sexta-feira, 10 de abril de 2015

A TEORIA DO CONHECIMENTO DE DAVID HUME EM PERGUNTAS E RESPOSTAS

I
1. Em que consiste o projeto de David Hume?
O projeto de David Hume consiste em analisar a mente humana para determinar as capacidades e os limites do entendimento humano.
2. Quais são os conteúdos da mente?
Os conteúdos da mente são as perceções. Hume divide-as em dois tipos: impressões e ideias.
3. O que distingue as impressões das ideias?
As impressões distinguem-se das ideias pelo grau de força e vivacidade com que se apresentam na mente. Há dois critérios para as distinguir: a) a força e vivacidade com que umas e outras se apresentam. Assim, as ideias são perceções menos intensas e fortes do que as impressões, de que são imagens mentais; b) a ordem ou sucessão temporal da sua apresentação. Assim, como as ideias são imagens das impressões, uma impressão é necessariamente anterior a uma ideia.
4. Que relação estabelece o princípio da cópia entre impressões e ideias?
Segundo o princípio da cópia, as ideias são cópias das impressões. As cópias são menos intensas e vívidas do que as impressões, que estão na sua origem.
5. Por que razão o princípio da cópia implica que não há ideias inatas?
Se as ideias são cópias de impressões e são por isso causadas por estas, então têm uma origem empírica. As nossas ideias formam-se todas a partir da experiência.
6. Como argumenta Hume a favor do Princípio da Cópia?
Hume argumenta que, se as ideias não fossem cópias das impressões, quem não possuísse a capacidade de ter a experiência da cor formaria a ideia de cores, o que é absurdo. Uma pessoa cega de nascença não poderá ter a ideia de branco porque nunca terá a impressão de branco.
7. Que teses empiristas são expressas pelo princípio da cópia?
São as seguintes: do que não há impressão não há ideia. Só conhecemos aquilo de que temos experiência.
8. Impressões e ideias são as unidades básicas do conhecimento. Que tipos de conhecimento existem segundo Hume?
Existem conhecimentos formais (de relações de ideias) e conhecimentos de facto ou factuais.
9. O que distingue conhecimentos de facto de conhecimento de ideias?
Os conhecimentos de ideias ou a priori são constituídos por proposições cuja verdade é necessária ou logicamente impossível de negar e, em geral, por raciocínios demonstrativos ou dedutivos absolutamente certos. Os conhecimentos de factos ou a posteriori são constituídos por proposições cuja verdade é contingente ou logicamente possível de negar e por raciocínios indutivos que não podem aspirar à certeza absoluta
10. Em que se baseiam os nossos conhecimentos de factos?
Baseiam-se na relação de causa e efeito e em raciocínios indutivos. O pressuposto destas relações e inferências é a crença na uniformidade da natureza.
11. Que elementos estão presentes na ideia de relação causal?
Na relação causal estão presentes elementos que são alvo de observação direta (a contiguidade e sucessão ou conjunção constante de dois factos) e que são inferidos (a ideia de que um acontecimento deve necessariamente produzir outro – a ideia de conexão necessária).
12. Por que razão associamos a ideia de causa à ideia de conexão necessária?
Porque entendemos a ligação entre causa e efeito como uma relação que acontece sempre e não só quando observamos dois eventos conjugados e sucedendo um ao outro. Sempre que dois acontecimentos aparecem regularmente conjugados, julgamos que a um se segue necessariamente o outro, de tal modo que a causa tem o poder de necessária ou inevitavelmente produzir o outro.
13. Pode a experiência – o único critério de verdade dos juízos de facto – provar essa conexão necessária?
Não. Quando dizemos que um acontecimento (A) causa necessariamente outro (B), dizemos que A causa sempre B. Ora, causar sempre significa que causou, causa e causará. Mas isto implica que teríamos de ter a impressão deste poder causal no futuro. Contudo, de acontecimentos futuros não temos qualquer impressão sensível. Logo, a experiência não encontra nenhuma impressão que corresponda à ideia de conexão necessária.
14. A que se deve então a nossa crença de que há acontecimentos que estão necessariamente conectados?
Deve-se a um fator psicológico: o hábito. Transformamos uma relação de sucessão temporal constante entre dois factos – a única coisa que a experiência nos pode dar – numa conexão necessária porque habituados a observar dois acontecimentos constantemente conjugados julgamos um não pode acontecer sem o outro. O costume ou hábito gera em nós a crença, a convicção de que aquilo a que chamamos efeito deve seguir-se àquilo a que chamamos causa.
15. Os nossos raciocínios relativos ao conhecimento do mundo têm caráter indutivo?
Sim. O que habitualmente fazemos são generalizações e previsões. Assim, quando supomos que um acontecimento causa sempre outro, prevemos que o surgimento do primeiro será seguido pelo surgimento do segundo.
16. Em que se baseiam as nossas relações causais e a confiança que depositamos nos raciocínios indutivos?
Baseiam-se na crença da uniformidade da natureza, na suposição de que o que sucedeu no passado voltará a acontecer no futuro do mesmo modo.
17. Podemos justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza?
Não porque se trata de uma crença indutiva para a qual só encontramos uma justificação de tipo indutivo, o que é falacioso. Usa-se como justificação o que precisa de ser justificado.
18. O que conclui Hume da sua análise dos problemas da causalidade e da indução?

