio, por exemplo, que obrigue a considerá-lo um
mal. Tudo depende das convenções de cada sociedade.
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CRÍTICAS AO
RELATIVISMO CULTURAL
1.Crítica
ao “Argumento da Discórdia”.
Recordemos
o argumento:
Premissa – Diversas culturas dão diferentes respostas às mesmas questões morais.
Conclusão – Logo, não há nenhuma resposta objetivamente verdadeira a essas questões
(não há verdades morais universais)
Será que do facto de não haver acordo se segue que não existe nenhuma
verdade objetiva?
Recorramos ao método do contra-exemplo, ou seja, tentemos encontrar um
argumento da mesma forma em que a premissa seja verdadeira e a conclusão falsa.
Ei-lo:
Premissa – Diversas culturas discordaram quanto à
forma da Terra (umas pensaram que era esférica, outras plana, outras esférica
mas um pouco achatada).
Conclusão – Não há nenhuma verdade objetiva acerca da
forma da Terra.
A premissa é verdadeira, mas a conclusão é falsa (sabemos que a Terra é
redonda). Logo, o argumento não é bom. A premissa não apoia logicamente a
conclusão.
O que prova este contra-exemplo? Que o argumento mais frequentemente
apresentado em defesa do RC não é válido. Qualquer argumento com esta forma é
inválido. Provámos que há verdades morais objetivas? Não. Mas provámos que a
principal razão para acreditar no RMC não é uma boa razão.
A conclusão Não há nenhuma resposta
objetivamente verdadeira a questões morais (não há verdades morais universais,
aceites por todos os povos e culturas) é
mal justificada. O relativismo cultural transforma a diversidade de opiniões e
de crenças morais em ausência de verdades objetivas. Se duas sociedades têm
diferentes crenças acerca de uma questão moral, o relativista conclui que então
ambas as crenças são verdadeiras. Os
adversários do RC objetam que a conclusão não deriva necessariamente da
premissa porque essa discórdia pode ser sinal de que uma sociedade está certa e
de que a outra está errada.
2.Crítica
ao “Argumento da Tolerância”.
Para o RC cada cultura tem a sua própria perspetiva sobre o que é moral-
mente certo ou errado. Nenhuma cultura é autoridade incontestável em assuntos
morais. Uma vez que não temos um critério objetivo para provar que algumas
perspectivas são melhores do que outras, devemos tratá-las como sendo
igualmente corretas. Nenhuma cultura age mal. Age de acordo com os seus
padrões. A tolerância significa, para o relativista, que temos de aceitar o que
os membros de outras culturas pensam e fazem sem tentar persuadi-los a mudar.
Mas isto parece extremamente contestável.
Da proposição «Não há verdades morais objetivas e
universais» não se segue que não haja práticas e crenças morais erradas. Não há qualquer ligação
necessária entre «Não há verdades universais» (ou «Nenhuma cultura é
proprietária exclusiva da verdade») e «Nenhuma cultura está errada».
A divergência de conceções morais entre as sociedades não implica que
todas essas conceções são equivalentes. Pode acontecer que acerca de certas
questões algumas sociedades estejam erradas. Afinal porque levámos os Nazis a tribunal em Nuremberga no final da
Segunda Guerra Mundial? Porque impomos sanções económicas a ditadores que
torturam os seus opositores? Por que razão a comunidade internacional exerce
pressão sobre países que condenam alguns dos seus cidadãos a punições cruéis e
desproporcionadas em relação às infrações supostamente cometidas?
Ser tolerante implica
aceitar todos os costumes e práticas ou só aquelas que não são criminosas,
injustas e fazem sofrer desnecessariamente as pessoas?
Mais um aspeto importante: o relativismo moral pode
legitimar (sem o querer) a intolerância.
O RC afirma que aquilo que uma sociedade pensa ser moralmente corre- to
é moralmente correto para ela e que não temos legitimidade para a dizer que
está errada. Imaginemos que, como já aconteceu, uma determinada cultura julga
ser seu dever «civilizar» outros povos porque considera os seus costumes
imorais e inadmissíveis. Se moralmente
correcto é igual a cultural e socialmente aprovado, então essa atitude
intolerante é moralmente correta.
