Os
animais têm interesses que devemos respeitar? São por si dignos de consideração
moral ou só os seres humanos merecem tal estatuto? Se atribuímos dignidade
moral aos animais em que nos baseamos para o fazer? Será legítimo?
Dois dos principais defensores
dos interesses dos animais, Peter Singer
e Tom Regan, tentaram encontrar um
critério que justificasse a dignidade moral dos animais de modo que o seu
bem-estar não dependesse unicamente dos nossos bons sentimentos ou da nossa
amabilidade. A questão era para os referidos filósofos a seguinte: Que
caraterísticas devem os animais possuir que, sendo moralmente relevantes, os
tornassem merecedores de consideração moral?
Sucintamente, a resposta de
Singer baseou-se no conceito de senciência.
Este termo designa a capacidade de sentir prazer e dor. Regan baseou-se no
conceito de sujeitos de uma vida. Esta
expressão significa que os titulares de uma vida são seres dotados de perceção,
capacidade de sofrer, de emocionar-se, de recordar, etc. Segundo Regan, temos o
dever moral fundamental de tratar com respeito todos os sujeitos de uma vida.
Se temos esse dever em relação aos animais sujeitos de uma vida, então,
correlativamente, eles têm direitos.
Singer,
adotando uma perspetiva utilitarista, não fala propriamente de direitos
animais, mas de bem-estar animal. Regan adota uma perspetiva deontológica e
argumenta que os nossos deveres em relação aos animais derivam do facto de
estes terem direitos.
Estudaremos também a teoria de Carl Cohen, segundo o qual não faz
sentido atribuir dignidade moral a animais não humanos.
1. Peter Singer: A importância
moral do sofrimento.
Singer não se limita a dizer que devemos ser benevolentes
com os animais, a manifestar simpatia para com o seu sofrimento. Afirma que
temos obrigações morais a seu respeito.
Na obra Libertação
Animal, Singer defende que o domínio dos seres humanos sobre os animais é
moralmente injustificável. A libertação animal implica dois procedimentos: 1) a
ampliação do conceito de comunidade moral e 2) a revisão e alargamento do
conceito de igualdade. O princípio que torna legítimo falar de igualdade de
direitos dos seres humanos – o princípio da igual consideração dos interesses –
deve ser aplicado a todos os seres com interesses. E por que devemos dar igual
consideração aos interesses dos animais não humanos? Porque, tal como nós, são
capazes de experimentar prazer e dor, e essa capacidade é a condição necessária
para ter interesses. A senciência – a capacidade de sofrer e de ter prazer – é
o critério que permite integrar humanos e animais numa mesma comunidade moral,
não atribuindo maior peso aos nossos interesses. Um ser é objeto de
consideração moral se tiver interesses, e tem interesses porque pode sofrer.
Assim, temos de levar em linha de conta em termos igualitários sofrimentos
semelhantes, quer sejam de humanos quer de animais: as nossas dores não contam
mais do que as dos outros animais, por maiores que sejam as nossas capacidades
intelectuais e morais. Julgar que a nossa vida e os nossos interesses têm mais
valor porque pertencemos à espécie humana é moralmente errado e traduz um
preconceito: o especismo. O especismo consiste em, partindo do princípio de que
somos animais superiores, julgarmos que os outros animais nada mais são do que
objetos ou coisas que estão ao serviço dos nossos interesses, sofram o que
sofrerem com isso.
Assim, temos de:
1
‒ Atribuir igual importância ou consideração aos interesses de todos os seres
sencientes capazes de sentir prazer e dor) e
2
‒ Agir de tal modo que possamos maximizar a satisfação dos interesses de todos
os afetados pelas nossas ações.
Deve notar-se que dar aos animais
não humanos igual consideração não implica que tratemos todos os animais da
mesma maneira ou que lhes reconheçamos os mesmos direitos que os seres humanos.
O que exige é que atribuamos aos seus prazeres e dores igual peso ao dos seres
humanos quando se trata de deliberarmos o que fazer.
Da
posição de Singer decorrem algumas importantes consequências práticas. Uma
delas é a defesa do vegetarianismo.
