CONCEITOS
FUNDAMENTAIS
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Genes
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Segmentos de ADN que estão armazenados nos cromossomas
do núcleo das células do organismo e que contêm as instruções para o seu
desenvolvimento e funcionamento.
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ADN, genes e
cromossomas
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Os cromossomas
são estruturas constituídas por genes – cada cromossoma tem mais de mil genes
– que se encontram no núcleo das células do organismo.
O ADN,
ingrediente bioquímico fundamental dos genes e dos cromossomas, é uma
complexa molécula que forma o código de toda a informação genética, ou seja,
dá instruções ao organismo sobre como se desenvolver e funcionar. Resumindo:
os genes são partículas de ADN – segmentos de ADN – que estão armazenadas nos
cromossomas do núcleo das células do nosso corpo.
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Células
estaminais
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As células estaminais são células com
capacidade para se transformarem e darem origem às células adultas que
constituem os tecidos e órgãos do nosso corpo. Possuem o potencial de se
tornarem células maduras com caraterísticas e funções especializadas, como,
por exemplo, células nervosas, células cardíacas, células da pele, do sangue,
do osso e da cartilagem
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Manipulação
genética
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Conjunto de técnicas que, a partir do conhecimento das
caraterísticas genéticas dos seres vivos e do desenvolvimento da tecnologia,
tem permitido a manipulação de genes no ser humano. Ex.:
‒ Reconstituição dos tecidos e
dos órgãos humanos com base em células embrionárias (permite salvar vidas e
evitar a rejeição de implantes);
‒ Planeamento familiar através da
fecundação in vitro e diagnóstico
pré-natal;
‒ OGM (organismo geneticamente
modificado): é inserido num organismo um gene específico, para que esse
organismo obtenha a caraterística específica;
‒ Clonagem: processo de obtenção de indivíduos
geneticamente semelhantes.
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Manipulação
genética primária e secundária
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Os
cientistas distinguem entre manipulação genética primária e secundária.
Esta última visa corrigir durante a vida intrauterina determinadas
anormalidades genéticas, sendo útil para prevenir doenças futuras. Esta
manipulação genética tem o nome de «terapia genética». Não modificar o
património genético ou hereditário do indivíduo que é tratado. Não incide nas células germinais ‒ as células
da reprodução (espermatozoides
ou óvulos) ‒, aquelas que transmitem a
hereditariedade.
A manipulação genética primária visaria
produzir seres humanos mais perfeitos (mais saudáveis)
nas futuras gerações, intervindo no processo de reprodução.
Nesta perspetiva, modificar-se-ia o património genético de um indivíduo.
Alguns cientistas nos EUA consideram prematuro fechar a porta à terapia
génica germinal, uma vez que
consideram que esta não só permitiria eliminar doenças num indivíduo como em toda a sua descendência. Só assim se interromperia a transmissão
genética de doenças graves ‒ estabelecendo um horizonte de saúde para todos.
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FIV
Fertilização in vitro
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Método de
tratamento da infertilidade que ocorre em parte for a do corpo, num
recipiente de vidro a que se convencionou chamar proveta. Em ambiente
laboratorialmente controlado, um óvulo recolhido aquando da ovulação é
fecundado por um espermatozoide – obtido após colheita de esperma ‒ no
referido recipiente. Procuram obter-se embriões de qualidade que serão depois
transferidos para o útero.
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1
Terapia ou
aperfeiçoamento?
«Suponha que
dentro em breve vai ter um filho, e que sabe que há medidas simples que pode
tomar para se certificar de que ele será saudável. Suponha, em particular, que,
se seguir o conselho do médico, pode evitar que o seu filho tenha uma deficiência, pode
torná-lo imune a uma série de doenças
perigosas e até pode melhorar a sua inteligência futura. Tudo o que precisa de
fazer para que isto aconteça é cumprir alguns requisitos quanto ao seu estilo
de vida e alimentação. Terá razões morais (ou obrigações morais) para seguir o conselho do médico? Seria
diferente se, em vez de seguir
requisitos alimentares simples, assentisse à aplicação da engenharia genética para se certificar de que o seu filho não teria deficiência alguma, seria saudável e teria uma inteligência
acima da média? No debate sobre a ética
do aperfeiçoamento genético, um dos argumentos avançados é o de que se concordarmos que a deficiência
deve ser evitada, também deveríamos concordar que devem ser postos em prática
aperfeiçoamentos, uma vez que a deficiência e o aperfeiçoamento parecem estar
num continuum.»
Lisa
Bortollotti, Introdução à Filosofia da
Ciência, Lisboa, Gradiva, pp. 256-257.
2
Deficiência e
aperfeiçoamento
«Se
aceitarmos a ideia de que há um continuum dano-benefício e que temos uma
razão moral para evitar causar danos desnecessários a outros, também temos uma
razão moral para conferir benefícios a outros, e esta razão moral pode
tornar-se uma obrigação positiva na qual os custos para nós próprios são
razoáveis, dado o grau do benefício. Isto é apoiado pela analogia intuitiva
entre a deficiência e o aperfeiçoamento. Se as condições incapacitantes
constituem uma desvantagem
no que respeita a alternativas relevantes, as condições aperfeiçoadas
constituem uma vantagem.
Além disso, é fácil imaginar cenários em que não melhorar a
condição de uma pessoa significa criar uma deficiência. Num meio em que a
maioria das pessoas viu a sua memória a longo prazo ser aperfeiçoada em 20 por
cento, as pessoas cuja memória não foi aumentada estão em desvantagem em alguns
contextos; se fosse desenvolvida uma vacina eficaz contra o VIH/SIDA, aqueles
que não estivessem protegidos estariam em grave desvantagem.
Contudo, há
inúmeras objeções ao desenvolvimento de programas de investigação com o
objetivo de aperfeiçoar condições e capacidades, e passaremos aqui em revista
algumas. Na literatura da bioética, na imprensa e até na cinematografia
recente, os aperfeiçoamentos são encarados com grande desconfiança.»