Temos de tolerar, por exemplo, que em certos países
não haja liberdade de culto para certos grupos religiosos, que as mulheres
tenham menos direitos do que os homens ou que certos grupos de indivíduos sejam
discriminados como intocáveis só porque “em Roma temos de ser romanos”? Não será isto tolerar a intolerância? A ideia de tolerância universal é incoerente.
3. Embora negue que haja valores e normas morais
universais, o RC transforma a tolerância num valor universal.
Não há normas morais universais é o credo relativista. Mas
se não há normas morais universais também não há deveres morais universais.
Ora, ao dizer que todos devemos ser tolerantes e respeitar as diferenças
culturais, o relativismo contradiz-se.
4. O RC reduz a verdade ao que a maioria
julga ser verdadeiro.
Para o RC quando falamos do código moral ou das crenças morais de uma
sociedade, estamos a falar das crenças da maioria dos seus membros, da
mentalidade dominante. Logo, se de acordo com o RC é moralmente correcto o que
é aprovado pela sociedade, então é moralmente correcto o que a maioria
considera moralmente correcto. É muito discutível que uma crença moral seja
verdadeira porque a maioria a partilha. Vários exemplos históricos como o Nazismo
e o Apartheid provam que muitas vezes as crenças da maioria são
moralmente erradas e perniciosas.
O RC parece convidar-nos ao conformismo moral, a seguir, em nome da
coesão social, as crenças dominantes. O conformismo não parece ser uma atitude
moralmente desejável. Impede a reforma e melhoria moral de uma sociedade. Frequentemente
transforma-se em obediência cega.
5. O relativismo moral parece implicar que a
ação dos reformadores morais é sempre incorreta.
O que é um reformador
moral? Uma pessoa que tenta alterar significativa-
mente o modo de pensar, de agir e de sentir de uma dada sociedade porque o
considera moralmente errado nalguns aspetos importantes. Martin Luther King
tentou por via pacífica chamar a atenção para as deficiências morais de um
código moral e jurídico que no sul dos EUA considerava moralmente aceitável que
os negros fossem tratados como cidadãos de segunda classe. O mesmo fez Nelson
Mandela na África do Sul. Como, segundo o relativismo, as crenças da maioria
dos membros de uma sociedade são a verdade em matéria moral, como aquilo que é
socialmente aprovado (o que significa aprovado pela generalidade dos membros de
uma sociedade) é verdadeiro e deve ser seguido, então King comportou-se de
forma moralmente errada. Uma teoria que
implicitamente considera que reformadores morais como Moisés, Jesus Cristo,
Mandela e Luther King agiram de forma imoral, parece no mínimo estranha.
6. O relativismo moral torna incompreensível
o progresso moral.
Se aceitarmos o R.C., podemos falar de melhoria ou de progresso moral
das sociedades humanas? Parece que não. O RC não admite que acima de toda e
qualquer sociedade haja padrões morais objetivos que permitam julgá-las. As
sociedades que aboliram a escravatura, reconheceram o direito ao voto das
mulheres, condenaram a discriminação racial, etc, são vistas como tendo
melhorado e progredido no plano moral. Isso implica reconhecer que as
sociedades que aprovavam aquelas práticas estavam erradas. Mas para o RC nenhuma
sociedade esteve ou está errada nas suas crenças e práticas morais. Por isso,
em vez de melhoria ou de progresso, o RC defenderia que as sociedades
simplesmente mudaram. Tudo o que podemos dizer é que houve tempos em que a
escravatura era moralmente aceitável e que agora já não é aceite.
7.Partindo do
facto de que há discórdia entre as várias sociedades acerca do que é moralmente
certo ou errado, o RC acaba por tornar impossível um real debate moral entre
sociedades ou entre membros de sociedades diferentes.