E
quanto à experimentação animal? Adotando a sua perspetiva
utilitarista, Singer afirma que devemos ter o sofrimento animal em conta sempre
que interesses mais relevantes para a maioria dos envolvidos não justifiquem
que se cause dor aos animais. Deste modo, usar animais e fazê-los sofrer para
testar cosméticos ou detergentes, por exemplo, é injustificável. Porquê? Porque
o prazer que os humanos obterão do sofrimento animal – e é muito – não é
superior ao sofrimento animal. Contudo, quando se trata de experimentação
médica com animais e da procura de resposta a doenças graves e debilitantes, o
benefício daí decorrente, desde que com um pequeno número de animais, pode ser
de tal modo relevante que a justifique.
Embora falando de dignidade moral
dos animais, atribuindo-lhes igual importância moral, Singer não fala de
direitos dos animais. Na sua linguagem utilitarista o que importa é o bem-estar
ou a satisfação das preferências de cada indivíduo. Em nome desse valor,
devemos escolher sempre as ações cujo saldo final apresente mais benefícios
para todos os envolvidos do que prejuízos. Neste sentido, devemos tornar-nos
vegetarianos, não porque os animais não humanos têm direito a viver, mas
porque, fazendo o balanço dos benefícios e dos prejuízos de uma ação, os aqueles
saem claramente prejudicados por um hábito nosso ‒ o consumo de carne. E porque
são claramente prejudicados? Porque temos alternativa. O consumo de carne não é
necessário à nossa sobrevivência e ao nosso bem-estar, sendo mesmo prejudicial
de acordo com a ciência médica.
2. Tom Regan: Os animais têm
direitos morais.
O que
são direitos morais? São direitos que reconhecemos a certos seres em virtude
de possuírem determinadas caraterísticas moralmente relevantes. Não são
direitos legais porque esses são atribuídos pelo poder político e podem ser
retirados por este se assim o entender. Quando se fala dos direitos dos
animais, estamos a referir-nos exclusivamente a direitos morais. Há dois tipos de direitos morais: os
negativos e os positivos. Os direitos morais negativos são direitos de não
interferência. O direito à vida de um ponto de vista negativo é o direito a não
ser morto. Outros direitos morais negativos são o direito de não ser
prejudicado, de não ser torturado, de não ter a sua integridade física violada.
Os direitos morais positivos são o direito a assistência e a algum benefício. É
o caso dos direitos à educação e à assistência médica ou cuidados de saúde.
Ao defender os direitos dos animais, Regan está a
referir-se aos direitos morais negativos. Vai procurar estabelecer que os
animais têm o direito à não interferência. Está a pensar em direitos como não
ser morto, não ser torturado e no direito à integridade física. Se os animais
tiverem estes direitos, então o que atualmente fazemos aos animais viola esses
direitos e é claramente errado.
Tom Regan tem consciência de que só uma teoria ética
fundada em direitos pode dar conta de forma adequada da ideia de que os animais
devem ser objeto de consideração moral, de que não podemos tratá-los conforme
nos apetece.
Na teoria ética de Singer, o termo «direito» não
desempenhava um papel fundamental: atribuir a um ser uma consideração moral
igual não implica atribuir-lhe direitos. Não há ligação lógica necessária entre
interesses e direitos. Regan pensa que sem reconhecer que os animais têm
direitos não podemos proteger adequadamente os seus interesses.
Segundo Regan, temos o dever moral fundamental de tratar
com respeito todos os sujeitos de uma
vida (os titulares de um vida são seres dotados de perceção, capacidade de
sofrer, de emocionar-se, de recordar, etc.). Se temos esse dever em relação aos
animais sujeitos de uma vida, então, correlativamente, eles têm direitos. E
como tratar alguém com respeito consiste em não o tratar como meio para um fim,
então reconhecemos no que respeitamos algo que tem um valor inerente, não
instrumental. O valor inerente é o valor próprio de um indivíduo
independentemente da sua utilidade ou da sua bondade, da sua cor, da sua
nacionalidade e da sua espécie. Em suma, independentemente do valor que lhes
possamos atribuir, de gostarmos de uns e não de outros, os animais não humanos
têm direitos. E, tendo-os, devem ser respeitados. Que animais têm direito a ser
respeitados em virtude de possuírem um valor inerente? Somente os seres conscientes
de si mesmos, capazes de experimentar prazer e dor, de ter crenças e desejos,
de realizar ações intencionais, de ter um sentido do futuro. Por outras
palavras, segundo Regan, quase todos os mamíferos mentalmente normais de um ano
ou mais. Contra uma «ética especista», Regan defende a necessidade de uma ética
interespecífica que reconheça a pertença de grande parte das espécies animais a
uma mesma comunidade moral.