Lisa
Bortolotti, Introdução à Filosofia da Ciência, Lisboa, Gradiva, p. 261.
3
Objeções ao aperfeiçoamento
As dúvidas sobre a segurança dos
procedimentos
«Há muita
gente preocupada com a segurança das
tecnologias do aperfeiçoamento e com o conhecimento limitado que mesmo os
especialistas têm sobre as consequências da engenharia genética em certos
domínios. Embora possa haver muito boas razões para decidir contra o
aperfeiçoamento com base em preocupações relativas à segurança dos
procedimentos, este argumento não é suficiente para mostrar que melhorar não é ético. Se houvesse um avanço científico significativo, a
segurança dos procedimentos poderia ser confirmada e as consequências do
aperfeiçoamento poderiam ser controladas. Nessa altura, não haveria objeção
alguma a avançar com o aperfeiçoamento.
O que é natural deve ter prioridade
sobre o artificial
Outra objeção ao aperfeiçoamento deriva da ideia persistente de
que o natural é bom e que o não natural é mau: em poucas palavras, que devemos dar prioridade ao natural
em detrimento do artificial. Ainda que comum, a crença de
que o natural deve ter prioridade sobre o artificial tem sido considerada
errada por muitos. Na medida em que os alimentos que surgem naturalmente são
mais seguros ou mais saudáveis, há uma razão para preferi-los; em muitos casos,
porém, os alimentos preparados artificialmente são mais seguros e mais
saudáveis. Quando os processos naturais são menos dispendiosos ou provocam
menos danos no ambiente, há razões para preferi-los. Por conseguinte, não há razão alguma para preferir um
processo natural a um processo artificial na ausência de outras considerações
relevantes. Estes exemplos pretendem mostrar que o natural per se é moralmente neutro. Por vezes os acontecimentos naturais são
bons, como um fabuloso pôr do Sol ou uma colheita abundante. Frequentemente,
porém, o natural provoca grandes danos (a pestilência ou as enchentes, por
exemplo), podendo causar enormes perdas de vidas humanas.
Poder-se-ia
caraterizar a prática da medicina (e da ciência em geral) como a grande
tentativa de mudar o curso da natureza, pois as pessoas ficam naturalmente doentes, são invadidas por organismos naturais como vírus e bactérias, e morrem naturalmente em tenra idade, frequentemente enquanto bebés. Se déssemos sempre
prioridade ao natural, teríamos de renunciar à prática da medicina e às
descobertas da ciência médica, incluindo as vacinas e os antibióticos.
O dever de não tentar aperfeiçoar a
natureza humana é muito discutível
Outra objeção importante é a objeção do “brincar a Deus” ‒ a ideia de que ao
procedermos a certos aperfeiçoamentos somos culpados de arrogância. Esta ideia traduz-se nos seguintes termos: “Não é suposto que os seres humanos criem
melhores seres humanos, pois isso seria arrogante da sua parte. Deveriam apenas
aceitar o que Deus ou a natureza lhes deu, sem tentarem melhorá-lo”. Esta
objeção não é muito interessante, mas conduz frequentemente a uma segunda e
mais interessante objeção: Quais são as consequências dos aperfeiçoamentos? Ao
intervir nos genes, podemos modificar a natureza humana e evoluir por nós
próprios. Haverá algo de errado nisto?
Uma possível resposta dependeria da ideia de que a espécie humana tal como é
deve ser preservada. Isto decorre da crença de que há algo de intrinsecamente
bom no ser humano. Mas será que é realmente a humanidade enquanto tal, o seu
conceito biológico, que valorizamos? O que é de valor nos humanos talvez seja o
facto de normalmente também serem pessoas, com a capacidade de terem
consciência de si mesmas, de tomar decisões por si de uma maneira racional e
autónoma, e de terem sentimentos e emoções complexos. O facto de todas as pessoas que conhecemos serem seres humanos é apenas
um acaso. Se encontrássemos essas caraterísticas das pessoas em seres não humanos,
íamos (ou devíamos) ainda valorizá-las e estimá-las. Tais considerações podem
apoiar a ideia de que o valor intrínseco e o estatuto moral não dependem da
espécie a que os indivíduos pertencem, mas do facto de serem pessoas, e de,
enquanto tal, terem interesses de um certo tipo. Possivelmente, ser humano não é nem necessário
nem suficiente para ter direitos. Se reconhecermos que o que justifica conceder
direitos a indivíduos não é a espécie a que pertencem mas os interesses que
possam ter, nesse caso a questão sobre se devem ser concedidos direitos a
pós-humanos resolve-se facilmente. O “humanos” na expressão “direitos humanos” serve apenas para salientar que as diferenças de
raça, género e riqueza não são relevantes para apurar se tais direitos devem
ser concedidos a alguém. Se levarmos a sério a preocupação de alguns filósofos
com outro tipo de preconceito ou discriminação
o especismo, o termo “humanos” terá de sair e «direitos humanos» passará a ser “direitos das pessoas”.»
Lisa Bortolotti, Introdução à Filosofia da Ciência, Lisboa, Gradiva, pp. 261,
263, 264.
4
Michael
Sandel: contra o aperfeiçoamento genético dos seres humanos
«Os desenvolvimentos da
genética constituem uma promessa e um desafio. A promessa é a de que cedo
poderemos tratar e prevenir doenças muito debilitantes. O desafio é o de que
este novo conhecimento genético também permitirá manipular a nossa natureza
humana – aperfeiçoar os músculos, a memória e os comportamentos, escolher o
sexo, a altura e os traços genéticos dos nossos filhos.
Para
avaliar moralmente a moralidade do aperfeiçoamento, devemos confrontar-nos com
questões que o mundo moderno em grande parte perdeu de vista: questões acerca
da relação apropriada dos seres humanos com o mundo ou a natureza que lhes
foram dados.
Os músculos
Comecemos pelos músculos.
