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A REPRESENTAÇÃO DA REALIDADE: A VISÃO ENGANADORA
E O MITO DO OLHAR INOCENTE
A ideia de que a arte "imita" a natureza ou a realidade copiando-a ou espelhando-a literalmente, "re-presentando-a" encontramo-la já nos antigos Gregos e persistiu de certo modo até hoje. Mas o que significa "representar a natureza ou a realidade"? Quando dizemos «Agora vou tentar representar a realidade» - supondo que somos artistas - o que estaremos a tentar fazer? E o que significará dizer que fomos bem sucedidos?
Uma resposta muito óbvia é a de que estaremos a tentar produzir algo tão realista, tão fiel à vida, que alguém que o visse ficaria, pelos menos momentaneamente, iludido ou enganado a ponto de pensar que estava realmente a ver aquilo de que o quadro era uma representação. Chamaremos a este fenómeno «o modelo ilusório de representar a realidade».
Como exemplo paradigmático, ou padrão do que seria «representar a realidade», este modelo data também dos antigos gregos e persistiu até hoje. Contaram-se histórias acerca de artistas que produziram quadros que teriam iludido o olhar não só dos seres humanos como também dos animais. Plínio conta a história de um pintor, Zeuxis (também mencionado por Aristóteles), cujos quadros representando uvas eram tão «verdadeiramente representativos» que as aves eram atraídas na sua direcção. De um outro (Apelles) conta-se que os cavalos relinchavam perante os seus quadros representando cavalos. (... )
Leonardo da Vinci sustentava que tinha visto cães a atacar quadros que representavam outros cães. E hoje em dia nas galerias de arte ainda se ouvem pessoas a dizer, em tom de aprovação, que por momentos tomaram o quadro pela realidade que ele representava. (...) Pode-se dizer que a falta básica do «modelo ilusório» é a de que insiste desnecessariamente num teste para provar o carácter «realista» ou fiel do quadro representativo. Qual? O de que ele pode iludir alguém.
Não poderíamos antes dizer que, aspirando a produzir um quadro de A, para "re-presentar" A, o artista aspirava a produzir uma cópia do que via quando olhava para A, fosse qual fosse o meio que escolhesse? Sem dúvida, uma cópia, por mais perfeita que seja, não tem nenhuma hipótese de iludir se estiver numa posição ou num meio desadequado, mas pode, não obstante, ser uma cópia perfeita do que é visto, não é verdade?
A dificuldade em aceitar esta perspectiva atraentemente sensata deriva do facto de muitas vezes envolver aquilo a que Ernst Gombrich, em termos célebres, denominou «o mito do olhar inocente». Este mito supõe que aquilo que é visto é simplesmente dado, que o observador humano recebe passivamente os impactos visuais e que entre estes observadores se incluem os artistas que se entregam à tarefa de "re-presentar" o que é visto. Para compreender o erro desta perspectiva, devemos compreender o que há de errado na ideia de «olhar inocente » quando não estamos a olhar para «objectos representativos» tais como pinturas e esculturas. (... )
As características próprias da perspectiva denominada «mito do olhar inocente» são:
1 - Podemos distinguir conscientemente a recepção da informação visual (o puro e simples ver) da sua interpretação (ver como ... );
2 - A recepção acontece primeiro; a interpretação depende dela, mas não vice-versa;
3 - A recepção é comum em todos os seres humanos com visão normal; a interpretação pode ou não variar, conforme as expectativas, memória, bases culturais, etc.
Registar a ideia do «olhar inocente», considerar que é errado pensar que o olhar só recebe ou vê, é negar as três teses anteriormente comunicadas.
Vejamos:
1 - Nunca - ou só muito raramente - podemos distinguir a nossa recepção de informação visual da interpretação que dela damos. Não existe isso a que se chama ver pura e simplesmente. Nós vemos sempre - ou quase sempre - algo deste ou daquele modo, como isto ou aquilo.
2 - Não é só a interpretação que depende da recepção; a recepção também depende da interpretação. São interdependentes. Daí segue-se que,
3 - Não há razão para supor que a recepção (o simples ver ou observar) é comum a todos os seres humanos com visão normal.