Mas poderá objetar-se: os seres humanos são agentes, isto
é, seres capazes de aplicar princípios morais, de entenderem que a posse de
direitos implica muitas vezes restrições consagradas no termo dever. Mas nem só
os agentes morais têm direitos morais. Há indivíduos, como as crianças de pouca
idade e os deficientes mentais, a quem são reconhecidos direitos morais e que
não cumprem os requisitos para serem agentes morais. A indivíduos nessas
condições dá Regan o nome de pacientes morais e nesse grupo inclui também
grande parte dos animais não humanos. Assim, a comunidade moral é constituída
por agentes morais e pacientes morais.
O
reconhecimento dos direitos dos animais enquanto pacientes morais que devem ser
tratados justamente implica, para Regan, o fim da criação de animais para
consumo alimentar, da experimentação com animais, da caça e do uso de animais
em diversas formas de entretenimento (circo, tourada ou rodeios).
3. Carl Cohen: Os animais não têm
direitos.
«Talvez chegue o dia em que a restante
criação animal venha a adquirir os direitos de que só puderam ser privados
pela mão da tirania. Os Franceses já descobriram que o negro da pele não é
razão para um ser humano ser abandonado sem remédio aos caprichos de um
torcionário. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a
pilosidade da pele ou a terminação do os
sacrum são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser sensível
ao mesmo destino. Que outra coisa poderia traçar uma linha insuperável? Seria
a faculdade da razão ou, talvez, a faculdade do discurso? Mas um cavalo
adulto é, para lá de toda a comparação, um animal mais racional, assim como
mais sociável que um recém-nascido de um dia, de uma semana ou mesmo de um
mês. Mas suponhamos que não era assim; de que serviria? A questão não está em
saber se eles podem pensar ou falar, mas sim se podem sofrer.»
Jeremy
Bentham, Introdução aos Princípios da
Moral e da Legislação.
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Neste texto, Bentham defende que o critério para não
discriminar os animais e eventualmente julgar que são merecedores de
consideração moral é o facto de serem capazes de sentir prazer ou dor.
Dificilmente alguém discordará de Bentham: os animais
podem sentir dor e podem sofrer. Devemos ter isso em conta. Mas será isso
suficiente para os julgarmos merecedores de consideração moral? Podemos a
partir deste facto indiscutível partir para a afirmação de que têm direitos?
Um filósofo como Kant pensa que os animais não são por si
dignos de consideração moral. Não temos deveres diretos para com os animais.
Os animais não são seres racionais.
«Se um homem abater o seu cão por
este já não ser capaz de o servir, não infringe o seu dever em relação ao cão,
pois o cão não pode julgar, mas o seu ato é desumano e fere essa humanidade que
ele deve ter em relação aos seres humanos. Para não asfixiar os seus
sentimentos humanos, tem de praticar a generosidade para com os animais, pois
aquele que é cruel para com os animais rapidamente se torna duro na forma como
lida com os homens.»
Kant, Lições de Ética.
Por outras palavras, os animais só indiretamente são
merecedores de consideração. Ao trata-los bem, devemos ter em vista o impacto
da nossa ação noutros seres humanos. Tratar bem os animais é dar sinal da nossa
disposição moral, não só para respeitar o que é propriedade de outros – e os
animais domésticos eram coisas que alguém possuía –, como também de uma
disposição para respeitar os seres humanos. Contribuímos para que os outros
acreditem que não admitimos a crueldade e o desrespeito a respeito de nada nem
de ninguém.
Segundo Kant, os animais estão excluídos da comunidade
moral porque não são seres racionais. Por não serem criaturas racionais, são
incapazes de compreender regras morais e sobretudo o que são deveres e
responsabilidades morais. Só numa relação em que cada uma das partes assume
deveres e responsabilidades faz sentido falar de direitos.
Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, Carl Cohen,
não negando que devemos ser amáveis com os animais e que eles sofrem com os
maus tratos que lhes possamos infligir, recusa
que os animais tenham direitos.