Todos nós aprovaríamos uma terapia genética que tratasse a distrofia muscular. Mas e se a mesma terapia fosse usada para
produzir atletas geneticamente alterados e melhorados? Os investigadores
desenvolveram um gene sintético que, quando injetada nas células dos músculos
dos ratos produziam o seu crescimento significativo e previne a sua
deterioração com a idade. Estes ratos geneticamente alterados e poderosos já
atraíram a atenção dos atletas. Embora a terapia ainda não seja aprovada para
uso humano, a perspetiva de halterofilistas, ciclistas e sprinters
geneticamente aperfeiçoados é muito sedutora.
Assim sendo, deverão o
Comité Olímpico Internacional e as ligas profissionais banir os atletas
geneticamente melhorados? Se devem, com que fundamento? As duas razões
aparentemente mais óbvias para banir as drogas no desporto são a segurança –
saúde – e equidade. Os esteroides, por exemplo, têm efeitos colaterais
perniciosos. Mas suponhamos que o aperfeiçoamento muscular mediante a
intervenção genética se revelasse seguro para a saúde dos atletas. Haveria
ainda razão para a banir? Há algo de perturbador com o cenário de atletas
geneticamente modificados levantando cargas enormes ou correndo de forma
estranhamente veloz. Mas será que é o caráter bizarro deste cenário que nos
perturba ou será que a nossa eventual perturbação aponta para aspetos
eticamente relevantes? Parece-me ser este o caso porque se o melhoramento
genético fosse seguro todos estariam à partida nas mesmas condições e não seria
a genética a fazer a diferença.
A memória e a inteligência
O aperfeiçoamento genético
aplica-se à força muscular mas também ao cérebro. Investigadores conseguiram
produzir ratos superinteligentes inserindo cópias de um gene relacionado com a
memória em embriões de ratos. Os ratos geneticamente modificados aprendem mais
rápido e lembram durante mais tempo do que os ratos comuns.
Hoje
em dia, empresas de biotecnologia procuram com empenho drogas que melhorem a
memória – chamam-lhes “otimizadores cognitivos” – nos seres humanos. Um mercado
óbvio para estes produtos são as pessoas com graves problemas de memória tais
como as pessoas afetadas pela doença de Alzheimer ou a demência. Mas essas
empresas têm outros clientes em vista, um mercado bem mais vasto. Trata-se das
pessoas que prestes a chegar aos 50 anos irão naturalmente perder capacidade
mnésica com a idade. Entretanto, drogas como Ritalin e Adarol prescritos para o
Défice de Atenção são cada vez mais usadas por estudantes preocupados com a melhoria
do seu desempenho em provas e exames.
Devemos dedicar o nosso engenho biotecnológico a
curar e reparar doenças e deficiências ou devemos também procurar aperfeiçoar a
nossa constituição biológica e as nossas mentes? Algumas pessoas questionam a moralidade do
“aperfeiçoamento cognitivo” apontando para o perigo de criar classes de seres
humanos: os que terão acesso às tecnologias de aperfeiçoamento e os que devem
contentar-se com uma memória que naturalmente vai decaindo com a idade. E se os
aperfeiçoamentos forem transmissíveis de geração para geração as duas classes
poderiam dar lugar a duas subespécies de seres humanos. Mas ocorre com a memória e a inteligência o mesmo que acontece no caso
do aperfeiçoamento muscular: a questão fundamental não é a de saber como
assegurar o igual acesso aos produtos que nos aperfeiçoarão mas a de saber se
devemos aspirar a essa melhoria artificial. A
grande questão é esta: Devemos usar a nossa inteligência biotecnológica para
curar enfermidades e tratar lesões ou devemos dar um passo em frente e
aperfeiçoarmo-nos “redesenhando” os nossos corpos e mentes.
A altura
Os
pediatras já se confrontam hoje em dia com a ideia de aperfeiçoamento quando
lhes surgem pais que desejam que os filhos sejam mais altos. Desde
1980 está aprovado o uso da hormona humana do crescimento para o caso de
crianças cuja altura ficaria sem ela significativamente abaixo da média.
(Messi, o famoso futebolista, é um célebre caso da utilização desta hormona).
Mas o tratamento também serve para aumentar a altura de crianças com altura
dentro da média e há pais que solicitam o uso da hormona argumentando para os
efeitos socialmente positivos – sobretudo nos rapazes- de se ser alto.
Argumentam que não há razão para impedir que uma criança de estatura média tome
essa hormona e fique em condições de, por exemplo, integrar a equipa de
basquetebol. E por que não colocá-la à disposição de crianças com estatura um
pouco inferior à média? Mais uma vez, a
questão não é a do acesso a esta forma de melhoramento mas se devemos querê-la.
Devemos querer uma sociedade em que casais com filhos perfeitamente sãos se
sintam pressionados a gastar fortunas para que os seus filhos ganhem alguns
centímetros de estatura?
A
escolha do sexo
O uso da técnica não médica da seleção sexual é
provavelmente o mais perturbador. Durante
séculos os pais tentaram escolher o sexo dos seus filhos. Desde a conjugação do
ato sexual com a posição da lua a recomendações de filósofos famosos tudo se
tentou. Mas só agora as novas tecnologias da biologia podem satisfazer esse
desejo. Uma técnica de seleção sexual derivou de testes pré-natais como a
amniocentese. Estas tecnologias médicas foram desenvolvidas para detetar
anomalias genéticas. Mas também podem revelar o sexo do feto permitindo assim,
em princípio, o aborto do feto cujo sexo não é desejado.
Outra
técnica que favorece a escolha do sexo está associada à fertilização in vitro. Para
os casais que recorrem a esta técnica é possível escolher o sexo da criança
antes de o ovo fertilizado ser inserido no útero.
Argumenta-se que a técnica da seleção sexual discriminaria o
membros de sexo feminino. Mas suponha-se que essas
técnicas seriam empregues numa sociedade que não favoreceria nenhum sexo. Seria
a escolha do sexo ainda objetável? E se fosse possível escolher não só o sexo,
mas também a altura, a cor dos olhos, a cor da pele, a orientação sexual, o
quociente inteletual, a aptidão musical e as proezas atléticas?