Imagine que, na sociedade X, é prática moralmente aceitável que as
crianças brinquem com gatos até os matarem. A cultura da sociedade a que
pertence condena essa prática considerando-a cruel. Essa crença exprime-se
através deste juízo: «O comportamento das crianças da sociedade X é
moralmente errado». Segundo o RC este juízo está mal formulado. Deve antes
dizer-se: «Segundo as crenças morais da sociedade a que pertenço, o
comportamento das crianças da sociedade X é errado». A este juízo, um membro
da sociedade X reponderia: «Segundo as nossas crenças morais, o
comportamento das nossas crianças não é moralmente errado». Para o
relativista não podemos dizer que os membros da sociedade X estão errados, ou
seja, que a ação das crianças é errada em si mesma. É errada segundo os nossos
padrões, mas não é errada segundo os seus padrões. As duas proposições não se
contradizem, não são incompatíveis. Não há, nesta perspetiva, práticas morais
em si mesmas erradas. Se considerarmos que o relativismo moral é correcto,
ninguém pode provar que sociedade tem razão numa disputa moral. Não podemos
dizer que uma delas está objetivamente errada e a outra certa.
8. Não temos só os
direitos que a cultura (modos de pensar e de agir) da sociedade a que
pertencemos nos atribui.
A Declaração universal dos Direitos Humanos defende
que não temos só os direitos que a cultura a que pertencemos nos concede. Parece que defender os direitos humanos implica
negar o relativismo cultural, ou seja, afirmar que, em alguns casos, tem cabimento
a ideia de que “nós estamos certos e eles errados”.
O problema da verdade e da
objetividade dos juízos de valor
|
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Os juízos de valor morais têm
valor de verdade?
Se têm valor de verdade, essa
verdade é objetiva, ou seja, não depende dos
sentimentos dos indivíduos ou
do modo de pensar da sociedade em que vivem?
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Várias respostas ao problema
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O Relativismo Cultural
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O Subjetivismo Moral
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O Objetivismo Moral
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Tese
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O RC
afirma que todos os juízos de valor são culturalmente relativos, pois são relativos
às sociedades e não existe nenhuma sociedade mais correta ou errada que
outra.
Exemplificando: afirmar que “Roubar é errado” significa dizer “A sociedade X considera que roubar é
moralmente incorreto”.
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O SM defende que todos os juízos de valor
são subjetivos, pois são reflexos dos gostos e preferências de cada pessoa. Um aspeto crucial do SM é o de que os juízos morais, quando
interpretados como sinceras descrições de sentimentos, são sempre
verdadeiros.
Exemplificando: dizer “Roubar é errado” significa “Eu desaprovo o roubo”.
|
O OM
defende que os juízos de valor são objetivamente verdadeiros ou falsos.
Exemplificando: um dos juízos “Roubar é errado” e “Roubar é
correto” é falso.
|
Argumentos
|
1.A moral não é uma questão de
gosto pessoal mas de aprovação social. Só isto evita uma completa anarquia
moral.
2.Só condenamos um comportamento
por estarmos habituados a viver numa sociedade que o reprova. Se vivêssemos
numa sociedade que o aprovasse não o condenaríamos.
3.Dado que há discórdia entre as
diversas sociedades sobre o que é moralmente reprovável ou aceitável, não há
juízos morais cuja verdade seja indiscutível, ou seja, objetivos e
universais. Por si próprio, fora de um dado contexto cultural nenhuma
prática, (hábito ou costume) é boa ou má.
4.O relativismo cultural promove a
coesão social, fundamental para que as sociedades sobrevivam e evitem a
confusão quanto ao certo e ao errado. Essa coesão implica que consideremos
correto o que a maioria aprova.
5.O relativismo cultural afirma
que os costumes e hábitos de uma dada sociedade só podem ser avaliados pelos
critérios dessa própria sociedade. Não há critérios morais transculturais.
Assim, nenhuma sociedade pode julgar-se superior a outra nem tem o direito de
impor os seus padrões morais a outra. Devemos aceitar mesmo as práticas de
que discordamos profundamente.
Assim, o relativismo promove a
tolerância e previne os malefícios do etnocentrismo.
|
1.Dado que há discórdia entre os
seres humanos sobre o que é moralmente reprovável ou aceitável, não há juízos
morais cuja verdade seja indiscutível, ou seja, objetivos e universais.
2.Assim sendo, não há razão
objetiva para me submeter às opiniões dos outros nem da sociedade a que
pertenço. Devo
seguir os meus sentimentos de aprovação ou de reprovação no que respeita a
assuntos morais.