Se a interpretação varia de acordo com as nossas expectativas, memória ou bagagem cultural, o mesmo se aplica à recepção porque, como é dito em 2, ela depende da interpretação. A demolição do mito do olhar inocente, apesar de prefigurada em alguns filósofos anteriores como Kant, tem sido sobretudo obra dos pensadores do século xx. O mito do olhar inocente tem sido rejeitado por filósofos, psicólogos, antropólogos e historiadores da arte com relevo para Ernst Gombrich, em Art and lIIusion. Esta obra contém uma fascinante discussão de uma série de exemplos que ilustram a forma como recepção e interpretação se interpenetram, muito particularmente no que respeita à percepção da forma, do tamanho, da distância e da cor. Um filósofo americano, Nelson Goodman, nota que, em geral, vemos e ao mesmo tempo interpretamos: vemos algo como, «coisas, pessoas, inimigos, estreIas, armas, alimentos». Vemos as coisas como próximas ou afastadas, pequenas ou grandes, recuando ou aproximando-se, sombrias ou iluminadas. ( ... )
Aceitando então que o olhar inocente é um mito, aceitamos que a maneira de ver a realidade que nos rodeia é moldada pela nossa educação e experiência, pela nossa linguagem, pelas nossas expectativas e cultura, etc. - então não existe um olhar genuinamente inocente. E como os quadros e outras obras de arte integram o mundo real, a forma de os ver como quadros é também moldada pela nossa educação, experiência, etc.
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ARTE E REPRESENTAÇÃO: A ARTE COMO "PRESENTAÇÃO" CRIATIVA
Abordando o tema do artista como criador, Gombrich cita, quase no início de Descoberta Visual através da Arte, uma passagem da Poética de Aristóteles. Considerando o facto de que as pessoas gostam de olhar para representações fiéis e bem apuradas,
Aristóteles afirma que isso é uma característica particular do nosso prazer geral de aprender.
«As pessoas gostam de ver imitações ou similitudes porque ao fazê-lo adquirem informação (apercebem-se do que cada uma representa e descobrem que, por exemplo, é uma representação disto e daquilo).»
Gombrich inverte brilhantemente a situação e sugere que o prazer de aprender se encontra frequentemente, não no facto de se reconhecer o mundo nas imagens, mas em reconhecer efeitos pictóricos no mundo. Os artistas, de acordo com Gombrich, criam as suas próprias visões da realidade nos seus quadros, e nós descobrimos, com o prazer próprio da recognição, aspectos do mundo familiar e não pictórico de que anteriormente não nos apercebemos.
As representações artísticas da realidade "transfiguram-na" aos nossos olhos, não se limitam a "re-presentá-Ia": apresentam-na sob novos aspectos, criam novas maneiras de a ver. Gombrich sublinha que os artistas (mesmo os mais "realistas") não se limitam a copiar a realidade, mas que também a criam.
Platão tinha uma opinião negativa acerca da arte pictórica, comparando-a a um simples espelho do mundo e sustentando que os pintores nada mais faziam do que copiar aparências
ou imagens visuais. Esta atitude baseia-se no "mito do olhar inocente", menosprezando o facto de que qualquer olhar corresponde a ver como isto ou aquilo. Menospreza também o facto correspondente de que para representar o artista tem de "isolar e de seleccionar" e de que ao fazê-lo impõe a sua visão ao nosso mundo criando de novo para nós o nosso mundo.
Na nossa breve discussão acerca da expressão «vendo como ... » concentrámo-nos em ver o mundo como categorizado em termos de coisas e em ver os quadros como representações dessas coisas - gatos, edifícios, pessoas, sombras, etc. Mas não vemos as coisas simplesmente como coisas. Vemos paisagens - mas além disso vemo-las como serenas ou ameaçadoras, domesticadas ou selvagens, estáticas ou plenas de movimento. Vemos alguns contornos como rostos mas também podemos ver esses rastos como familiares ou estranhos, alegres ou tristes, a aparentando saúde ou anunciando que a morte se aproxima. E naquilo que "isolam e seleccionam" para representar, e no modo como o fazem, os artistas permitem-nos ver tais coisas diferentemente.