Conclui que o conhecimento do mundo não é possível porque não podemos justificar nem a crença na causalidade nem a crença na indução. Apesar desta conclusão, há razão para não considerar Hume um cético radical. O conhecimento do mundo não tem um fundamento objetivo, mas o hábito assume o papel de princípio produtor de uma crença natural segundo a qual o mundo funciona como julgamos que funciona.
19. De que depende o nosso conhecimento acerca de questões de facto?
O nosso conhecimento de questões de facto depende da relação de causa-efeito e dos raciocínios indutivos e, em última análise, da crença no Princípio da Uniformidade da Natureza . Os conhecimentos acerca de questões de facto que vão para além da experiência imediata ou passada baseiam-se na relação de causa-efeito e nos raciocínios indutivos. O nosso conhecimento do mundo consiste em descobrir que acontecimentos dão origem a outros e em estabelecer relações causais entre eles. Por exemplo: o enunciado «A queda dos corpos resulta da força da gravidade» estabelece uma relação de causa-efeito entre a força da gravidade (causa) e a queda dos corpos (efeito). Por relação causal entendemos uma conexão necessária entre acontecimentos de tal ordem que, sempre que, em certas condições, um deles acontece, acontece também inevitavelmente o outro. É nesta conexão entre acontecimentos que, supostamente, tem origem a nossa ideia de relação causal. Outro ingrediente essencial do nosso conhecimento do mundo são os raciocínios indutivos. Sempre que queremos ir além da mera experiência imediata ou passada, temos de raciocinar indutivamente, fazendo previsões e generalizações. São os raciocínios indutivos que me permitem afirmar que o Sol vai nascer amanhã (previsão) ou que um corpo dilata sempre que é aquecido (generalização). Na base de todos os raciocínios está, segundo Hume, a crença no Princípio da Uniformidade da Natureza. Assim, para determinar se o conhecimento acerca de questões de facto está justificado, pensa Hume, é necessário averiguar se as crenças na causalidade e na uniformidade da natureza estão justificadas