Modificar a
natureza é diminuir o sentido de humildade e tudo querer controlar
Há algo de perturbante nestes cenários de manipulação
genética. Mas o que há de errado nestes eventuais usos da engenharia genética
com o objetivo de nos transformar em atletas biónicos e os nossos filhos em
algo quase completamente projetado ou “desenhado por nós” como se fôssemos
arquitetos e engenheiros a projetar e construir casas?
Há quem diga que a engenharia genética é um atalho para o
sucesso que reduz de modo acentuado o valor do esforço e do mérito pessoal. Um
atleta que usa o doping genético
evita o trabalho árduo e o treino rigoroso. Suponha que as proezas do seu
atleta favorito de devem a modificações genéticas. A sua admiração diminuiria
certamente.
Mas o problema do aperfeiçoamento genético não consiste
unicamente no facto de diminuir ou reduzir em muito a importância do esforço. O perigo mais profundo é o de que
representa uma forma de aspiração prometaica de refazer a natureza, incluindo a
natureza humana, para servir os nossos desejos, propósitos e ambições. O que
este impulso de radical modificação da nossa natureza perde de vista é a devida
apreciação do facto de que os nossos sucessos e realizações são dons –
presentes – da natureza. Reduz a nossa
humanidade.
Reconhecer a vida como dom natural é reconhecer que os nossos
talentos e capacidades não se devem só a nós, apesar do esforço que fazemos
para os desenvolver. Este reconhecimento conduz a uma certa humildade e à
abertura ao inesperado.
Considere-se a paternidade e a maternidade. Apreciar os filhos como dons é
apreciá-los tal como nascem, não como objetos dos nossos desejos e desígnios ou
como produtos da nossa vontade ou instrumentos da nossa ambição. O amor dos
progenitores não deve depender dos talentos e atributos que por acaso as
crianças apresentam. Escolhemos os nosso amigos e com quem casamos pelo menos
em parte mas não escolhemos os nossos filhos. As suas qualidades são
imprevisíveis e mesmo os mais conscientes dos progenitores não são totalmente
responsáveis pelos filhos que têm. Escolher o tipo de filhos que queremos ter é
desfigurar a relação entre pais e filhos. Os pais são progenitores e não
engenheiros dos seus filhos. Devem cuidar da saúde dos seus filhos mas não
projetá-los, desenhá-los ao seu gosto transformando-os em produtos dos seus
desejos.
Modificar a natureza é transformar a responsabilidade num fardo
insuportável
Pensa-se
que a engenharia genética ao desvalorizar o esforço torna a responsabilidade
pelo que somos e fazemos uma coisa sem sentido. Mas muito mais do que erosão da
responsabilidade, aquilo a que assistiríamos seria a uma explosão da responsabilidade. Esta
assumiria proporções gigantescas, dantescas e insuportável dado o
desaparecimento da humildade, ou seja, dado o impulso para tudo controlar e
dominar. Os pais tornam-se responsáveis por escolher bem os filhos que vão
ter ou por escolherem mal. Os atletas são os únicos responsáveis por adquirirem
ou não os talentos que os conduzirão a si ou às suas equipas ao sucesso.
Uma das
bênçãos de nos vermos como criaturas da natureza (ou de Deus ou da sorte) e não
seus modificadores e controladores é que não somos totalmente responsáveis pelo
que somos. Hoje quando um basquetebolista falha um ressalto, o seu treinador
pode censurá-lo por estar na posição errada. Amanhã pode criticá-lo por não ter
altura apropriada.
Modificar a natureza é perder
o sentido da solidariedade com os menos afortunados.
Paradoxalmente, a explosão da
responsabilidade pelo nosso próprio destino e o dos nosso filhos, pode diminuir
o nosso sentido de responsabilidade – solidariedade – a respeito dos menos
afortunados do que nós. Quanto mais consciência temos de que a
nossa posição social e a nossa saúde se devem em boa parte a acaso natural mais
razões temos para partilhar o nosso destino com os outros. Por que razão, os mais bem-sucedidos e afortunados devem algo aos
outros membros menos favorecidos da sociedades? A resposta baseia-se
essencialmente na noção de dom. Os
talentos naturais que possibilitam o florescimento dos mais bem-sucedidos
não são obra sua mas sobretudo obra do acaso, da boa fortuna. Se os nossos
dotes intelectuais e físicos são dons e não propriamente realizações que nos
possamos atribuir, se são um resultado da lotaria genética, então é errado e
quase insultuoso que tudo o que adquirimos numa economia de mercado nos
pertence em exclusivo. Temos por isso, a obrigação de partilhar essas
aquisições com os que, sem culpa sua, não possuem dons e riqueza comparáveis. Nenhum de nós é completamente
responsável pelo seu sucesso ou pelo seu fracasso. Estamos, em certa medida, no
mesmo barco. Tudo é contingente e os ricos não são ricos porque são mais
merecedores do que os pobres.
Se a
engenharia genética pusesse fim à lotaria genética e substituísse o acaso pela
escolha os bem-sucedidos conceber-se-iam, bem mais do que agora, como
autossuficientes e autores de si mesmos e do seu sucesso. A meritocracia
tornar-se-ia bem mais intolerante.
É
tentador julgar que projetar e preparar geneticamente os nossos filhos para o
sucesso numa sociedade competitiva é um exercício de liberdade. Mas mudar a nossa
natureza para nos adaptarmos ao mundo e não o contrário é a mais profunda forma
de enfraquecimento da nossa liberdade e da nossa ação. Deixamos de refletir
criticamente sobre o mundo e mata o impulso de transformação política e social.
Assim, em
vez de desenharmos geneticamente o futuro dos nossos filhos para nos ajustarmos
ao mundo, criemos formas de organização política e social mais hospitaleiras
para os dons e as limitações dos seres humanos imperfeitos que somos.»