3.O subjetivismo moral promove a
liberdade e a autonomia morais.
Só somos livres quando pensamos e agimos segundo as nossas
convicções e crenças.
4.O subjetivismo moral promove a
tolerância entre indivíduos com convicções morais divergentes.
Os meus sentimentos morais não são melhores nem piores do que os
dos outros.
|
1.O
subjetivismo moral e o relativismo cultural conduzem a consequências que são
difíceis de aceitar.
1.1. Se é verdade que nenhuma norma moral vale para todas as pessoas em
todos os tempos e lugares, então juízos de elementar bom senso como “Mandela é moralmente superior a Hitler”, “Violar
mulheres é errado” e “É inadmissível que se torturem pessoas só por
divertimento” podem ser negados.
1.2. Dizer que nenhuma sociedade ou nenhum indivíduo estão errados no
que respeita a questões morais levanta a questão de saber com que direito
julgámos os atos dos Nazis como crimes contra a humanidade. Afinal não estavam
a seguir as convenções morais da sociedade em que viviam? Se o assassinnio
não for objetiva e universalmente errado, não podemos dizer que os Nazis
agiram erradamente.
2.Diferentes práticas morais e diversas convicções morais não
implicam que não haja juízos morais objetivos. Os partidários do aborto e os
seus adversários discordam quanto ao facto de o aborto ser uma forma de
assassinio. Mas concordam em que o assassínio é
moralmente errado.
|
Objeções
|
1.Do desacordo cultural sobre
questões morais não deriva necessariamente que não haja verdades morais
objetivas.
2. Há algumas regras morais
que todas as sociedades têm em comum, pois essas regras são necessárias para
a sociedade poder existir.
3. O relativismo cultural pode conduzir à aprovação da
intolerância.
4. É muito discutível que devamos
considerar aceitável todo e qualquer comportamento que seja considerado
aceitável numa determinada sociedade.
5. Moralmente
correto não pode ser sinónimo de aprovado pela maioria dos membros de uma
sociedade porque muitas vezes a maioria engana-se ou não tem razão.
|
1.O subjetivismo
moral permite que qualquer juízo moral seja verdadeiro.
2.Se aceitarmos o subjetivismo moral, a educação
moral consistirá em ensinar cada um a seguir os seus sentimentos. Ora, será correto seguir sentimentos malignos e perversos?
3.Embora, se baseie na existência de divergências
sobre questões morais para negar que haja juízos morais objetivos, o subjetivismo
não consegue explicar a existência de desacordos morais.
|
1.Sobre questões morais só há
opiniões e pontos de vista. Os juízos de valor morais variam de indivíduo
para indivíduo e de sociedade para sociedade.
2.Os que falam da necessidade de
existirem juízos morais objetivos e universais estão, de uma forma mal
disfarçada, a querer impor os seus pontos de vista aos outros.
|
PARTE
2
O
PROBLEMA DO DIÁLOGO ENTRE CULTURAS
Formulação
do problema
Falámos de diversidade cultural, de diferentes
práticas e conceções do que é moralmente correto ou incorreto. Cada sociedade
tem diferentes padrões culturais (diversas formas de pensar, de sentir e de
agir). Nalguns casos as diferenças não são significativas. Noutros casos, são
profundas. Acresce que cada cultura
defende com muito zelo a sua autonomia e independência. É o chamado direito á
diferença. Neste sentido, há quem defenda convictamente a noção de direitos
culturais.
Mas também existem direitos individuais. Estes estão consagrados
na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Caraterísticas dos Direitos humanos
|
1.São direitos que um
indivíduo possui pelo simples facto de ser humano.
2.
São
inerentes à pessoa, têm o seu fundamento na dignidade de cada ser humano. Por isso, são universais, válidos para toda a pessoa,
independentemente da sua condição socioeconómica, religião, etnia,
nacionalidade, «raça» e sexo.
3. São exigências éticas («direitos morais»)
porque representam valores que devem ser respeitados por todos os seres
humanos e garantidos pelas leis e pelos governos de todos os países. Os
direitos morais são direitos que as pessoas possuem só por serem pessoas e
não por serem cidadãos deste ou daquele Estado ou membros desta ou daquele
cultura.