20. Em que consiste a ideia de relação de causa-efeito ou de causalidade?
Consiste na ideia de conexão necessária entre acontecimentos, isto é, na ideia de que, sempre que, em certas condições, acontece A, acontece inevitavelmente B, de tal maneira que A produz necessariamente B.
21. Segundo Hume, todo o conhecimento acerca de questões de facto que vá além da experiência imediata (ou passada) baseia-se na relação de causa-efeito. Será que podemos justificar esta relação?
Não. Ou a relação de causa e efeito pode ser conhecida a priori ou baseia-se inteiramente na experiência. Ora, segundo Hume, esta relação não pode ser conhecida a priori. Se fosse possível saber sem recurso à experiência que certos factos têm o poder de causar outros, poderíamos antecipar, sem nunca ter visto algo semelhante, que o impacto de uma bola de bilhar noutra bola de bilhar produz o movimento da segunda. No entanto, sem experiência não é possível saber nenhuma destas coisas. A experiência também não pode justificar a relação de causa e efeito. A experiência apenas pode revelar entre dois acontecimentos uma sucessão e conjunção constante, e nada permite afirmar que o primeiro tenha realmente poder para produzir o segundo, estabelecendo assim uma relação de dependência necessária do efeito em relação à causa. Portanto, o conhecimento da relação de causa-efeito não pode ser obtido a priori – independentemente da experiência – nem a posteriori – por intermédio da experiência.
22. Explique, de acordo com a filosofia do conhecimento de David Hume, a relação entre hábito e inferência causal.
Para Hume, a nossa ideia de inferência causal não tem uma origem objetiva, isto é, na própria realidade, mas é o resultado de um mecanismo psicológico subjetivo a que dá o nome de hábito. Não existe qualquer justificação, racional ou empírica, para a nossa crença na existência de relações causais. É o hábito baseado em repetições passadas, em que sempre que um fenómeno ocorria um outro se lhe seguia, que nos leva a crer, isto é, ter a expetativa de que um é causa e o outro efeito e que estão necessariamente conectados. Com base no hábito e não na razão ou nos próprios objetos, acreditamos na repetição futura dos acontecimentos.
A explicação de Hume baseia-se em fatores psicológicos. Transformamos uma sucessão temporal regular em relação causal ou necessária devido ao costume ou ao hábito: habituados a ver que B sucede regularmente a A, acreditamos que A é a causa necessária de B, isto é, que sempre assim será. Na verdade, o que acontece é que, por nos habituarmos a ver dois objetos sucederem-se um ao outro do mesmo modo, criamos a tendência para crer que, aparecendo o primeiro, aparecerá também o segundo. Nada mais ilusório do que esta relação de dependência, porque transformou-se uma relação de mera sucessão temporal (o antes e o depois) em relação causal. Não há, segundo Hume, qualquer fundamento objetivo na experiência que confirme esta relação. Assim, o princípio de causalidade considerado um princípio racional e objetivo nada mais é do que uma crença subjetiva, o produto de um hábito, a transformação de uma expetativa em realidade. O conceito de causa é o resultado de uma necessidade psicológica. O hábito de vermos um dado acontecimento ser seguido por outro leva-nos a crer que existe uma conjunção necessária entre esses acontecimentos. Por conseguinte, a ideia de relação de causa e efeito é o produto da subjetividade humana e não temos razões para afirmar que tem correspondência na realidade objetiva.
23. Explique de que modo a análise efetuada por David Hume ao princípio de causalidade se harmoniza com o empirismo.
A análise de David Hume ao princípio de causalidade harmoniza-se com o empirismo do seguinte modo: para Hume, uma ideia só é verdadeira se tiver uma impressão que lhe corresponda. Por conseguinte, a verdade das ideias é, em última instância, determinada pela experiência. E esta é uma tese central do empirismo. À ideia de causa não corresponde qualquer impressão sensível. Que regularmente vejamos ou tenhamos visto B acontecer depois de A não nos permite estabelecer uma relação causal objetiva, ou seja, que B acontecerá necessariamente depois de A. A experiência – para Hume o único critério quanto a questões de facto – permite-me captar uma sucessão regular entre dois fenómenos, mas não uma sucessão necessária (ou seja, só permite ver o que acontece aqui e agora e não o que sempre acontecerá). Pela experiência, sabemos que no passado a água ferveu, mas não é legítimo concluir que no futuro sempre ferverá. E, contudo, acreditamos – e é útil que acreditemos – que o aquecimento da água é a causa necessária da sua fervura.
24. Segundo Hume, a confiança nos nossos raciocínios indutivos tem fundamento racional e objetivo? Justifique.
Não. A indução ou é justificada de forma estritamente racional (a priori, independentemente da experiência) ou de forma a posteriori (por intermédio da experiência).
A indução não pode ser justificada com base na razão. Se a indução fosse racionalmente justificável, então bastaria o facto de as premissas serem verdadeiras para que a conclusão fosse verdadeira (isto é, seria um argumento dedutivo com forma válida). Mas não é assim. A conclusão de um argumento indutivo, mesmo no caso em que as premissas são verdadeiras, pode ser sempre falsa. Portanto, a indução não pode ser justificada nem por intermédio da razão.
A indução também não pode ser justificada empiricamente, isto é, por intermédio da experiência. Por exemplo, diremos, com base na experiência, que o Sol vai nascer amanhã, porque sempre nasceu até hoje. Isto significa que acreditamos que o futuro será como o passado e que, por causa disso, podemos estar confiantes de que o Sol nascerá amanhã. Mas que razões temos para acreditar que o futuro será como o passado, que justificação temos para crer na uniformidade da natureza? Uma vez mais, apenas a experiência passada. Assim, a nossa crença na uniformidade da natureza tem por fundamento a indução. Ora, justificar a indução por intermédio da indução é raciocinar em círculo (é como dizer «o que justifica a indução é a indução»). Além disso, a experiência passada nunca pode garantir a verdade da conclusão de um raciocínio indutivo (que diz sempre respeito a casos que não são abrangidos por essa experiência expressa pelas premissas). Portanto, a indução não pode ser justificada.
25. Por que razão não podemos justificar o Princípio da Uniformidade da Natureza?
Todo o nosso conhecimento do mundo tem origem na experiência e, se quisermos ir além da experiência imediata ou passada, temos de raciocinar indutivamente. Segundo Hume, a confiança que depositamos nos raciocínios indutivos depende do princípio de que a natureza é uniforme, o que significa que este princípio ocorre como uma premissa implícita em todos eles. Assim, o problema é como justificar este princípio. Hume afirma que não é possível justificar a priori o Princípio da Uniformidade da Natureza, porque só podemos conhecer a priori verdades necessárias. Ora, uma proposição é uma verdade necessária se e só se a sua negação implicar uma contradição. Não é isto que se passa com o Princípio da Uniformidade da Natureza porque a ideia de a natureza não ser uniforme é perfeitamente inteligível.
Mas também não é possível justificar empiricamente o Princípio da Uniformidade da Natureza, porque qualquer justificação a posteriori desse princípio incorre numa petição de princípio, ou seja, baseia-se num argumento indutivo, que por sua vez se baseia na crença na regularidade e uniformidade – sempre o mesmo – do comportamento da natureza. Portanto, o Princípio da Uniformidade da Natureza não pode ser conhecido a priori – de forma puramente racional – nem a posteriori – por meio da experiência. Como o Princípio da Uniformidade da Natureza não pode ser justificado nem a priori nem a posteriori, não temos qualquer razão para pensar que a natureza seja regular e, portanto, a maioria das nossas crenças acerca do mundo não tem justificação.
II
1. «Das ideias que ocorrem na metafísica não as há mais obscuras e incertas do que as de poder, força, energia ou conexão necessária […] Por conseguinte, esforçar-nos-emos, nesta secção, por fixar, se possível, o significado preciso destes termos e remover, desse modo, parte da obscuridade que tão lamentada é neste tipo de filosofia.
Parece uma proposição, não suscetível de muita discussão, que todas as ideias são apenas cópias das nossas impressões ou, por outras palavras, que nos é impossível pensar qualquer coisa que previamente não tenhamos sentido, quer pelos nossos sentidos externos ou internos. Esforcei-me por explicar e demonstrar esta proposição e expressei a esperança de que, mediante uma conveniente aplicação dela, os homens possam alcançar uma maior claridade e precisão nos raciocínios filosóficos do que a que, até agora, conseguiram obter.»