Cohen começa por lidar com a seguinte objeção: O que
acontece com os seres humanos que, por alguma razão, são incapazes de assumir
deveres e responsabilidades? Não têm direitos? Estamos errados em
atribuir-lhos?
A resposta de Cohen é esta: a maioria das pessoas é capaz de pensamento racional e de compreender o
que são deveres. O respeito que estas merecem deve extensível às poucas que não
têm as capacidades referidas. Porquê? Cohen pensa que a pertença à comunidade
moral supõe que se pertença a uma comunidade humana, a única na qual falar de
direitos e deveres faz sentido. Assim, uma pessoa muito afetada pela doença
de Alzheimer ou em estado de senilidade avançado não é propriamente um agente
moral. Na verdade, é incapaz de distinguir direitos de deveres, de agir com
base em intenções morais, o seu comportamento já não obedece a regras morais.
Não sendo um agente moral – uma
pessoa que age baseada em preocupações morais – é, contudo, afirma Cohen, um paciente moral. Não compreende o que
são deveres, o que é o certo e o errado, mas tem direitos. Continua a ter valor
intrínseco por ser uma pessoa, independentemente de outras considerações. Temos
a obrigação de o tratar com respeito porque integra um mundo – o humano – em
que as obrigações não desaparecem só porque uma pessoa deixou de ser útil ou se
tornou incapaz de compreender o que distingue o certo do errado. Assim, mais do
que possuir a capacidade de compreensão moral – de distinguir o certo do
errado, de saber que há obrigações que temos de cumprir mesmo que não seja do
nosso interesse, etc. –, o que faz com que um ser tenha direitos é fazer parte
de uma comunidade humana. Basta esse facto para merecerem respeito e terem
dignidade moral.
Cohen acrescenta que, mesmo que alguns animais pareçam
compreender os seus «deveres», o que realmente acontece é que esse entendimento
é baseado no treino do reforço e da punição. Não se trata de uma verdadeira
compreensão do que são deveres. Assim sendo, não é correto dizer que os animais
têm direitos. Essa compreensão envolve o entendimento de que a relação moral é,
em certo sentido, um contrato social. Se sou capaz de compreender as obrigações
associadas a um contrato – escrito ou oral –, então sou um ser racional e devo
ser tratado com respeito. Os seres que não conseguem compreender as implicações
de um contrato não assumem deveres e, por conseguinte, não têm direitos. Os
animais nada nos podem exigir. Nós é que devemos atribuir-nos obrigações a seu
respeito.
ATIVIDADES
1. O
que significa atribuir estatuto moral aos animais?
R.: Significa
reconhecer que merecem respeito em virtude não da nossa boa vontade ou
amabilidade mas devido a caraterísticas próprias. A atribuição de estatuto
moral aos animais dá-se de dois modos: ou reconhecendo que têm interesses – em
não sofrer e em continuar a viver ‒ ou reconhecendo
que têm direitos.
2. O
que entende Singer por especismo?
R.: O especismo
é a atitude que consiste em não atribuir importância moral aos animais não
humanos simplesmente pelo facto de que não são membros da nossa espécie. Por
outras palavras, o especismo consiste, neste caso particular, em afirmar que só
temos obrigações morais em relação aos membros da nossa espécie.
3.
Por que razão é o especismo condenado por Singer?
R.: O especismo é condenado porque impede uma
avaliação imparcial dos interesses de todos os envolvidos numa dada situação.
Tratando de forma diferente seres que do ponto de vista moral são iguais ‒
todos os seres capazes de sentir dor ou prazer têm interesse em não sofrer e em
não serem mortos. O especismo é uma forma injusta de discriminação.
4.
Leia o texto seguinte e responda às questões.
«Se um ser sofre,
não pode haver justificação moral para a recusa de tomar esse sofrimento em
consideração. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade
exige que o sofrimento seja levado em linha de conta em termos igualitários
relativamente a um sofrimento semelhante de qualquer outro ser, tanto quanto é
possível fazer comparações aproximadas. Se um determinado ser não é capaz de
sofrer nem de sentir satisfação nem felicidade, não há nada para tomar em
consideração. É por isso que o limite da senciência (para usar o termo como uma
abreviatura conveniente, ainda que não estritamente precisa, da capacidade de
sofrer ou de sentir prazer ou felicidade) é a única fronteira defensável da
preocupação pelo interesse alheio. Marcar esta fronteira com alguma
caraterística como a inteligência ou a racionalidade seria marcá-la de modo
arbitrário.»