Michael Sandel, Reith Lectures 2009: A New Citizenship ‒ Lecture
3: Genetics and Morals
5
A
humanidade que somos e a que poderemos ser
«Fazer
com que invisuais vejam, paraplégicos andem e pessoas com senilidade recuperem
a memória parecem promessas de curandeiros, mas são algumas das conquistas
científicas possíveis nos próximos anos e envolvem campos como a genética, a
neurociência e a engenharia. Por enquanto, o objetivo é a terapia: permitir que pessoas com deficiências ou doenças
degenerativas possam ter uma vida similar à de pessoas sem esses problemas, ou
seja, recuperar as suas funcionalidades. Mas
o que acontecerá quando essas tecnologias forem usadas para aperfeiçoamento: ampliar
o “padrão” humano, nos fazendo mais fortes, rápidos e inteligentes? Que
desafios éticos esperam a humanidade quando for possível programar filhos aptos
a se tornarem superatletas ou génios? O futuro transumano será bom ou mau?
Mais fortes e velozes
Superar
os limites físicos é o lema do mundo desportivo. Os atletas procuram aprimorar
o seu desempenho para obter melhores marcas e, quando alguns milésimos de
segundo representam a diferença entre um vencedor e um perdedor (e a
consequente obtenção de patrocínio), alguns recorrem a outros meios além do
treino e da dieta. O doping, uso de substâncias controladas para
melhorar a performance, é um problema tão grande que existe uma
organização desde 1999 para lidar diretamente com isso, a Agência Mundial
Antidoping Esta coordena os esforços para combater o uso dessas drogas e formas
de detetar novas substâncias – algo descrito como uma “corrida do gato e do
rato”.
No
futuro, contudo, as drogas podem não ser o único desafio para a AMA.
Especialistas da área falam já de doping genético: uma alteração no DNA
do atleta que incluiria instruções para que o seu corpo desenvolvesse, por
exemplo, músculos mais fortes ou com maior poder de explosão. Testes de doping
não detetariam qualquer anormalidade no atleta, porque ele de facto não
usaria drogas para melhorar o seu desempenho – a sua vantagem já estaria
codificada no seu corpo. Com essas biotecnologias podemos imaginar como
possível, projetar – “desenhar” (biodesign) ‒ atletas a partir de embriões,
selecionando as caraterísticas apropriadas para a modalidade desejada. Um
velocista poderia ser alto e rápido e um lançador de peso precisaria de mais
força nos braços. Mas a criação desse desportista otimizado não teria se dar no
nascimento, bastando que houvesse um protocolo funcional de terapia genética. A
técnica usa vetores como vírus para inserir genes sadios em indivíduos
acometidos de doenças com origem genética. Por meio dela, seria possível fazer
as alterações necessárias para criar o atleta melhorado em crianças,
adolescentes e mesmo adultos. “Mas há um preço. As relações entre os genes são
complexas e pode ser que esse tipo de modificação leve ao aparecimento de
outros problemas. O superatleta poderia desenvolver tumores”.
Para
combater essa nova forma de doping, a AMA aposta no passaporte genético.
Ele seria similar ao passaporte bioquímico que está sendo implementado
atualmente – um perfil específico para o desportista, com vários marcadores
bioquímicos, como o nível de enzimas e hormonas. O passaporte permite
identificar o uso de doping de maneira indireta, pelo seu efeito nesses
marcadores, mesmo que a substância em si não seja detetada. “No caso da versão
genética, poderiam detetar-se mutações ou sequências de DNA que não constavam
do passaporte do atleta”, explica o médico.
O
que se poderia esperar de um futuro onde atletas aperfeiçoados fossem uma
realidade? Seriam eles banidos de competições oficiais? Haveria um evento em
que só eles participariam, uma espécie de Jogos Superolímpicos? Seja qual for a
solução, ela seguirá a lógica do espetáculo. As grandes competições desportivas
têm uma engenharia financeira cuidadosamente arquitetada pelos órgãos
internacionais que gerem essas atividades para garantir o retorno dos
investimentos. Se o desporto é aborrecido e não atrai espetadores, os
investidores não financiam. Podemos pensar que isto poderá abrir espaço para os
atletas aperfeiçoados.
Mais inteligentes e concentrados
É
provável que o leitor já tenha usado algum tipo de melhoramento das suas
capacidades cognitivas, ou seja, das habilidades de adquirir, processar,
armazenar e recuperar informação. Se já tomou café para se manter acordado,
usou o estimulante cafeína, presente na bebida, para melhorar o seu estado de
alerta. Isso não parece particularmente controverso, assim como não é o emprego
de técnicas mnemónicas para facilitar a memorização de uma determinada
informação. Nos últimos anos, porém, novas modalidades de melhoramento
cognitivo surgiram, como o consumo de drogas que não foram desenvolvidas com
esse objetivo.
O
modafinil é usado para tratar narcolepsia, mas parece ter efeitos positivos na
memória e no estado de alerta. Por sua vez, o metilfenidato, criado para o
tratamento do transtorno do défice de atenção e da hiperatividade, parece
aumentar a concentração em indivíduos que não sofrem desse mal. Um dos principais problemas éticos
associados a esse tipo de aperfeiçoamento é que ele ampliaria a desigualdade
social, criando uma elite superinteligente, rica e poderosa, além de polarizar
a sociedade entre os mais e menos aptos. No artigo “Questões éticas do
aperfeiçoamento humano”, o filósofo sueco Nick Bostrom, diretor do Instituto do
Futuro da Humanidade da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e a filósofa
inglesa Rebecca Roache, do mesmo instituto, apresentam argumentos contra essa
visão. Na sua perspetiva, a tendência é que as formas de aperfeiçoamento fiquem
mais baratas com o tempo, tornando-se acessíveis a todos. Além disso, se as
pessoas puderem escolher que formas de melhoramento adquirir, seria pouco
provável a formação de apenas dois grupos sociais distintos, sendo mais
verosímil que houvesse um contínuo de indivíduos modificados. Os autores do
artigo sublinham que já vivemos numa sociedade polarizada em diversos grupos –
altos e baixos, homens e mulheres, doentes e sadios, escolarizados e analfabetos
–, mas que não costumam entrar em conflito. Segundo Bostrom, famílias ricas
concedem mais oportunidades aos seus filhos, que se traduzem em maior riqueza
material mais tarde. “Caso considere essas desigualdades inadmissíveis, a
sociedade, em vez de banir a inovação tecnológica, pode lançar mão de outros
recursos, como taxar mediante impostos determinados melhoramentos ou a sua
subvenção pelo sistema público de saúde”, sugere.