David Hume, Investigação Sobre o Entendimento Humano

Tomando o texto como ponto de partida, esclareça o ponto de vista de Hume acerca da ideia de conexão necessária.

Os filósofos racionalistas consideravam que existe uma relação causal entre acontecimentos, isto é, uma conexão necessária entre acontecimentos que faz com que à ocorrência de um deles se siga sempre necessariamente a ocorrência do outro. Mas, segundo Hume, é impossível pela mera análise de um acontecimento, tido como causa, descobrir os supostos efeitos a que dá origem (Adão, nunca poderia a priori, isto é, anteriormente à experiência, saber que a água afoga) e, portanto, a ideia de relação causal não tem um fundamento racional e não pode ser necessária. Mas, também não tem fundamento na experiência. Para que a ideia de relação causal tivesse fundamento na experiência, teria de haver uma impressão correspondente, uma vez que todas as ideias derivam e correspondem às impressões. No entanto, a experiência não nos dá qualquer impressão correspondente à ideia de uma conexão necessária, mostra-nos apenas a existência de uma conjunção constante de acontecimentos. Temos a impressão do acontecimento A e, seguidamente, do acontecimento B. Portanto, a ideia de conexão necessária não tem um fundamento na razão nem na experiência. Ela é o resultado do mecanismo psicológico do hábito ou costume. O hábito de vermos um dado acontecimento ser seguido por outro leva-nos a crer que existe uma conjunção necessária entre esses acontecimentos. Por conseguinte, a ideia de relação de causa e efeito é o produto da subjetividade humana, e não temos razões para afirmar que tem correspondência na realidade objetiva.
2. «Suponhamos que uma pessoa, embora dotada das mais fortes faculdades da razão e reflexão, é trazida subitamente a este mundo; de facto, observaria de imediato uma contínua sucessão de objetos e um acontecimento seguindo-se a outro, mas nada mais seria capaz de descobrir. Não conseguiria, de início, através de qualquer raciocínio, alcançar a ideia de causa e efeito, dado os poderes particulares pelos quais as operações naturais são executadas nunca aparecerem aos sentidos; nem é justo concluir, só porque um acontecimento precede outro, que o primeiro é a causa e o segundo o efeito. A sua conjunção pode ser arbitrária e casual. Pode não haver outro motivo para inferir a existência de um a partir da ocorrência do outro.»

David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano

Exponha a análise de David Hume da causalidade e da indução e explique as suas consequências para as nossas crenças acerca do mundo.