Peter Singer, Ética Prática.
4.
1. Qual é o critério que Singer adota para reconhecer importância moral aos
animais não humanos?
R.: Adota o critério da senciência (a
capacidade para sentir dor ou prazer) como critério para atribuir a um ser
importância moral. Isto implica consideração pelo seu bem-estar e pelos seus
interesses próprios.
4.
2. Por que razão Singer escolhe o critério da senciência para atribuir
importância moral a um ser e não caraterísticas como a racionalidade e a
inteligência? Tem em mente somente os interesses dos animais não humanos?
R.: Adotar a senciência
como critério para a atribuição de estatuto moral a um ser implica para Singer
que a inteligência e a racionalidade não são os critérios adequados. Pense no
caso do extermínio de seres humanos e na tortura. São atos moralmente
repugnantes. Mas porquê? Porque desrespeitaram a racionalidade das vítimas?
Não. São-no porque infligiram angústia e dor às vítimas e não respeitaram o seu
interesse em continuar a viver e a não sofrer. Não submetemos seres humanos a
experimentações médicas, por exemplo, com produtos tóxicos porque isso os iria
fazer sofrer. A capacidade de sofrer é o critério último para haver
consideração moral por um ser. A racionalidade e a inteligência não são
critérios suficientes. Aqui, ao defender os interesses dos animais não humanos,
Singer pensa que de um ponto de vista lógico está também a defender os
interesses de pessoas senis ou com deficiências mentais graves. Embora não
possam raciocinar podem sofrer. É a capacidade de sentir dor ou prazer que
explica em última análise por que consideramos imoral submeter humanos a
experimentações como as que os nazis submeteram os judeus e pessoas com
diversas deficiências físicas e cerebrais. Se o critério fosse a racionalidade,
não haveria base para impor limites morais à experimentação com as pessoas
anteriormente referidas. Se não devemos basear-nos nas condições cognitivas de
um ser para tomar em conta e respeitar os seus interesses, fica estabelecido
que a capacidade de sentir dor ou prazer é o critério adequado.
Mas não o é somente no
interior da espécie Homo sapiens. Adotar
a senciência como critério para a
atribuição de estatuto moral implica reconhecer que todos os seres sencientes, e não só os humanos, possuem esse
estatuto. Todos os animais são iguais sob este aspeto: todos podem sofrer e
todos têm interesse em não sofrer pelo menos desnecessariamente.
5.
Pense num caso como o da utilização de animais em experiências científicas e
exponha o ponto de vista utilitarista de Singer.
R.: O que exige a perspetiva utilitarista?
Exige o seguinte:
1. Que consideremos imparcialmente os interesses de todos os
envolvidos;
2. Que escolhamos a ação que maior
probabilidade tem de produzir o melhor resultado para os que por ela são
afetados.
A experimentação com
animais só é permissível no caso de haver grande probabilidade de os benefícios
no plano da saúde suplantarem os prejuízos e tentando reduzir-se tanto quanto
possível o sofrimento infligido aos animais. Mais uma vez não se trata de uma
proibição absoluta, mas de uma ponderação das consequências de uma ação.
6.
Em termos gerais, o que distingue a teoria de Regan da de Singer?
R.: Singer reconhece
que os animais têm interesses que devem ser imparcial e obrigatoriamente tidos
em conta quando ponderamos as consequências das nossas ações e hábitos.
Contudo, a atribuição de direitos aos animais não depende da aceitação destas
ideias. Não precisamos de falar de direitos dos animais para que a consideração
imparcial dos seus interesses seja uma obrigação moral.
Regan defende que
atribuir um estatuto moral aos animais e ter em conta os seus interesses
depende de lhes reconhecermos direitos.
7.
A expressão «sujeitos de uma vida» é aplicada por Regan aos animais. O que
significa?
R.: Os «sujeitos de uma
vida» são seres que experimentam sensações de dor e de prazer, que têm
interesse no seu bem-estar, em não sofrer e em continuar a viver, que têm uma
vida mental mais ou menos complexa conforme os casos. Não são coisas nem
objetos ou instrumentos.
