terça-feira, 12 de julho de 2011

NIETZSCHE E O NAZISMO


NIETZSCHE E O NAZISMO
Em 4 de Novembro de 1933 o jornal francês Le Temps (antepassado do Le Monde) publicava a seguinte notícia:
«Antes de abandonar a cidade de Weimar para se dirigir a Essen, o chanceler Hitler visitou a senhora Elisabeth Foerster-Nietzsche, irmã do célebre filósofo falecido em 1900. A idosa senhora ofereceu-lhe um sabre que pertencera ao seu irmão e conduziu-o numa visita aos arquivos Nietzsche. Empunhando o sabre que fora de Nietzsche, Hitler caminhou por entre a multidão no meio de estridentes aclamações».
De um filósofo que afirmou, entre outras coisas, que todos os anti-semitas deviam receber ordem de fuzilamento, que chegava ao ponto de escrever. «Que benção é um judeu no meio de alemães», que manifestava a sua enorme admiração pelo povo judaico, que desprezava o militarismo alemão e se mantinha aristocraticamente distante dos movimentos de massas (como o viria a ser o nazismo), parecerá desconcertante saber que foi utilizado pela propaganda nazi.
 «A luta contra os judeus sempre foi o sinal de uma natureza baixa, invejosa e cobarde: aquele que nela participa hoje partilha em grande parte a mentalidade da populaça, da gentalha.»
[Citado em Eric Blondel, Nietzsche: Le cinquiême évangile? p. 39.]
«Os judeus são sem dúvida a raça mais vigorosa, a mais resistente, a mais pura que existe actualmente na Europa; sabem impor-se mesmo nas piores condições, e melhor do que nas melhores, graças a certas virtudes que agora se quereria transformar em vícios, graças sobretudo a uma fé obstinada que não tem que corar perante as 'ideias modernas'; quando se transformam, fazem-no, como o Império Russo nas suas conquistas, como um Império que não nasceu ontem e que tem todo o tempo à sua frente - isto é, 'o mais lentamente possível'. O pensador que se sente responsável pelo futuro da Europa deverá, nos planos que esboça para esse futuro, contar com os Judeus e os Russos como os dois factores mais seguros e mais prováveis desse grande jogo, do grande conflito de forças.»
[Nietzsche, Para além do Bem e do Mal, § 251.°]
Esta situação aparentemente absurda toma-se compreensível se soubermos que o pensamento de Nietzsche foi vítima de uma falsificação cuja autora foi a sua irmã. Elisabeth, de quem Nietzsche dizia ser uma razão suficiente para detestar viver, casara com um certo B. Foerster, teórico do anti-semitismo racista, e partilhava as ideias do marido. A partir de 1895, fase em que Nietzsche já estava afundado na loucura, Elisabeth adquirira todos os direitos sobre os manuscritos do irmão. Fabricou uma obra a que deu o nome de «Vontade de Poder» e, em função desse título, utilizou fragmentos dos cadernos escritos por Nietzsche. Escolheu uns, afastou outros e, além disso, tinha o perigoso hábito de guardar e conservar fragmentos que o irmão rejeitara ou riscara. Retirou muitas frases do seu contexto e fez crer que Nietzsche seria partidário do anti-semitismo racista. Ora, na verdade, o anti-semitismo de Nietzsche situa – se no plano religioso - ataca a moral da religião judaica, «moral de escravos».
Esta deplorável falsificação faz com que Nietzsche não seja responsável pela «Vontade de Poder», obra que curiosamente o tomou célebre e tanto assim é que, na recente edição das suas obras completas, ela não figura.
Contudo, se é verdade que Nietzsche foi vítima de uma falsificação, cabe perguntar se é uma vítima absolutamente inocente. Podemos supor que Nietzsche detestaria o nazismo e a ele se oporia se vivesse sob o regime hitleriano, mas não devemos omitir certos textos ou passagens da obra de Nietzsche - e não são assim tão poucos como isso - que, mesmo sem a intervenção da sua irmã, poderiam propiciar a sua utilização propagandística por parte dos nazis.
Encontramos em obras como Para Além do Bem e do Mal as seguintes afirmações:
«É preciso preparar grandes experiências colectivas de disciplina e de selecção», para lutar «contra a tendência democrática, forma degenerada de organização política, forma decadente e diminuída de humanidade».
Refere-se nessa obra à necessidade de chefes cuja missão seria a transmutação dos valores, a criação a golpes de martelo de corações duros e impiedosos. Tais palavras seriam melodiosas para quem, como Hitler, só lia e retinha o que lhe interessava ou, melhor dizendo, o que poderia reforçar as suas convicções. A feroz postura antidemocrática, a rejeição da democracia como «princípio de dissolução e de decadência», a valorização do guerreiro, da humanidade dita superior, atraíram a simpatia de quem, porventura, Nietzsche detestaria. E que pensar da atracção irresistível que os textos que se seguem porventura exerciam na actuação política do nacional-socialismo?
«Viver é essencialmente despojar, ferir, violentar o fraco e o estrangeiro, oprimi-lo, impor-lhe duramente as nossas próprias formas, assimilá-lo, ou pelo menos (é a solução mais doce) explorá-lo.»
Desprezando qualquer fraqueza sentimental, o instinto aristocrático e superior deve aceitar «sacrificar com um coração leve um grande número de pessoas que deverão ser, no seu próprio interesse, humilhadas e reduzidas ao estado de seres mutilados, de escravos, de instrumentos».

2 comentários:

  1. Texto bom! Faltaram só as referências das últimas citações.

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  2. Quando Nietzsche parece exaltar a aristocracia (os de 'rapina' como ele dizia) e desprezar a democracia, ele estava fazendo um recurso de 'reductio ad absurdum'. Ou seja, para ele, a moral de ressentimento dos escravos tirava a espontaneidade do homem para fazer exatamente com todo aquilo que eles rejeitavam: submissão, exploração e instrumentalização. Ou seja, era preferível ser dominado por um forte imoral que sabia-se rapinesco e se orgulhava disso, do que ser dominado por fraco moralista que faz a mesma coisa de forma dissimulada e irresistível.

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