 Segundo Hume, todo o conhecimento acerca de questões de facto que vá além da experiência imediata ou passada baseia-se na relação de causa-efeito. Em que consiste esta relação e como a conhecemos? Há duas possibilidades: a relação de causa e efeito é conhecida a priori ou deriva da experiência. Ora, segundo Hume, a relação de causa-efeito não pode ser conhecida a priori porque, se o pudesse, poderíamos saber, sem qualquer experiência empírica, que a água afoga ou que o impacto de uma bola de bilhar noutra bola de bilhar origina o movimento da segunda. No entanto, sem recorrer à experiência não é possível saber que isto é assim. É apenas a observação da conjunção constante e da sucessão de dois acontecimentos que nos leva a pensar que um desses acontecimentos é a causa do outro. Portanto, o conhecimento da relação de causa e efeito não tem uma origem a priori. Terá, nesse caso, por base a experiência? A experiência apenas pode revelar entre dois acontecimentos uma sucessão e uma conjunção constante. Tudo o que podemos perceber é que um acontece a seguir ao outro e que a ocorrência de um é seguida da ocorrência do outro. É tudo. Por conseguinte, por mais que observemos a ocorrência conjunta de dois acontecimentos (por exemplo, o impacto de uma bola de bilhar numa outra bola e o consequente movimento desta), nunca encontraremos aí qualquer impressão que corresponda à ideia de relação causal, isto é, de conexão necessária e que a possa justificar. Não temos, portanto, qualquer razão objetiva para afirmar que existe uma conexão necessária entre acontecimentos de modo tal que a ocorrência de um, em iguais condições, é sempre seguida da ocorrência do outro. Qual é, então, a explicação para a nossa crença na causalidade? Segundo Hume, esta ideia não tem origem realidade, mas num hábito que resulta da associação que fazemos com base na observação repetida da sucessão e conjunção de acontecimentos. Isto é, a ideia de conexão necessária ou de causa-efeito é uma produção subjetiva da mente a que não é possível fazer corresponder qualquer realidade externa.
O nosso conhecimento do mundo depende também dos raciocínios indutivos. Ora, segundo Hume, a nossa confiança nos raciocínios indutivos depende do princípio de que a natureza é uniforme e, por esse motivo, este princípio constitui uma premissa implícita de todos os raciocínios indutivos. Assim, o problema é saber se este princípio pode ser justificado a priori ou a posteriori. Hume afirma que isso não é possível. Não é possível justificar a priori o Princípio da Uniformidade da Natureza, porque só podemos conhecer a priori verdades necessárias e o Princípio da Uniformidade da Natureza não é uma verdade necessária porque, para isso, a sua negação teria de implicar uma contradição, o que não acontece, uma vez que a ideia de a natureza não ser uniforme é perfeitamente inteligível. Também não é possível justificar a posteriori, isto é, pela experiência, o Princípio da Uniformidade da Natureza, porque uma justificação desse tipo do princípio incorre sempre na falácia da petição de princípio. Portanto, o Princípio da Uniformidade da Natureza não pode ser justificado a priori nem a posteriori e, por essa razão, não temos qualquer razão para pensar que a natureza é uniforme. Consequentemente, a maioria das nossas crenças acerca do mundo não têm uma justificação racional.
3. «Há alguns filósofos que imaginam que a todo o momento temos consciência íntima daquilo a que chamamos eu; que sentimos a sua existência e a sua continuidade na existência; e que estamos certos, para além da evidencia de uma demonstração, da sua identidade e simplicidade perfeitas. A sensação mais forte e a paixão mais violenta, dizem eles, em vez de nos distraírem dessa visão apenas a fixam mais intensamente e fazem-nos considerar a sua influência sobre o eu pela sua dor ou pelo seu prazer. Tentar fornecer uma prova mais completa disto seria enfraquecer-lhe a evidência, uma vez que nenhuma prova pode ser derivada de um facto do qual estejamos tão intimamente cônscios; e não há nada de que possamos estar certos se duvidarmos deste facto.
Infelizmente todas estas afirmações positivas são contrárias a essa mesma experiência que se invoca em seu favor; e não temos nenhuma ideia do eu da maneira que está aqui explicada. Com efeito, de que impressão poderia derivar esta ideia?»

David Hume, Tratado da Natureza Humana

Exponha a análise de Hume das crenças na existência do eu e do mundo exterior.