4. Nenhum poder político nem nenhuma sociedade pode retirar-nos (ou
dar-nos) esses direitos porque a dignidade
humana que é o seu fundamento é algo que temos por sermos pessoas e não algo
que depende da vontade de quem faz as leis ou estabelece os costumes.
5. São direitos
individuais transculturais, que ultrapassam as fronteiras de cada sociedade,
permitindo julgar se as suas práticas são ou não legítimas.
|
Reconhece-se que uma dada sociedade tem
direito a conservar as suas tradições, práticas e costumes. Reconhece-se,
mediante a declaração de que há direitos humanos, que cada indivíduo pode legítima ou
justificadamente reivindicar que os seus direitos humanos sejam reconhecidos em
todo e qualquer contexto cultural.
Temos, contudo, de admitir que é muito problemático conciliar direitos
culturais e direitos individuais.
Um caso de
estudo.
Para ilustrar esta dificuldade estudaremos uma prática
ou costume que é uma tradição em algumas regiões do Irão – sobretudo em meios
rurais. Trata-se do apedrejamento de mulheres acusadas de
adultério.
O apedrejamento é uma forma de execução levada a cabo
por um grupo de pessoas que, em muitos casos, podem não ser representantes do
Estado. Consiste em apedrejar em uma pessoa até que ela morra. Há 15 países em que o apedrejamento é autorizado por lei: Irão,
Mauritânia, Nigéria (em um terço dos estados do país), Paquistão, Qatar, Arábia
Saudita, Somália, Sudão, Emirados Árabes Unidos e Iémen. Mas mesmo países em
que não é legalmente permitindo, acontecem casos de apedrejamento que não são
legalmente punidos.
O apedrejamento é usado como um castigo para o
adultério. É um método usado para controlar a sexualidade e os corpos de homens
e mulheres, mas as mulheres são frequentemente as vítimas. A questão do
apedrejamento ocorre no interior do contexto mais ampla da discriminação de
género e da violência culturalmente enraizada contra as mulheres.
Em 2008,
Aisha Ibrahim Duhulow, uma menina de 13 anos de idade, foi enterrada até ao
pescoço e apedrejada por 50 homens na frente de 1.000 pessoas num estádio de
futebol no sul da Somália. A Amnistia Internacional relatou que o seu pai disse
que ela tinha sido estuprada por três homens, mas foi acusada de adultério
quando tentou denunciar o estupro à milícia Al-Shabaab que controlava a cidade.
Nos últimos tempos, a organização Mulheres Vivendo sob as Leis Muçulmanas está recolher assinaturas para denunciar o
apedrejamento como uma das formas mais brutais de violência contra as mulheres.
Pretendem que o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon e o Alto Comissário da ONU
para os direitos humanos, tomem medidas enérgicas contra essa prática e a
condenem.
Em 2002, o então Chefe do
Supremo Tribunal Judicial no Irão, o ayatollah Mahmoud Hashemi-Shahroudi,
ordenou a suspensão das execuções por apedrejamento. Mas as leis que
autorizavam o apedrejamento nunca foram retiradas do código penal. Como no Irão
todos os juízes são obrigados a cumprir a lei, as sentenças de apedrejamento
continuam.
O livro La Femme
Lapidée (1990) foi censurado no Irão, mas a história real de Soraya
Manutchehri percorreu o mundo como uma denúncia destas e de outras atrocidades
similares contra as mulheres. Deu origem a um filme intitulado O Apedrejamento de Soraya M.
Estamos no ano de 1986, no poeirento e desolado vilarejo de
Kuhbpayeh, no coração do Irão onde o jornalista franco-iraniano Freidoune
Sahebjam (que na vida real é o autor do livro que deu origem ao filme),
para acidentalmente procurando encontrar alguém que conserte o seu carro.
Então, inesperadamente, é descoberto por Zahra, uma mulher que é
considerada louca pelos homens do vilarejo, por insistir que aquele lugar e os
seus habitantes escondem um segredo nefasto. Através de um bilhete, Zahra
combina um encontro secreto com o jornalista em sua casa. Aí começa a narrar os
acontecimentos pedindo que Freidoune registe tudo no seu gravador
para que o resto do mundo saiba o que se passou no dia anterior.