Transumanistas ou eugenistas?
O
melhoramento físico e cognitivo dos humanos por meio de novas tecnologias é a
principal bandeira do transumanismo.
Este movimento defende que a forma atual do ser humano não representa o fim do
nosso desenvolvimento, mas sim uma fase relativamente precoce. Assim como
usamos métodos racionais para melhorar as condições sociais e o mundo externo,
podemos aplicar essa mesma abordagem ao nosso organismo, sem necessariamente
estarmos limitados a meios tradicionais, como a educação e o desenvolvimento
cultural.
Os
opositores dos transumanistas, denominados bioconservadores,
alertam para os vários problemas que tecnologias de melhoramento criarão para a
sociedade, como a já citada polarização e o aumento da desigualdade social. Uma das principais críticas é que o
transumanismo, na verdade, defende uma nova versão da eugenia, movimento da
primeira metade do século 20 que procurava a melhoria da espécie humana
mediante a promoção da procriação de indivíduos considerados “aptos” e
dificultando a de pessoas não dotadas de qualidades “positivas”, como portadores
de deficiências físicas e mentais, homossexuais e certas etnias, entre outros.
Os métodos de prevenção da reprodução incluíam esterilização obrigatória,
abortos forçados, segregação racial, eutanásia e extermínio em massa, que
culminou com o genocídio de milhões de judeus e ciganos na Alemanha nazi.
Os transumanistas negam a aproximação com a eugenia. Afirmam que o transumanismo defende os princípios
da autonomia do corpo e da liberdade procriativa. Ou seja, ninguém deve ser
forçado a usar qualquer tipo de tecnologia. O uso de técnicas como o
diagnóstico genético pré-implantação (PGD, na sigla em inglês), que permite
selecionar embriões que não tenham genes relacionados com doenças, como, por
exemplo, a fibrose cística, é uma aplicação justificada e responsável dessa
liberdade, pois aumentaria a probabilidade de a criança ter uma vida saudável e
feliz. Os defensores desse movimento vão mais longe: com a disponibilidade de
meios seguros e eficazes de realizar essa triagem ou de manipular os genes do
embrião, os pais têm a responsabilidade moral de empregá-los. Tal como seria
errado não tentar obter o melhor tratamento para um filho doente, seria
incorreto não tomar precauções razoáveis para garantir que a futura criança
tenha a melhor vida possível. É o que o filósofo australiano Julian Savulescu,
diretor dos centros de Ética Prática e de Neuroética da Universidade de Oxford,
chama de “beneficência procriativa”.
Tipos de humanidade
Além
do melhoramento físico e cognitivo da humanidade, alguns transumanistas
defendem a eliminação do sofrimento, tanto físico quanto emocional. A sua
intenção é eliminar males como a depressão e a síndroma do stresse
pós-traumático, para promover a saúde mental e a felicidade. Apesar de ser um objetivo aparentemente
nobre, esse tipo de alteração, mais do que melhoramentos físicos, parece tocar
na nossa essência, naquilo que consideramos o cerne da humanidade. Uma questão
central nessa discussão é o que é ser humano.
Para
o cientista político norte-americano Francis Fukuyama, um dos mais famosos
bioconservadores e autor do livro O nosso futuro pós-humano, de 2002, a
natureza humana, definida pelas caraterísticas genéticas típicas de nossa
espécie, é o repositório dos valores e da dignidade humanas. Assim, qualquer
intervenção reprodutiva ameaçaria essa natureza. “A biotecnologia que procura
manipular a nossa natureza arrisca-se não só a causar efeitos colaterais não
previstos, como também pode afetar a própria base dos direitos democráticos”,
afirma.
Bostrom,
um dos fundadores da Associação Transumanista Mundial (hoje Humanity+), o que
conta são as caraterísticas que nos tornam humanitários, como a compaixão, o
senso de humor e a curiosidade. “Preservar a ‘humanidade’ em vez de cultivar a
‘humanitariedade’ significa idolatrar tanto o que temos de ruim quanto o que
temos de bom.”
Para
o neurocientista sueco Anders Sandberg, seu colega no Instituto do Futuro da
Humanidade, a mudança da humanidade e a sua evolução em direção a um ser
pós-humano não é problemática, assim como não foi a dos nossos ancestrais
símios que passaram a humanos. “Tornaram pós-símios e puderam experimentar e
realizar coisas como a linguagem, a música e a filosofia. Mas os pós-humanos
compartilharão muitas caraterísticas connosco, assim como temos com os símios.
Se nos aperfeiçoarmos de maneira cuidadosa, manteremos as boas partes humanas e
ganharemos novas habilidades”, defende.
Acredita
que a humanidade passará por um momento de transformação civilizacional quando
as tecnologias de aperfeiçoamento estiverem maduras. “Vivemos boa parte dos 150
mil anos do Homo sapiens como uma única humanidade, excetuando uma breve
coexistência com os neandertais. Isso mudará e haverá uma diversidade de
humanidades”, prevê. “A espécie humana questionará sua própria identidade e
ocorrerá uma redefinição do que é ser humano”.»
Fred
Furtado, Ciência Hoje, 12/09/2013 (adaptado).
6
Entrevista com Nick Bostrom e David Pearce: debatendo as principais
objeções ao aperfeiçoamento humano
Dave
e Nick são os cofundadores da Associação Mundial Transumanista, uma organização
não lucrativa que procura aumentar as capacidades humanas por meio da alta
tecnologia.