Hume pensa que não temos conhecimento do eu, porque não temos qualquer impressão que lhe corresponda. Temos consciência das nossas perceções, sensações e sentimentos, pensamentos e emoções. Mas, por mais que procuremos, não encontramos uma impressão que possa estar na origem da ideia de Eu. Sempre que inspecionamos os conteúdos da nossa própria mente, descobrimos impressões e ideias, de calor ou de frio, de claro ou escuro, de amor ou ódio, de prazer ou dor, mas nunca encontramos nada que corresponda ao eu, que supostamente constitui a sede dessas perceções. A mente, diz Hume, é uma espécie de teatro em que várias perceções ocorrem sucessivamente. Contudo, a comparação com o teatro não nos deve enganar, uma vez que são unicamente estas perceções que constituem a mente e não temos a mais remota noção do lugar em que estas cenas são representadas ou dos materiais de que são compostas.
Por outro lado, também não podemos estar certos da existência do mundo exterior. Pensamos que existem objetos externos, que têm uma existência contínua e independente de nós, porque temos certas perceções cuja origem atribuímos a esses objetos. Mas será que podemos provar que esses objetos são efetivamente a origem das nossas perceções? Hume pensava que não, porque a nossa mente conhece unicamente as suas próprias perceções, isto é, as impressões e ideias, e tanto umas como outras são estados internos, subjetivos, e não podem constituir prova de que algo tem uma existência contínua e independente fora de nós. É perfeitamente possível que essas perceções existam sem que lhes corresponda qualquer objeto (prova-o as alucinações e os sonhos). A aparente constância das coisas, o facto de que o que vemos hoje é mais ou menos igual ao que vimos ontem, leva-nos a acreditar que têm uma existência independente das nossas perceções. Esta crença não tem, no entanto, justificação porque não temos experiência da conjunção constante entre os objetos e as nossas impressões. O facto de não se poder justificar racionalmente a existência do mundo exterior, no entanto, não implica que este não exista. Não podemos conhecer a existência do mundo exterior, mas podemos acreditar que existe. Trata-se de uma crença que, embora não seja racionalmente justificável, é tão natural que devemos perguntar que razões nos levam a acreditar que o mundo externo existe e não propriamente se ele existe.
III
1. Esclareça o que distingue o empirismo de Hume do racionalismo de Descartes.
As diferenças a destacar são as seguintes:
A origem do conhecimento.
A possibilidade do conhecimento.
Os limites do conhecimento.
Ciência e metafísica
1. A origem do conhecimento.
Descartes considera que a experiência, dados os erros dos sentidos, não pode ser fonte credível de conhecimentos, melhor dizendo, as suas informações não podem constituir (dado que muitas vezes são enganadoras) crenças básicas que possam conduzir a outros conhecimentos. O saber constrói-se com base em ideias inatas e, desde que siga um método correto e Deus garanta o normal funcionamento da nossa razão, podemos alcançar verdades objetivas sobre o mundo. Esta rejeição dos sentidos é uma convicção fundamental de Descartes e marca a sua orientação claramente racionalista inspirada no modelo dedutivo das matemáticas.
Para Hume, todas as ideias têm uma origem empírica. Todos os nossos conteúdos mentais são perceções. Estas são de dois tipos: impressões e ideias. As nossas ideias são cópias das nossas impressões e por isso não há ideias inatas.
2. A possibilidade do conhecimento.
Partindo de um ceticismo metódico, Descartes liberta a razão da dependência em relação à experiência e, tornando o seu funcionamento dependente da garantia de Deus, conclui que podemos alcançar conhecimentos objetivos acerca do mundo.
Para Hume, o critério de verdade do nosso conhecimento é este: um conhecimento, uma ideia, só é válido se pudermos indicar a impressão ou impressões de que deriva. A toda e qualquer ideia tem de corresponder uma impressão sensível. Se não há correspondência, há falsidade.
Criticando a fé cega no poder da razão quanto ao conhecimento do mundo e do que transcende a natu­reza, Hume argumenta contra os racionalistas que o conhecimento científico não é como o conhecimento matemático, não o podendo ter como modelo: não é um conhecimento puramente demonstrativo, mas pro­cede da experiência.