A dedicada e fiel Soraya (sobrinha de Zahra) era casada com Ali,
um homem violento e machista, que através de um pacto com um mulá
de passado duvidoso tenta convencer a esposa a conceder-lhe o
divórcio para que ele possa se casar com Malaka, uma moça de 14 anos de
idade. O motivo: o pai da menina condenado à morte por crime, havia prometido a
Ali que lhe daria a sua filha em casamento se este conseguisse livrá-lo da
sentença.
FICHA DE TRABALHO
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1.Encontre
no filme exemplos de diversidade cultural, ou seja, de práticas e crenças
diferentes daquelas próprias da sociedade em que vive.
2. Segundo o relativismo cultural há princípios éticos universais?
Porquê?
3. Segundo o relativismo cultural há ações erradas em si mesmas,
objectivamente erradas? Justifique.
4. Negar que acerca de questões morais haja verdades objectivas é pelo
relativista cultural visto como uma vantagem. Porquê?
5. Que direitos fundamentais foram violados no caso de Soraya?
6.Em nome dos direitos humanos, reconhecemos que Soraya tem um
conjunto de direitos que não devem em circunstância alguma ser violados. Na perspectiva relativista, basta uma
sociedade instituir como “normal” um certo conjunto de práticas para que
tenhamos de as respeitar porque é intolerante e ilegítimo julgar tradições e
normas de comportamento culturalmente de outras culturas. Estas duas posições
são conciliáveis?
7. Muitas pessoas dirão que ao assistir ao
Caso Soraya temos razões suficientes para rejeitar a ideia de que o
relativismo cultural promove o diálogo entre culturas. Esta ideia é correta?
8. Tente argumentar a favor da seguinte tese: “É inaceitável que
alguém que uma pessoa seja apedrejada até à morte”.
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Como Soraya recusa dar o divórcio, o mulá propõe-lhe um
casamento temporário (um tipo de união considerado por muitos como uma
afronta), prometendo ajuda financeira a Soraya e às suas duas filhas. Na
verdade Soraya tem quatro filhos, dois meninos, que são instigados
pelo pai a rejeitá-la, e duas meninas que são praticamente
negligenciadas. Durante o filme, Ali dá mostras do seu caráter torpe
espancando Soraya, pelos motivos mais ínfimos, como uma louça quebrada e
comparando-a negativamente com a pretendente mais jovem. Não bastante,
exibe-se num carro desportivo acompanhado de outras mulheres, enquanto recusa
dar o dinheiro para a esposa comprar comida para os filhos.
Um dos seus vizinhos, o mecânico Hashem, fica viúvo.
Aproveitando o facto, o mulá, o juiz do vilarejo e Ali tentam convencer
Soraya a trabalhar na casa do viúvo, ajudando - o a cuidar do seu filho que
perdeu a mãe. Trata – se de uma armadilha. Este novo trabalho da esposa, é
para Ali a oportunidade ideal para acusá-la de ser adúltera e assim conseguir
livrar - se dela da maneira mais cruel possível: a morte por apedrejamento. E o
seu mau caráter vai além, afirmando que se Soraya morrer não terá de lhe
pagar nenhuma pensão. A primeira pessoa a
aperceber - se do terrível objetivo de Ali e seus acólitos é justamente
Zahra, que começa a ouvir os mexericos sobre a suposta infidelidade
da sua sobrinha.
Ali, que já conta com o mulá e o juiz da aldeia, só precisa de
mais uma falsa-testemunha para incriminar Soraya. Como não tem ninguém a quem
recorrer, usa as mais cínicas ameaças e coerções para convencer o viúvo Hashem
a contar uma mentira: que ao trabalhar em sua casa Soraya, também se teria
envolvido em relações sexuais com ele.
Com esta acusação, Ali tem tudo para arrastar a indefesa Soraya
pelas ruas com socos e pontapés. Mas a corajosa tia Zahra consegue tirá-la das
mãos do marido e levá-la para sua casa. Enquanto se prepara o julgamento
forjado com as falsas testemunhas, Zahra tenta encontrar uma forma de fugir com
Soraya. Mas do vilarejo, cercado por todos os lados é impossível fugir.
