Leia
atentamente a exposição seguinte para de seguida poder responder às
questões propostas.
TEXTO
EXPOSITIVO DA TEORIA
As
teorias libertistas em geral defendem que há ações livres. Com
isso, querem dizer o seguinte:
1
– Há ações que não são meros momentos ou elos de uma cadeia
causal em que o futuro é determinado pelo passado, ou seja, em que
acontecimentos anteriores são a causa necessária dos acontecimentos
seguintes.
2
– A afirmação da liberdade implica uma quebra ou uma ruptura na
sequência causal de acontecimentos do mundo natural reconhecendo –
se ao agente a capacidade de iniciar pelas sua escolhas uma nova
série de acontecimentos. As nossas escolhas retiram ao passado o seu
peso insuportável. Não somos o que o nosso passado faz de nós.
O
existencialismo de Jean – Paul Sartre é um dos mais famosos
exemplos de defesa radical do libertismo.
Sartre
começa por fazer uma distinção muito importante entre seres
humanos e objetos físicos.
Todos os objetos físicos têm uma essência – um conjuntos de
caraterísticas que os definem e determinam o seu comportamento.
Assim, um livro é um objeto que tem certas propriedades que
determinam que não quebra quando cai – ao contrário de um copo –
arde quando atirado ao fogo e não serve para beber água. Os objetos
físicos não têm liberdade. A sua essência determina como existem,
como se comportam sempre e o que lhes pode acontecer. No caso dos
objetos físicos, a essência precede e determina a existência. A
natureza dotou – os de certas qualidades que determinam que se
comportarão sempre do mesmo modo. São aquilo que receberam.
Se
o determinismo fosse verdadeiro seríamos como os objetos físicos.
Mas não é esse o caso, segundo Sartre, apesar de fazermos também
parte do mundo natural. Cada um de nós é o autor do livro em que a
nossa vida consiste e vamos escrevendo a pouco e pouco os seus
capítulos. Por que razão somos diferentes dos objetos físicos?
Somos diferentes porque nos
seres humanos a existência precede a essência. Não temos uma
essência que determine como vamos ser – cobardes ou corajosos,
conservadores ou revolucionários, altruístas ou egoístas, ateus ou
crentes, etc., – nem como vamos agir. Os
objetos têm o seu comportamento pré – determinado e fixado pela
sua essência – são inquebráveis, inflamáveis ou impermeáveis,
resistentes ou frágeis – e por isso comportam – se de acordo com
essas caraterísticas atribuídas pela natureza – quebram – se
quando caem, ardem quando queimados e rebentam quando submetidos à
pressão de certas forças.
Segundo
Sartre, não há no ser humano nada de pré – determinado. Não
somos o que recebemos quer através da transmissão genética quer
através da transmissão cultural. O que quer isto dizer? Somos
aquilo que fazemos, somos o resultado das nossas escolhas. Antes de
existir nada somos – não temos uma essência. O ser humano nada
mais é do que o conjunto das suas ações. Através das nossas
escolhas e ações construímos a nossa essência, o nosso modo de
ser, a nossa imagem. Mas Sartre tem o cuidado de salientar
imediatamente que se nada há de pré – determinado no ser humano
também nele nada é fixo ou adquirido de uma vez por todas. Ao
construirmos uma certa imagem de nós – uma essência ou maneira de
ser – não ficamos prisioneiros do que fizemos. A todo e qualquer
momento podemos mudar o que somos. Não somos o que fomos. Somos o
que vamos sendo ou fazendo de nós. Só quando morremos e não
podemos mais escolher e agir é que temos uma essência e podemos
definir um ser humano. Até lá temos de constantemente criar a
imagem que de nós vai ficar. Imagine que alguém se comportou de uma
forma cobarde. A imagem com que ficamos dessa pessoa através desse
ato é a de alguém cobarde. Mas como o que somos depende do que
fazemos, nada impede que essa pessoa modifique a sua imagem
comportando – se corajosamente. Nenhum ato passado define de uma
vez por todas o que somos.
Como
não existe uma natureza humana pré-fixada, como em cada ato ou
escolha podemos modificar o que somos, não podemos dizer, por
exemplo, que o ser humano é naturalmente
sociável, ou egoísta, ou bom, ou agressivo. Só somos, por exemplo,
sociais se nos envolvermos em atividades sociais, ou bons se
praticarmos atos bons. São os nossos atos que definem aquilo que
somos. A jovem que recusa ir a um concerto agradável e fica em casa
a cuidar do irmão doente age, segundo o determinista radical,
determinada pela educação que recebeu. Segundo Sartre, essa
educação é uma condicionante da ação mas não a sua causa
determinante. Não dirá que a educação fez da jovem o que ela é
porque em cada ato ou escolha ela pode romper com o forte sentido do
dever que caracteriza a educação recebida ou reafirmar esse
compromisso.