Quanto à objetividade das leis naturais defendida por pensadores não racionalistas como Locke e Newton, o filósofo escocês argumenta que qualquer generalização, baseando-se em factos passados e pre­tendendo valer para o que ainda não foi objeto de experiência, é incerta. Nada podemos saber acerca do futuro porque nada nos garante que o futuro seja semelhante ao passado. Não há conhecimento, propria­mente falando, do que ultrapassa a nossa experiência atual ou passada: o que aconteceu não serve como fundamento seguro da previsão do que ainda não aconteceu.
Ceticismo? Sim, no sentido em que o nosso conhecimento não é certo e seguro. Mas uma coisa é o valor científico dos nossos conhecimentos e outra a sua utilidade prática e vital: sabemos que os nossos «conhecimentos científicos» são mais pretensão e desejo de segurança do que saber, mas não podemos viver sem essas sábias ilusões.
3. Os limites do conhecimento.
Descartes afirma que a razão apoiada na veracidade divina e nas ideias inatas pode conhecer a realidade na sua totalidade ou, melhor dizendo, os princípios gerais de toda a realidade: Deus, alma e mundo são realidades que podem ser conhecidas.
Para Hume, as impressões sensíveis são, não só o critério de verdade do conhecimento humano, mas tam­bém o seu limite. Não tendo outra base que não as impressões ou sensações, o nosso conhecimento está limitado por elas: não posso afirmar nenhuma coisa ou realidade da qual não tenho qualquer impressão sensível (como, por exemplo, Deus).
4. Ciência e metafísica
Em Descartes, temos uma fundamentação metafísica da ciência, isto é, uma fundação baseada em realidades metafísicas tais como Deus e alma (mas sobretudo Deus, que é o verdadeiro pilar do sistema científico que Descartes se propôs construir).
Segundo Hume, não podemos afirmar a existência de qualquer fundamento metafísico do saber.
2. Compare as posições de Hume e de Descartes relativamente à origem do conhecimento humano.
As posições de Hume e Descartes relativamente ao conhecimento humano não podem ser mais díspares. Partindo da ideia de que só são conhecimento as ideias que são claras e distintas, isto é, das quais não há a mínima possibilidade de duvidar, Descartes é levado a fazer da razão, e não dos sentidos, a origem do conhecimento, precisamente porque nenhuma ideia com origem neles pode ter o caráter de indubitabilidade que o conhecimento requer. A dúvida metódica, processo pelo qual a razão submete a apreciação crítica o saber tradicional, mostra, primeiro por intermédio do argumento das ilusões dos sentidos, depois por intermédio do argumento dos sonhos, que duas proposições básicas para o nosso conhecimento e para a nossa vida quotidiana, como «o mundo existe» e «os sentidos são fidedignos na informação que nos fornecem acerca do mundo», não são indubitáveis, e, embora o argumento do Deus enganador permita duvidar das verdades da matemática, isto é, das proposições não empíricas, o Cogito, verdade de razão, afirma-se com uma tal evidência que é impossível recusar a sua indubitabilidade. É, portanto, na razão, e não na experiência (ou melhor, nas ideias adventícias, como Descartes lhes chama, que têm origem na experiência e que são incertas e confusas), que o conhecimento tem origem.
A análise dos conteúdos da mente realizada por Hume condu-lo a uma posição oposta à de Descartes. A sua teoria das ideias afirma que estas são cópias das impressões e delas derivam. Não há ideias inatas. Com efeito, diz Hume, aqueles a quem, por alguma razão, falta a impressão também nunca têm a respetiva ideia. Um cego de nascença, que não tem, por exemplo, a sensação de vermelho, também nunca tem a respetiva ideia.
Do mesmo modo, quando alguém nunca teve uma dada sensação, não tentamos fazer com que a tenha a partir de uma ideia, mas pondo a pessoa numa situação em que possa adquirir essa sensação. Tudo isto prova, pensa Hume, que não existem ideias inatas e que todo o conhecimento tem origem, não na razão, mas na experiência.
Há, no entanto, um ponto em que Hume e Descartes estão de acordo. Ambos pensam que a experiência não pode ser a origem do conhecimento, se entendermos que só as ideias de cuja verdade temos absoluta certeza são conhecimento. Esta constatação leva Descartes a encontrar na razão a origem e o critério do conhecimento. Para Hume, esta via está vedada pela recusa do inatismo e, portanto, ao contrário de Descartes, pensa que só a experiência legitima as nossas ideias, sem, no entanto, lhes conferir absoluta certeza, isto é, o estatuto de conhecimento, à exceção dos domínios da matemática e da lógica.