Zahra insiste até ao último momento em provar a inocência de
Soraya, e está disposta até mesmo a morrer em seu lugar.
Mas condenação é inevitável e o cenário do apedrejamento é montado.
Todos os vizinhos estão presentes - inclusive o pai de Soraya que foi
manipulado e convencido a repudiá-a. Será ele
a atirar a primeira pedra. A “intervenção divina”, parece provar a
inocência de Soraya quando ele erra três vezes seguidas o alvo das pedras.
Então, Ali decide entrar em ação e acertar as primeiras pedradas. Obrigando os
seus dois filhos a fazerem o mesmo. Cada pedrada parece revelar o verdadeiro
sentimento das pessoas presentes no cruel espetáculo, enquanto a inocente
Soraya enterrada até a cintura, vestida de branco como um anjo, tem suas vestes
tingidas de vermelho pelo sangue e agoniza até a morte.
A
reação da esmagadora maioria das pessoas que assistiram ao filme ou leram o
livro, foi de repugnância. Condenaram esta prática como bárbara injusta, e terrivelmente
desumana. Mas a reação, embora possa ser acompanhada por sentimentos
compreensíveis, deve ser argumentada. Ou
seja, temos de encontrar critérios racionais que nos permitam denunciar a imoralidade deste costume.
Muitas pessoas ao condenarem o
apedrejamento como punição para o adultério afirmam que aquele viola direitos
humanos fundamentais. Vejamos então que
direitos humanos foram violados no caso de Soraya M. Para isso, destaquemos
da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, alguns artigos:
A
condição inferior de Soraya, simplesmente, por ser mulher, chama, desde logo, a
nossa atenção. Nesse
aspeto, partilha o mesmo destino de todas as mulheres, jovens ou não, da sua
comunidade. As mulheres não têm acesso a nenhum cargo de decisão, a sua vida é
governada pela vontade arbitrária dos homens. A inferioridade é tal que, no
caso do divórcio entre Ali e Soraya, só a guarda dos rapazes a este interessa.
Que uma moça de catorze anos possa ser oferecida em casamento para pagar um
favor feito ao pai é mais uma ilustração dessa condição subalterna. São os
homens que julgam, são os homens que decidem. Essa condição inferior,
culturalmente estabelecida, explica em parte a desgraça que a aguarda.
O
direito à vida é-lhe negado devido a um eventual adultério. Sabemos pelo filme que não houve adultério. Mas
suponhamos que Soraya foi adúltera. Em primeiro lugar, é legítimo perguntar se
é correto haver um castigo para esse ato. Em segundo lugar, não podemos deixar
de pensar que há uma enorme desproporção entre o ato e a sua punição.
Em
suma, Soraya é injustamente submetida a um castigo que se traduz num tratamento
indigno, desumano e cruel.
Problematização
Será a ideia de direitos humanos universais uma plataforma adequada para
o diálogo entre culturas?
Vimos que a ideia de direitos humanos universais
(transculturais) nos serviu como instrumento para avaliar uma dada prática ou tradição culturalmente enraizada. O
veredicto foi negativo: o apedrejamento de pessoas adúlteras é uma prática
desumana.
Pensa-se
que a Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser uma boa base para
promover o diálogo e o eventual entendimento entre sociedades com padrões
culturais diferentes.
Contudo, há quem julgue que isto não é verdade. O seu argumento baseia-se no
facto de a ideia de direitos humanos universais ser uma ideia que teve a sua
origem no Ocidente, sobretudo na Europa. Ora, sob a capa de proteção dos
direitos dos indivíduos de diversas culturas, não estaremos a assistir a um
renascimento do imperialismo dos países ocidentais (imperialismo já não militar
mas sim moral)? Esta objeção contra a suposta tendência de o Ocidente querer
impor os seus juízos morais ao resto do mundo é protagonizada pelos defensores
do relativismo cultural.