O
facto de em nós nada estar definido de uma vez por todas,
permite-nos formar planos e projectos que não são o simples
desfecho causal do passado ou do presente, do que somos ou fomos, do
que fizemos ou fazemos. A liberdade é para Sartre o modo de ser da
realidade humana que em cada escolha suspende o passado e o presente.
Cada escolha que efetuo, cada projeto que me proponho realizar
significam que o futuro não é uma ramificação do passado ou do
presente, mas sim o resultado de uma livre escolha. Mediante os seus
projetos e escolhas o ser humano afirma a sua radical liberdade. O
futuro não está pré-fixado. Está, enquanto a vida dura, sempre em
aberto.
Embora
não haja uma natureza humana universal há uma condição humana
comum. Todos nós em ambientes e culturas diferentes enfrentamos os
mesmos desafios, as mesmas questões e as mesmas limitações
próprias da nossa condição de seres humanos. Chegados
a este ponto uma questão surge: Não serão essas limitações
obstáculos que podem negar a afirmação tão radical da liberdade
por parte de Sartre? Não será um exagero dizer que o homem é o
dono e senhor do seu destino?
Sartre
pensa que não.
Podemos
pensar que há acontecimentos passados e presentes que escapam ao meu
controlo. Não escolhi nascer no Brasil, ser educado numa família da
classe média, ser do sexo masculino, sofrer de miopia, etc. Estes
factos ou acontecimentos são alguns dos dados da minha situação.
Contudo, para Sartre, os factos em si mesmos não têm significado ou
sentido. Somos nós mediante as nossas escolhas e projectos que lhes
atribuímos sentido. Nasci no Brasil. Não posso mudar esse facto.
Mas o que significa para mim esse facto? Que sentido tem? É uma
fonte de orgulho por ser natural de um país muito rico e
industrializado, ou uma fonte de embaraço por esse país ser ainda
um pais com muitos problemas por resolver? E se tivesse nascido na
América? Estaria inchado de orgulho nacionalista por ser natural de
um país que é a grande superpotência atual ou sentir-me-ia
incomodado e embaraçado com o comportamento do meu país em relação
a outros? Agito a bandeira com fervor nacionalista ou queimo-a por
causas dos pecados da grande potência? Tudo isto são escolhas que
eu tenho de fazer e não me são ditadas pelos fatos mas sim pela
minha posição em relação a eles. O
próprio Sartre fala-nos de um padre jesuíta que conheceu quando
ambos foram feitos prisioneiros pelos nazis durante a segunda guerra
mundial. Esse homem parecia uma vítima das partidas desagradáveis
do destino. Tinha ficado órfão bem cedo, o negócio que dirigia
falhou deixando-o na pobreza, as suas relações amorosas terminaram
todas em rotundo fracasso e falhara no acesso a uma carreira de
militar que tanto desejara. Interpretou estes acontecimentos como
sinal de que a sua vocação era servir Deus e não envolver-se em
assuntos mundanos como ter uma família, um emprego e uma carreira.
Sartre afirmou que este foi o sentido que o indivíduo escolheu
atribuir aos
acontecimentos vividos. Mas também poderia ter escolhido ser um
revolucionário. Quer
com isto dizer que os acontecimentos passados não determinam
causalmente o nosso futuro.
Somos nós que decidimos como os factos e os acontecimentos vividos
se encaixam no que atualmente somos e nos nossos projetos. Parece que
o passado pesa como se me perseguisse e determina o que sou mas esse
peso depende dos meus projetos e das minhas ações atuais. Casei.
Estou vinculado a um compromisso que aparentemente limita as minhas
possibilidades de ação mas isso só acontece porque em cada dia eu
reafirmo esse compromisso e me defino como homem comprometido.
Poderia muito bem considerar os votos de fidelidade como um estúpido
erro, como algo que atualmente é uma fastidiosa monotonia e
considerar esse compromisso um simples momento de um passado morto.
Em cada momento da nossa existência criamos o nosso modo de ser
atual. O futuro está sempre em aberto mediante as nossas escolhas,
os nossos planos, sonhos e ambições. Mesmo a continuidade de uma
duradoura relação amorosa significa que continuamente reafirmamos
as nossas escolhas passadas. O passado depende das nossas opções e
não estas daquele.