3. Compare as posições de Hume e de Descartes relativamente à possibilidade do conhecimento humano.
Partindo da tese segundo a qual existem ideias inatas, isto é, ideias que a mente descobre em si mesma, Descartes afirma que é na razão, e não na experiência, que o Cogito se descobre a si próprio enquanto verdade primordial. Todo o conhecimento, para Descartes, é constituído por ideias a que a razão chega por deduções, a partir da intuição fundamental que o Cogito descobre em si mesmo pela análise dos seus conteúdos. Dado o caráter absolutamente racional e demonstrativo destas deduções, tudo o que conhecemos por seu intermédio é igualmente indubitável. O conhecimento é, portanto, constituído por todas as ideias que somos capazes de deduzir a partir das ideias inatas. É desse modo que, a partir do Cogito, isto é, o conhecimento da nossa própria existência enquanto alma, somos capazes de conhecer Deus e o mundo. Nada está fora do alcance da razão, na condição de sermos capazes de o deduzir de proposições indubitáveis. Esse é, pelo menos, o espírito do projeto cartesiano, embora o próprio Descartes reconheça que a existência do mundo exterior, posta em causa pela dúvida metódica, em rigor, não pode ser deduzida de princípios estritamente racionais. O racionalismo de Descartes manifesta-se, em resumo, na ideia de que é a razão, e não os sentidos, que fornecem as ideias que constituem o ponto de partida para o conhecimento. Partindo de um ceticismo metódico, Descartes liberta a razão da dependência em relação à experiência e, tornando o seu funcionamento dependente da garantia de Deus, conclui que podemos alcançar conhecimentos objetivos acerca do mundo.
Para Hume, o critério de verdade do nosso conhecimento é este: um conhecimento, uma ideia, só é válido se pudermos indicar a impressão ou impressões de que deriva. A toda e qualquer ideia tem de corresponder uma impressão sensível. Se não há correspondência, há falsidade. Criticando a fé cega no poder da razão quanto ao conhecimento do mundo e do que transcende a natureza, Hume argumenta contra os racionalistas que o conhecimento científico não é como o conhecimento matemático, não o podendo ter como modelo: não é um conhecimento puramente demonstrativo, mas procede da experiência. Quanto à objetividade das leis naturais defendida por pensadores não racionalistas como Locke e Newton, o filósofo escocês argumenta que qualquer generalização, baseando-se em factos passados e pretendendo valer para o que ainda não foi objeto de experiência, é incerta. Nada podemos saber acerca do futuro porque nada nos garante que o futuro seja semelhante ao passado. Não há conhecimento, propriamente falando, do que ultrapassa a nossa experiência atual ou passada: o que aconteceu não serve como fundamento seguro da previsão do que ainda não aconteceu.
Para Hume, ao contrário de Descartes, o conhecimento do mundo não é possível, quer entendamos por conhecimento verdades indubitáveis quer entendamos crenças que estão racionalmente justificadas, embora não de modo a garantir a certeza da verdade. Os raciocínios indutivos – a nossa forma de conhecer os factos do mundo – também não podem ser justificados racionalmente porque todos eles dependem do Princípio da Uniformidade da Natureza, e este princípio não pode ser racionalmente justificado porque qualquer tentativa de o fazer envolve a utilização de raciocínios indutivos. As nossas crenças acerca do mundo não constituem um conhecimento objetivo da realidade e são antes o resultado de mecanismos psicológicos com que a natureza nos dotou para assegurar a nossa existência.
Ceticismo? Sim, no sentido em que o nosso conhecimento não é certo e seguro. Mas uma coisa é o valor científico dos nossos conhecimentos e outra a sua utilidade prática e vital: sabemos que os nossos «conhecimentos científicos» são mais pretensão e desejo de segurança do que saber, mas não podemos viver sem essas sábias ilusões.
4. Compare as posições de Descartes e de Hume relativamente aos limites do conhecimento humano.
Descartes afirma que a razão, apoiada na veracidade divina e nas ideias inatas, pode conhecer a realidade na sua totalidade ou, melhor dizendo, os princípios gerais de toda a realidade: Deus, alma e mundo são realidades que podem ser conhecidas.
Para Hume, as impressões sensíveis são, não só o critério de verdade do conhecimento humano, mas também o seu limite. Não tendo outra base que não as impressões ou sensações, o nosso conhecimento está limitado por elas: não posso afirmar nenhuma coisa ou realidade da qual não tenho qualquer impressão sensível (como, por exemplo, Deus).
A filosofia de Descartes constitui um bom exemplo de um pensamento fortemente otimista acerca das capacidades da razão humana. Quando corretamente utilizada, nada há que a razão não possa conhecer. Utilizar corretamente a razão é, para Descartes, proceder por deduções rigorosas a partir de ideias claras e distintas.
Procedendo desse modo, é possível à razão conhecer, isto é, demonstrar a existência de realidades metafísicas (das quais não temos, portanto, nenhuma evidência empírica), como a alma, Deus e o mundo. Em oposição a este otimismo racionalista de Descartes, a filosofia de David Hume tem um pendor cético. Todo o nosso conhecimento tem origem e deriva da experiência, e daquilo que não temos experiência não temos conhecimento. O Princípio da Cópia que estabelece que todas as ideias são cópias de impressões constitui também o critério de legitimidade de uma ideia: as ideias que não possamos fazer derivar de impressões não têm pura e simplesmente sentido. Estão nesta situação, pensa Hume, ideias metafísicas como as de alma, de Deus e de mundo. Nenhuma destas ideias pode ser feita remontar a uma impressão e, em rigor, estas palavras não têm qualquer significado. Não há, nem pode haver, portanto, conhecimento destas entidades, e a metafísica, enquanto disciplina que estuda este tipo de entidades não empíricas, não constitui uma ciência.

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