ANDRÉS LOMEÑA: O transumanismo, ou o aperfeiçoamento humano, sugere o uso de
novas tecnologias para aumentar as aptidões mentais e físicas, descartando
alguns aspetos como a estupidez, o sofrimento, e por aí em diante. Vocês foram
descritos como «tecno-utopistas» por críticos que escrevem sobre «alucinados do
futuro». Há muitos medos e maior ignorância. A Wikipédia sistematiza todos os
medos: impraticabilidade, o argumento de que se está a «fazer de Deus», o
argumento da Fonte da Juventude, o argumento do Admirável Mundo Novo, o
argumento de Frankenstein ou do Exterminador Implacável (baseado em Hora
Final, de Martin Rees). Quais destas questões são medos saudáveis
(compreensíveis) e quais não o são? Uma crítica comum habitual era a visão escatológica
do transumanismo (como o marxismo e o cristianismo, por exemplo). Resumindo,
como poderíamos lutar contra estes pontos de vista distópicos?
NICK
BOSTROM: Abordando
distintamente cada caso particular, ou procurando identificar preconceitos que poderiam
afetar os nossos juízos num âmbito vasto de casos. O medo não é necessariamente
uma coisa má, desde que se dirija a algo que é realmente perigoso e resulte num
esforço construtivo para reduzir o perigo. Por exemplo, faz todo o sentido
preocupar-se com a ocorrência natural de pandemias como com a possibilidade de
superescaravelhos produzidos por engenharia biológica. Mas recear ter a opção
de atrasar a doença e a senilidade através de uma terapia de rejuvenescimento
eficaz é perverso. Na verdade, não penso que haja muitas pessoas que tenham
efetivamente medo de tal coisa, embora algumas possam manifestar oposição por
razões ideológicas. Para uma ilustração de como se poderia tentar diagnosticar
e remover um preconceito que afete um juízo num âmbito de questões que se
referem ao aperfeiçoamento, veja-se um ensaio sobre preconceitos estabelecidos
(http://www.nickbostrom.com/ethics/statusquo.pdf), que escrevi juntamente com
Toby Ord.
DAVID
PEARCE: Húbris / Fazer
de Deus? O que poderia ser mais «divino» do que criar nova vida? Nem todas
as culturas fizeram historicamente a conexão entre a atividade sexual e a
reprodução; mas nós não dispomos de semelhante desculpa. Por um lado,
condenamos os autores de programas informáticos maliciosos que divulgam código
corrupto. Por outro lado, propagamos livremente o nosso próprio código corrupto
ao longo das gerações — em especial, uma doença genética letal (envelhecimento)
e uma predisposição para perturbações de ansiedade, depressão e outros estados
mentais darwinistas desagradáveis. À medida que a medicina reprodutiva
progride, o que tem de mal agir ao invés como pais responsáveis? Por que não
planear a saúde genética e felicidade de longo prazo das gerações futuras?
Argumento
do desprezo pela carne / argumento da Fonte da Juventude? O que poderia mostrar mais desprezo pela
carne do que defender corpos darwinistas que decaem e morrem? À medida que a
medicina genética amadurece, por que não conceber projetos para corpos
perpetuamente jovens? Além disso, teremos em breve a oportunidade de explorar
formas mais ricas de sensualidade; de magnificar o córtex somato-sensório; e de
isolar a assinatura molecular do desejo sexual e amplificar os seus substratos
por medida. Transcender a carne pode ser uma opção; não é uma obrigação.
Admirável
Mundo Novo? Este argumento
é mais difícil de rejeitar completamente. Mas a biotecnologia pode
potencialmente dar poder ao cidadão individual em vez de ao estado. Por
exemplo, aperfeiçoar o humor tende a aumentar a autonomia pessoal e a participação
ativa na sociedade. Conversamente, o mau humor está associado à subordinação e
ao distanciamento social. O soma de Huxley foi erroneamente publicitado como
uma «droga de prazer ideal». Será ultrapassado pela farmacologia
verdadeiramente utopista.
Argumento
da desumanização / argumento de Frankenstein? Sim, a tecnologia pode desumanizar; e a biotecnologia pode
criar monstros. Porém, a biotecnologia pode também criar santos e anjos. De uma
maneira menos poética, em breve seremos capazes de nos «humanizar» a nós
próprios. Pois podemos aperfeiçoar biologicamente a nossa capacidade para a
empatia — ou amplificando funcionalmente os nossos neurónios especulares, ou
pelo uso de empatogénicos sintéticos pró-sociais, ou manipular geneticamente a
libertação de oxitocina para promover a confiança social. Fá-lo-emos? Não sei.
O
argumento do Exterminador Implacável?
O bioterrorismo e a «gosma cinzenta» são talvez os cenários mais preocupantes.
Mas nas próximas décadas é muitíssimo provável que tenhamos bases autossustentáveis
na Lua e em Marte. Mesmo nos cenários mais apocalípticos, qualquer risco
existencial à vida inteligente será assim fortemente diminuído. De uma
perspetiva ética utilitarista, é crucial que os seres humanos sobrevivam para
se tornarem pós-humanos. Pois somos a única espécie capaz de erradicar o
sofrimento em toda a vida senciente. Somos também a única espécie
suficientemente inteligente para propagar a felicidade inteligente em todo o
universo acessível.
A.L.: Provavelmente, o problema mais importante é a escassez de
informação. Na realidade, não sabemos muito sobre o transumanismo, exceto
alguns artigos de Fukuyama (inicialmente otimistas e depois pessimistas).
Gostaríamos de perguntar-lhe quais as conexões entre o transumanismo e outros tópicos.
Por exemplo: o transumanismo e a religião: considera-se religioso? Há um
transumanismo ateu ou agnóstico?
N.B.:
Denominar-me-ia
«agnóstico». Parece que os transumanistas são maioritariamente arreligiosos,
mas há também transumanistas católicos, transumanistas mórmones, transumanistas
budistas, etc.
D.P.: Penso que é difícil reconciliar o
transumanismo e a religião revelada. Se queremos viver no paraíso, teremos nós
próprios de o produzir. Se queremos a vida eterna, então teremos de reescrever
o nosso código genético cheio de erros e tornarmo-nos divinos. «Possa tudo o
que vive ser libertado do sofrimento», afirmou Gautama Buda. É um sentimento
maravilhoso. Infelizmente, só as soluções de alta tecnologia podem erradicar o
sofrimento do mundo vivo. A compaixão por si só não basta.