8.
Qual a importância de considerar que os animais não humanos são «sujeitos de
uma vida»?
R.: O facto de algo ser
sujeito de uma vida confere-lhe valor intrínseco e, portanto, dignidade moral.
Se os animais não humanos são «sujeitos de uma vida», então têm valor
intrínseco e não meramente instrumental. Não são meros recursos ao nosso dispor
seja para alimentação, investigação científica ou para diversão. Se têm valor
intrínseco ou próprio – não lhes é conferido por ninguém nem deve ser retirado
seja por quem for –, então têm direitos.
9.
Leia o texto seguinte:
«Os animais carecem de muitas das capacidades que os seres
humanos possuem. Não podem ler, fazer matemática avançada, construir uma
estante ou fazer baba ghanoush. Mas muitos seres humanos também não, e mesmo
assim não dizemos (nem devemos fazê-lo) que esses seres humanos têm menos valor
intrínseco, ou menos direito a serem tratados com respeito do que os outros.»
Tom Regan, Em Defesa dos
Direitos dos Animais.
9.1.
Segundo Regan, os «sujeitos de uma vida» têm todos igual valor moral? Não
seremos nós, dada a nossa superior inteligência, dada a capacidade de pensar e
de raciocinar e também as grandes civilizações e obras que criámos, «sujeitos
de uma vida» com valor especial e incomparável?
R.: Segundo Regan, por
mais admirável que seja a espécie humana, nenhum sujeito de uma vida tem mais
valor do que outro. Todos têm exatamente o mesmo valor moral. O valor
intrínseco de um ser não varia conforme o grau de inteligência ou de
competência intelectual.
9.2.
Como defende Regan a sua tese?
R.: Pode parecer
estranho ver Regan a defender que o ser humano tem tanta dignidade ou valor
moral como um urso ou um cavalo, mas Regan defende a sua ideia com um argumento
poderoso: é evidente que só os seres humanos são capazes de raciocínio
discursivo, de criar ciência e obras de arte. Os animais não. Contudo, devemos
pensar que muitos seres humanos também não exibem essas competências. Basta
pensar no caso de pessoas com doenças degenerativas a nível cerebral ou seres
humanos em estado de coma e também no caso dos bebés. O que que Regan dizer?
Que se o valor intrínseco de um ser variar com as suas capacidades intelectuais
abrimos a porta à discriminação injusta dos que são ‒ ou se supõe serem ‒
intelectualmente menos capazes. Ou seja, não atribuir a mesma importância moral
a todos os «sujeitos de uma vida» tem consequências perigosas e basta consultar
a história da humanidade para perceber que o extermínio e a escravatura se
basearam precisamente nessa recusa da igualdade moral.
Atualmente recusamos
discriminar moralmente as pessoas com base nas suas diferentes aptidões
intelectuais. Caso contrário teríamos atribuído maior estatuto moral a um
Galileu e a Einstein e atribuiríamos maior importância moral aos grandes
intelectos do nosso tempo. Como não o fazemos, não podemos basear-nos nessa
diferenças para recusar aos animais valor moral idêntico ao dos humanos. Sejamos
homens ou mulheres, muito inteligentes ou não, da etnia A ou B, defendemos que
os seres humanos têm igual estatuto moral e que portanto têm direitos iguais.
Se recusarmos igual valor moral e iguais direitos aos animais estamos a ser
incoerentes.
10.
Leia o texto seguinte.
«A igualdade que
encontramos no utilitarismo não é do tipo que um defensor dos direitos humanos
ou dos animais deve ter em mente. Não há lugar no utilitarismo para direitos
iguais para diferentes indivíduos porque não há aí lugar para a sua dignidade
ou valor intrínseco. O que tem valor para o utilitarista é a satisfação dos
interesses dos indivíduos, não os indivíduos que possuem esses interesses [...]
A posição utilitarista conduz a resultados que pessoas imparciais consideram
moralmente insensíveis. É errado matar uma pessoa só porque fazê-lo implica
melhores resultados para os outros. Um fim bom não justifica um mau meio. Uma
boa teoria moral tem de explicar porquê. O utilitarismo falha neste ponto e,
portanto, não é a teoria que procuramos”.
Tom
Regan, Em Defesa dos Direitos dos Animais.