É útil lembrarmo-nos neste momento de que grande parte das pinturas "representativas" da arte ocidental não pretenderam copiar a realidade. E isso não se deve ao facto de que aquilo que representavam eram pessoas ou eventos que eles não viram ou não podiam ter visto. O que eles representaram foram coisas passadas embora assumidas como reais (todas as cenas da Bíblia, Sócrates a tomar a cicuta ou a falar aos seus discípulos), coisas pertencentes a um tempo futuro (todas as cenas do Dia do Juízo Final) ou simbólicas (os quatro cavaleiros do Apocalipse) ou, com maior ou menor extensão, imaginárias ou inventadas (tais como Rake's Progress ou cenas descrevendo batalhas ou outros eventos que se deram durante uma guerra; os artistas podem ter assistido a esses acontecimentos mas na maior parte dos casos não puderam fazê-lo). Ao representarem tais acontecimentos e pessoas, os artistas tiveram de escolher uma forma particular de os representar, uma forma parcialmente moldada pela sua imaginação criadora.
Mesmo em retratos ou em quadros sobre pessoas que se pode supor terem sido "copiados da realidade (no sentido em que o artista teria perante si a pessoa a ser retratada), as pessoas são orientadas para posarem de um certo modo, num determinado ambiente, etc. Aqui, uma determinada visão da realidade é criada mesmo antes de ser "copiada".
Seria, contudo, um erro crasso, tal como no-lo lembram os historiadores da arte, inferir destas afirmações que os artistas escolhem de uma forma absolutamente livre como representar pessoas, situações, acontecimentos e coisas. A sua escolha é limitada não só pelos esquemas disponíveis no seu tempo e no seio da sua tradição como também pelas influências do patronato. Se a tradição prevalecente ditou, como foi o caso, que Cristo devia ser representado como um europeu louro em vez de judeu, então os artistas, tal como os seus contemporâneos, foram incapazes de imaginar Cristo como um judeu e mesmo que, num impulso imaginativo, o tivessem concebido assim é extremamente improvável que o tivessem pintado, ou se o tivessem feito que a obra sobrevivesse.
Mas apesar destes constrangimentos, muitos artistas encontraram espaço suficiente para representarem de formas significativamente diferentes. O tema bíblico da Anunciação pode ser representado como um evento festivo convidando à celebração ou como um evento solene convidando à meditação. O tema da Virgem e do Menino pôde ser representado como uma mãe terna e uma criança brincalhona ou como a Rainha dos Céus e o seu Rei: uma cena da vida do Cristo pôde ser representada como vista por um dos participantes ou como uma cena vista por um espectador distante. Historiadoras feministas da arte detectaram recentemente algo de significativo no modo como muitos nus femininos são representados - são representados, por exemplo, como passivos. E a guerra pode ser representada como gloriosa ou como terrível. ( ... )
Um aspecto do impacto da arte visual que Gombrich não sublinha em Descoberta Visual através da Arte nem, parece-me, em Arte e Ilusão é o modo como a arte pode criar uma imagem da realidade que de tão viva nos domina por completo. Sempre pensei que a guerra era terrível. E as palavras "a guerra é terrível" têm algum poder: evocam sofrimento, sangue, dor e perda. Mas as palavras "glória militar", "honra", "coragem" têm um poder similar e podem enfraquecer a ideia de que a "guerra é terrível". Surgem então as habituais declarações: "Bem, a guerra é terrível sob certos aspectos mas gloriosa sob outros; há sempre dois lados em cada questão; pode-se ver a guerra desta ou daquela maneira.» E era assim que, com uma certa relutância, eu costumava pensar: há sempre duas formas de pensar ou de ver a guerra. Mas, certo dia, tive a sorte de poder deslocar- -me a Madrid, ao Museu do Prado, para ver as pinturas de Goya sobre a guerra e a Guernica de Picasso. (... ) Gerou-se em mim uma imagem de "guerra como terrível" que se tornou imensamente viva e dominante. Agora, quando observo quadros que representam a guerra como gloriosa, ou leio poemas, romances ou peças sobre glória militar, ou honra e coragem expressas na guerra, vejo filmes sobre isso ou ouço música que supostamente invoca uma apaixonada disponibilidade para guerrear por uma causa, os quadros de Goya e de Picasso invadem o meu pensamento: Não, não - dizem eles sempre -, não te deixes iludir. É assim que a guerra é - terrível, terrível.
Rosalind Hursthouse, Truth and representation, Blackwell, pp. 275-279
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Olá, gostei muito do tema. Você poderia indicar onde encontro este texto completo em português?
ResponderEliminarEsclarecedor.
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