Sabemos que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos inclui o reconhecimento do direito de cada sociedade à preservação e
desenvolvimento da sua identidade cultural, ideia tão cara ao relativismo
cultural. Mas ler a Declaração com
atenção permite concluir que os direitos culturais não podem ser ilimitados. Assim,
apesar de ter sido praticada por muitas sociedades ao longo da história, a escravatura será sempre inaceitável. Nenhuma
sociedade tem o direito de invocar um legado histórico para a reintroduzir. O
respeito pelas diferenças culturais não é compatível com a negação da liberdade
de expressão e da liberdade religiosa. Assim, a Arábia Saudita viola os direitos humanos quando
proíbe erguer locais de culto de religiões que não a muçulmana. Na
mesma sociedade e seguindo uma norma fundamental da religião muçulmana, as
pessoas não têm direito a mudar de religião se nascem numa família muçulmana. Os
muçulmanos aceitam conversões à sua religião, mas um muçulmano não pode converter-se
a outra – isto seria apostasia, punida com a morte.
O diálogo
entre culturas exige que se esteja à altura de um desafio complicado:
que cada cultura ou sociedade tenha capacidade de autocrí- tica e
discernimento. Isto implica:
a) Que saiba
entender que quando se critica um determinado costume não se está a rejeitar
todos os padrões culturais de uma sociedade.
b) Que
compreenda que todas as sociedades são uma misturas de boas e más práticas
culturais.
c) Que por
isso mesmo podem evoluir e mudar para melhor.
Apesar de ter surgido no Ocidente, a doutrina dos
direitos humanos está a espalhar-se a nível planetário. Isto pode ser medido
não somente pela assinatura dos documentos internacionais por parte de quase
todos os governos do Mundo, mas igualmente pelo surgimento de movimentos não
governamentais de promoção dos direitos humanos – sobretudo em países que os
violam flagrantemente – que constitui quase que uma «sociedade civil»
organizada à escala mundial.
Independentemente
de ser ou não uma boa base de entendimento entre as diversas culturas, a ideia de direitos humanos universais
tem as seguintes vantagens geralmente reconhecidas:
1. É uma forma de negar que os valores e normas de uma determinada
cultura sejam absolutos e intocáveis.
Servem para afirmar que há valores, como o respeito pela vida e pela
integridade física das pessoas, que estão acima de qualquer costume cultural.
2. É uma forma de salientar que não temos somente os direitos que as
nossas sociedades e culturas nos concedem.
Esta ideia impede que sejam legítimas quaisquer práticas, mesmo que
aprovadas pela maioria dos membros de uma comunidade. Essa cultura ou
sociedade tem acerca de cada indivíduo deveres fundamentais como o respeito
pela vida, pela integridade física, pela diversidade étnica, por diferentes
opções religiosas, etc. Defende a liberdade e declara-se contra a repressão e
a dominação.
3. Uma
forma de salientar que a cultura no sentido próprio da palavra é um fator
humanizador.
Por isso mesmo, se determinada prática cultural degradar o ser humano
aproximando-o da condição de objeto ou de coisa, menos legítima enquanto
verdadeira «cultura» tal prática será. É com base nisso que a escravatura e a
tortura, por exemplo, não podem ser concebidas como práticas culturais
legítimas.
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A
dificuldade que várias sociedades mostram em aceitar a ideia de direitos
humanos universais e a dificuldade de um diálogo produtivo, têm a ver com
vários fatores:
1.Suspeitam que esta ideia pode ser um “cavalo de
Tróia” que os países ocidentais usariam para impor as suas convicções sobre o
que é certo ou errado.
2. Essa ideia é muito recente, ao passo que os
costumes e práticas que eventualmente possam estar em conflito com ela têm uma
longa tradição. E, como se sabe, as tradições têm muito peso.
Uma coisa parece evidente: a dor de uma mulher que é física e
psicologicamente agredida pelo seu marido não é menor só porque uma dada
comunidade a aprova, a humilhação de ser considerada objeto usado por já não
ser virgem também não. A impossibilidade de escolher com quem casar, o medo de
criticar livros e figuras que são considerados sagrados, não são simples
diferenças culturais: são formas de submissão, de desvalorização da pessoa
humana. Em nome da diferença e da independência das culturas não podem
aceitar-se práticas desumanas.
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