10.1.
Por que razão Tom Regan rejeita a perspetiva utilitarista?
R.: Para Regan, a
grande fraqueza da perspetiva utilitarista de Singer é que não garante que os
animais não sejam usados como simples meios ou instrumentos ao dispor dos
interesses dos humanos. Porquê? Porque baseia a importância moral dos animais
nos interesses dos animais e não no seu valor intrínseco. Ora, nada garante
que, numa perspetiva imparcial, os interesses dos animais sejam suplantados
pelos interesses dos humanos, como pode acontecer no caso das experimentações
médicas para combater doenças. Para Regan, os animais têm valor
independentemente da utilidade que possam ter na satisfação dos interesses de
outros. O valor de um animal não pode depender da sua utilidade. Não lhe parece
que isso seja claro na perspetiva utilitarista porque o que conta é a
maximização do interesse geral. Se os fins justificam os meios, alguém tem de
«pagar a fatura». A única obrigação na perspetiva utilitarista é maximizar a
satisfação dos interesses dos envolvidos.
A teoria utilitarista
na versão a que Regan se refere não reconhece valor intrínseco aos indivíduos –
estes não têm valor em si mesmos e por isso não têm direitos –, mas unicamente
atribui valor aos interesses dos indivíduos. Ora, o princípio de utilidade
considera obrigatório que:
1. Consideremos imparcialmente os interesses de todos os envolvidos;
2. Escolhamos a ação que maior probabilidade tem de produzir o
melhor resultado para os que por ela são afetados.
Há aqui um problema: a
ação é avaliada pelo seu valor utilitário para a maioria dos envolvidos. Isto
abre espaço para ações que, em nome do bem-estar geral, os animais possam ser
usados e sacrificados em nome da maximização dos interesses ou do melhor
resultado global. Uma teoria justa sobre o valor dos animais – e também das
pessoas ‒ não pode basear-se na ideia de que o valor de cada animal depende da utilidade que tenha para outros seres.
Tem de admitir que todos os «sujeitos de uma vida» têm valor em si mesmos. O
que conta são os indivíduos em si mesmos e não o interesse geral. Não
reconhecendo valor intrínseco aos animais, o utilitarismo de Singer não é uma
boa teoria para defender a sua importância e valor morais.
10.2.
Que consequências práticas derivam da teoria de Regan?
R.: Para Regan, é
moralmente errado tratar os animais em função dos nossos interesses. A ideia de
imparcialidade na ponderação dos resultados de uma ação é rejeitada porque um
prejuízo é um prejuízo. Mesmo que os prejuízos que possamos causar aos animais
possam ser compensados por um número maior de benefícios globais (distribuídos
de maneira imparcial) isso está errado Porquê? Porque todos os sujeitos de uma
vida possuem igual valor e por isso têm de ser tratados com igual respeito.
Enquanto a teoria de
Singer era tendencialmente abolicionista de certas a que sujeitávamos os
animais, a teoria de Regan, por se basear na ideia de direitos, é
declaradamente abolicionista. O nosso bem-estar ou o bem-estar geral pode
diminuir se, por exemplo, acabarmos com a utilização de animais em pesquisas
contra doenças, mas isso é o que moralmente está certo. Os nossos interesses
não são razão para violar direitos. E os animais têm direitos iguais. Não
usamos pessoas em experimentações médicas porque julgamos que não as podemos
colocar ao serviço dos nossos interesses por mais importantes que eles sejam. E
não as usamos porque reconhecemos que são sujeitos de uma vida. Mas os animais
também o são. Impõe-se que sejamos consequentes e não usemos os animais porque
nos convém.
Se é contundente na
denúncia destes abusos, Regan ainda mais o é nos casos da utilização dos
animais em espetáculos como o circo, as touradas, a caça recreativa. Escusado
será dizer que matar animais para os comer é o atentado mais gritante contra os
direitos dos animais.
11.
Resuma a posição de Cohen sobre o problema dos direitos dos animais.
R.: Eis o argumento de Cohen:
1. Só faz sentido falar
de direitos entre seres que pertencem a uma comunidade moral que entenda que
entenda que são reivindicações legítimas dos seus portadores.
2. A comunidade moral é
constituída por seres que sabem que os direitos estão ligados a obrigações
morais e que compreendem que uma coisa são os seus interesses e outra o que é
correto e justo.