Podemos
resumir a teoria de Sartre nesta frase: O determinismo reina no mundo
natural ou físico mas a vontade e as suas escolhas não fazem parte
desse encadeamento de causas e efeitos.
A liberdade não é uma propriedade entre
outras que tenhamos como a inteligência ou a beleza. A liberdade é
o nosso modo de ser porque em cada momento da nossa existência
estamos a definir o que somos e só a morte encerra este processo
criativo.
Estamos constantemente confrontados com
possibilidades e escolhas e mesmo recusar escolher e deixar que as
coisas aconteçam é também uma escolha. Dada a nossa radical
liberdade somos responsáveis pelo tipo de pessoa que somos. Recusar
a liberdade e a responsabilidade é estar de má-fé, é mentir a nós
mesmos.
TEXTO
DE SARTRE
“É
estranho que os filósofos tenham argumentado ao longo de milénios
sobre o determinismo e o livre-arbítrio, citando exemplos a favor de
uma tese ou de outra sem primeiro terem tentado explicitar a própria
ideia de ação…Devemos notar em primeiro lugar que uma ação é
em princípio intencional…Ora se assim é, devemos dizer que uma
ação implica como sua condição necessária o reconhecimento de
algo que se deseja, ou seja, o reconhecimento de uma lacuna objetiva
ou de uma negatividade, de algo que falta ou que ainda não existe. A
intenção do imperador Constantino de construir uma cidade cristã
que rivalizasse com Roma ocorreu-lhe ao reconhecer uma lacuna
objetiva… faltava uma cidade cristã.
Isto
significa que desde o momento da conceção desse ato, a consciência
foi capaz de se distanciar do mundo do qual tinha consciência,
deixando o plano do ser (do que existe) para se aproximar do plano do
não – ser (do que ainda não existe).Nenhum estado de facto seja
ele qual for (a estrutura política e económica da sociedade,
estados psicológicos, etc.) pode por si mesma determinar e motivar
qualquer ato. Um acto é uma projeção do ser humano em direção ao
que ainda não é e o que é ou existe não pode de modo nenhum
determinar por si o que não é. A realidade humana é livre porque é
perpetuamente arrancada a si mesma (ao seu passado e ao que
é).Jean-Paul Sartre,
L’Être et le Néant.
1.
“É
estranho que os filósofos tenham argumentado ao longo de milénios
sobre o determinismo e o livre-arbítrio, citando exemplos a favor de
uma tese ou de outra sem primeiro terem tentado explicitar a própria
ideia de ação”.
Por
que razão a discussão em torno do determinismo e do livre –
arbítrio está para Sartre mal colocada?
R:
Está mal colocada porque não se entendeu devidamente o conceito de
acção. Segundo Sartre,
qualquer ação significa que a partir de uma situação presente, de
algo que existe, projetamo-nos em direção a um futuro, a algo que
ainda não existe. Isto implica que somos capazes de nos distanciar
do que existe, do mundo tal como ele é, concebendo e sendo motivados
pelo que ainda não é, por um estado de coisas futuro a que
desejamos dar realidade. A esta capacidade de conceber e ser motivado
pelo que não é dá Sartre o nome de negatividade. O que é (os
acontecimentos passados ou presentes) não pode, segundo Sartre,
determinar o que não é. O ser não pode determinar o não-ser. A
capacidade da nossa consciência de conceber o que ainda não é,
permite-nos formar planos e projetos que não são o simples desfecho
causal do passado ou do presente, do que somos ou fomos, do que
fizemos ou fazemos. A acção
humana é indissociável da liberdade da consciência.
2.
O que significa dizer que “a
realidade humana é livre porque é perpetuamente arrancada a si
mesma (ao seu passado e ao que é)”?
R:
Significa dizer que a
liberdade é para Sartre esse modo de ser da realidade humana que em
cada escolha suspende o passado e o presente. Cada escolha que
efetuo, cada projeto que me proponho realizar significam que o futuro
não é uma ramificação do passado ou do presente, mas sim o
resultado de uma livre escolha. Mediante os seus projetos e escolhas
o ser humano afirma a sua radical liberdade. O futuro não está
pré-fixado. Está, enquanto a vida dura, sempre em aberto. Para
Sartre, o futuro, melhor dizendo, as possibilidades, é que
determinam o que sou. Aquilo que posso ser - e não o passado -
determina o que sou hoje. Esta indeterminação pelo passado- pelo
que já não é – e pelo presente – pelo que é - é a raiz da
liberdade humana.
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