A.L.: Transumanismo e eugenia: Será que todos os transumanistas são
eugenistas? Têm um programa político no que se refere a este tópico?
Consideram-se um lobby das gerações futuras?
N.B.: A Associação Mundial Transumanista adotou
oficialmente uma declaração que exclui da organização todas as formas de
eugenistas neonazis. (Isto deu-se em resposta a um incidente há alguns anos
quando um ou dois desses trogloditas se procuraram infiltrar na AMT.) O
transumanismo apoia os direitos reprodutivos entre outros direitos humanos.
Tendemos a pensar que é melhor as decisões reprodutivas estarem nas mãos dos
pais, acompanhados pelo seu médico, e dentro de diretivas gerais determinadas
pelo estado. Seria eticamente inaceitável, bem como potencialmente muito
perigoso, que o Estado impusesse uma fórmula unilinear sobre qual o tipo de
pessoas que devem existir na geração seguinte.
Se eu
fosse pai, consideraria ter o dever moral de tomar todas as medidas razoáveis
para garantir que a criança que estaria prestes a trazer ao mundo iniciaria a
sua vida com as melhores hipóteses possíveis de uma vida boa. Se uma mulher
grávida pode melhorar o QI do seu filho tomando ácido fólico ou suplementos de
colina, evitando o álcool, o tabaco e água contaminada com chumbo, creio que
seria responsável da parte dela tomar essas medidas fáceis. Analogamente, se eu
estivesse a utilizar a fertilização in vitro e houvesse um teste
genético simples que poderia selecionar o embrião com os melhores genes para a
saúde e outras qualidades desejáveis, creio que seria negligente não usar o
teste. Seria um inconveniente muito pequeno para um ganho potencialmente
grande.
D.P.: Os transumanistas não são eugenistas em
seja o que for que se assemelhe ao odioso sentido tradicional. Todavia, a
humanidade está no limiar de uma revolução reprodutiva. Os futuros pais em
breve receberão o poder de escolher os tipos de crianças que querem trazer ao
mundo. É provável que o diagnóstico pré-implantação se torne rotina.
Seguir-se-ão os genomas projetados. Na sua maioria, os pais desejarão ter
filhos mais felizes, inteligentes, saudáveis. Em princípio, uma maioria de
pessoas hoje provavelmente apoiariam o uso da medicina genética para impedir
doenças como a fibrose cística. Por contraste, apenas uma minoria de pessoas
atualmente favorecem as tecnologias de «aperfeiçoamento». Mas as tecnologias de
aperfeiçoamento de hoje serão as terapias curativas de amanhã. Pelos padrões
dos nossos sucessores, os humanos mortais parecerão por hipótese tragicamente
doentes e disfuncionais. De momento pensamos que é moralmente aceitável
transmitir aos nossos filhos a doença hereditária letal do envelhecimento — e
uma predisposição para vários estados mentais feios (por exemplo, ciúme, mau
humor, ansiedade, ressentimento e solidão) adaptativos no ambiente ancestral.
Porém a vida humana podia potencialmente ser muito mais rica. À medida que a
tecnologia amadurece, por que não permutar a cruel roleta genética da seleção
natural pela superfelicidade, superlongevidade e superinteligência
pré-programadas? Crucialmente, esta transformação não precisa (e não deve) implicar
a opressão de outras raças ou espécies. Transcender as nossas limitações
biológicas implica transcender os preconceitos etnocêntricos e antropocêntricos
dos nossos antepassados.
O nosso dilema real encontra-se mais à frente. Num mundo pós-envelhecimento, como reconciliamos os direitos reprodutivos individuais com a capacidade de sustentação finita do nosso planeta materno? Será que a pressão demográfica nos fará finalmente «rumar às estrelas»? Ou será que este cenário é apenas ficção científica? [...]
O nosso dilema real encontra-se mais à frente. Num mundo pós-envelhecimento, como reconciliamos os direitos reprodutivos individuais com a capacidade de sustentação finita do nosso planeta materno? Será que a pressão demográfica nos fará finalmente «rumar às estrelas»? Ou será que este cenário é apenas ficção científica? [...]
A.L.: Quero fazer-lhes uma pergunta para terminar. O aperfeiçoamento
humano e o destino pós-humano parecem orientados para a extinção da própria
humanidade. A condição humana mata-se a si própria. O que pensa deste estranho
paradoxo?
N.B.: Penso que temos de distinguir entre a
«humanidade» e ter um tipo particular de sequência de ADN nas nossas células,
tal como já a distinguimos de ser-se branco ou negro, homem ou mulher, jovem ou
velho, homossexual ou heterossexual. Pode haver muitas formas de humanidade,
inclusive novas formas que ainda não existem. E o objetivo não é permutar as
pessoas atuais por um novo conjunto de pessoas «superiores». Ao invés, o
objetivo é dar às pessoas a opção de continuarem a desenvolver-se de muitas
maneiras diferentes, incluindo maneiras que diferem dos tipos de humanidade que
temos hoje. Se quer uma palavra de ordem, poderia dizer que humanos é o que
somos, humanitários é o que esperamos poder tornar-nos — e não tem de ser
exatamente a mesma coisa para todos.
D.P.: Será que uma criança muito pequena se mata
a si própria ao tornar-se um adulto? Será que uma crisálida se mata a si
própria ao tornar-se uma bela borboleta?
Cronopis – Entrevista com Nick Bostrom e David
Pearce http://www.hedweb.com/transumanism/portugues.html,Tradução de Vítor Guerreiro.
Para
várias questões frequentemente colocadas sobre o Transumanismo confira-se o site Humanity Plus: http://humanityplus.org/philosophy/transumanist-faq/
e Homem imortal ou fim da espécie? Entrevista
com Nick Bostrom na Revista de Filosofia do Portal Ciência e Vida: http://filosofiacienciaevida.uol.com.br/ESFI/Edicoes/48/artigo176619-1.
asp
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