3. Os seres humanos
possuem estas capacidades de compreensão da vida moral.
4. Os animais não
possuem a capacidade de compreender a ligação entre deveres e direitos e de
aplicar e agir segundo regras morais.
5. Os animais não fazem
por isso parte da comunidade moral.
6. Como só quem faz
parte dessa comunidade pode ter direitos, não é moralmente errado usar os
animais de acordo com o nosso interesse.
12.
Considere a seguinte afirmação: «A posição de Cohen contra a ideia de que os
animais têm direitos não é especista». Está de acordo?
R.: À primeira vista,
podemos pensar que não há especismo. Com efeito, o especismo consiste em
defender que temos obrigações a respeito dos membros da nossa espécie porque
são membros da nossa espécie. Cohen defende que não temos deveres em relação
aos animais não porque não sejam da nossa espécie mas porque não fazem parte da
comunidade moral. Contudo, mais tarde perante o problema de como tratar seres
humanos que não têm capacidade moral, Cohen acaba por ser especista porque
afirma que eles pertencem a essa comunidade porque são humanos. Falta coerência
nesta introdução dos humanos não capacitados e na exclusão dos animais, dada a
similaridade das condições.
13.
Leia o texto seguinte.
«Os conceitos de certo e de errado são completamente estranhos
aos animais, não sendo concebível que estejam ao seu alcance ou que lhes sejam
aplicáveis. Quando usamos animais em investigações devemos, pois, proceder
humanamente — mas nunca poderemos violar os direitos dos animais porque, para
falar sem rodeios, eles não têm nenhum direito. Os direitos não se lhes
aplicam.»
Carl Cohen, Os Animais Têm Direitos?
13.
1. Está de acordo com o argumento de Cohen?
R.: Parece claro que os
animais não têm capacidade de compreensão moral, não agem segundo regras morais
e não sabem que há reciprocidade entre direitos e deveres. Contudo, podemos
objetar que uma pessoa em estado de senilidade avançado também perdeu essa capacidade.
Deixamos de sentir obrigações em relação a essa pessoa? Não. Isso significa que
uma coisa é ela compreender direitos outra é que esses direitos não lhe sejam
aplicáveis. São-no. Então que razão lógica temos para recusar direitos aos
animais? Não será que à pessoa em causa lhe reconhecemos valor intrínseco e por
isso a tratamos com respeito? Mas, dado este facto, que razão temos para
recusar igual tratamento aos animais? São ambos pacientes morais se adotarmos a
perspetiva de Regan. Parece que não ser membro da comunidade moral não retira a
um ser dignidade moral e não nos dispensa de obrigações morais a seu respeito:
há agentes morais e pacientes morais: O que têm em comum? Serem dignos de
respeito. Assim sendo, os animais e os humanos estão, deste ponto de vista, no
mesmo barco. Há igualdade de direitos embora haja interesses e direitos
diferentes.
14.
Leia o texto seguinte.
«Se Regan tiver
razão quanto ao estatuto moral dos ratos, nós, seres humanos, não poderemos ter
alguma vez o direito de os matar – a não ser que, por acaso, um rato ataque uma
pessoa ou um bebé humano, o que acontece por vezes; nessa situação, suponho que
o direito à autodefesa poderá fazer a diferença. Mas não se pode descrever
honestamente uma investigação médica como um caso de autodefesa, e as
investigações médicas exigem que se matem muitos ratos. Logo, as investigações
médicas que dependam do uso de ratos ou outros animais terão de acabar.»
Carl Cohen, Os Animais Têm Direitos?
14.
1. Está Cohen de acordo com Regan quanto ao fim das investigações médicas com
animais?
R.: Não. Cohen retira
da tese de Regan uma conclusão com a qual não está de acordo. Apesar de
reconhecer que os direitos são para ser respeitados, não admitindo que os
animais tenham direitos, conclui que não há nada de errado com as
experimentações científicas com animais. Estas são permissíveis e a senciência
– a capacidade de sentir dor e prazer – unicamente serve para evitar sofrimento
desnecessário, mas não para impedir sofrimento em nome de valores mais altos.
Excelente material!
ResponderEliminarAgora preciso de fontes do Direito, doutrinadores em prol dos animais... rs