terça-feira, 10 de maio de 2011

CONTRA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO – LOUIS DE BONALD


CONTRA A LIBERDADE DE EXPRESSÃO – LOUIS DE BONALD
Os liberais dividem a vida humana em duas esferas, privada e pública; a sociedade, ou o Estado, tem um direito de vigilância sobre esta, mas não sobre aquela. Ora, todo o campo da opinião pertence à esfera do privado, e daí a liberdade de pensar, de dizer o que se pensa, de crer ou de não crer e, finalmente, de escolher tais ou tais valores, ou de os rejeitar a todos. A separação do Estado da Igreja consagra esse estado de coisas. O liberalismo não é mais que uma das consequências do individualismo.
Mas é uma consequência inaceitável para Bonald, que já não estava na melhor das disposições em relação à causa. Das duas uma: ou um caso é considerado importante para a vida da comunidade, e então é aberrante abandoná-lo à decisão de cada um; ou então permite-se a livre escolha, mas porque se trata de uma coisa indiferente. A tolerância, ou respeito das escolhas individuais, é aceitável no que diz respeito à cor das peúgas, mas não se se trata da verdade e do bem. Porque tolerância significa indiferença. "A tolerância absoluta, ou indiferença, não é adequada nem à verdade nem ao erro, que nunca podem ser indiferentes ao ser inteligente [ ... ]. A tolerância absoluta [ ... ] não conviria, portanto, senão ao que não fosse verdadeiro nem falso, ao que fosse indiferente em sl.» Que há de mais intolerante do que as ciências, cujo ideal é a verdade: deveriam elas, em nome da liberdade de opinião, renunciar a procurar qual de entre todas as opiniões é a boa? Mas o mesmo acontece, para Bonald, com a liberdade de culto: esta só é admissível se tivermos previamente decidido que Deus é um assunto indiferente.
«Que haverá de mais absurdo que defender que todas as maneiras de honrar a divindade são indiferentes, mesmo as mais opostas entre si?» Se aceitarmos ao mesmo tempo a Bíblia e o Alcorão, não significa isso que no fundo somos indiferentes à mensagem de verdade que ambos pretendem conter?»
Não devemos cultivar a tolerância, conclui Bonald, mas a intolerância; não devemos cultivar a liberdade de opinião, mas a busca da verdade. O progresso de uma sociedade consiste na eliminação das zonas de dúvida. "Assim, à medida que as luzes vão aumentando na sociedade, deve haver menos tolerância absoluta ou indiferença acerca das opiniões.
O homem mais esclarecido seria, portanto, em relação às opiniões, menos indiferente ou menos tolerante. "O homem é, e deve ser, intolerante, em relação a tudo o que se afasta, em todos os géneros, do verdadeiro, do belo e do bom.»
Em relação ao erro, não há lugar para a tolerância. É também o que dirá Estaline, émulo distante de Bonald, cuja obra certamente nunca lera: "A calúnia e as manobras fraudulentas devem ser estigmatizadas, e não transformadas em objecto de discussão.»
«Os liberais exigem a liberdade ilimitada de opinião; aceitariam também proclamar a liberdade total de acção? Sem dúvida que não, porque isso significaria a liberdade de cometer qualquer tipo de crime. Mas poderemos verdadeiramente separar as duas? Será por acaso que é precisamente nos países mais liberais, a França e a Inglaterra, que se vê surgir «uma superabundância de crimes de que não se queixam os outros países? Será que a licença nas acções se segue à licença nos discursos e nos escritos?» (... )
Em 1814, é Bonald quem dirige o ataque contra a liberdade de expressão. Eis aqui o seu raciocínio. É preciso começar por reformular o problema: não se trata de atentar contra a liberdade de pensamento - o que, de qualquer forma, não poderia ser feito, uma vez que o pensamento dispõe de um asilo inexpugnável que é o espírito humano (Bonald não consegue imaginar as técnica totalitárias) -, nem mesmo contra a liberdade de expressão, através da palavra ou da escrita, por pouco que valorizemos o espaço privado.
Não, aquilo que Bonald quer regulamentar é a liberdade de publicar, de agir sobre os outros dentro do espaço público. A partir daí, o seu raciocínio toma a forma de um silogismo rigoroso.
A maior é que a palavra e a escrita públicas são acções: dizer é fazer. Ora - e esta é a menor-, nenhum governo, nenhuma sociedade, pode conceder aos membros ou aos seus súbditos uma liberdade ilimitada de agir, senão voltamos a cair no estado selvagem de guerra de todos contra todos. A conclusão impõe-se por si mesma: é inconcebível que um governo razoável exceptue as acções verbais, as mais importantes numa nação civilizada (pense-se nos efeitos de um livro como o Evangelho ou o Contrato Social e, poderíamos acrescentar hoje, no Manifesto do Partido Comunista ou em Mein Kampf), da lei que aplica ao conjunto das acções públicas. É, portanto, necessário proibir e regulamentar.
Os liberais querem defender a liberdade de imprensa. Isto não passa de jogos de palavras, responde Bonald. Não é pensar, aquilo que exigem, é publicar livremente. E também não é de liberdade que se trata, mas de um poder, o de dirigir e julgar (um quarto poder, diríamos nos nossos dias, o da imprensa). Ora, ao contrário dos outros poderes (Iegislativo, executivo, judiciário), este escapa a qualquer controlo: os jornalistas não são eleitos, e não são revogáveis nem pela nação nem pelo rei; para poder publicar basta que disponham de meios materiais, ou simplesmente da simpatia pessoal daqueles que possuem esses meios.
Que poderá haver de mais injusto, qualquer que seja a regra de justiça escolhida, quer sejamos monárquicos ou republicanos? (Os governos da França permaneceram, até aos nossos dias, sensíveis a este problema: qualquer mudança de maioria implica uma modificação no pessoal das principais cadeias de televisão.)
Mas Bonald não se contenta com este argumento; acrescenta-lhe um outro. Que significa aceitar que cada um exprima livremente a sua opinião? Das duas uma. Se a opinião em causa diz respeito a um assunto indiferente ao bem comum, então a publicação, uma vez que não pode prejudicar ninguém, nada tem de chocante. Mas como poderíamos fingir que as questões de política, moral e religião nada têm a ver com os interesses da sociedade, quando afinal são justamente essas as que a apaixonam mais que quaisquer outras? Ou então, se não queremos seguir essa via, reconheçamos que se tratam de questões graves; mas, nesse caso, como pode ousar afirmar-se que é preciso admitir indiferentemente todas as respostas? O melhor não será preferível ao pior? Os valores cristãos são, para Bonald, superiores a todos os outros. Não haverá ideologias cuja nocividade é reconhecida, e em relação às quais, consequentemente, é pelo menos imprudente favorecer a circulação? Uma igual liberdade para todas as opiniões implica que todas as opiniões se equivalem, ou, dizendo de outro modo, que renunciamos a qualquer hierarquia de valores. Ora, é absurdo querer ignorar que certas coisas são, para uma sociedade, melhores que outras; as leis dizem-nos aquilo que é permitido e aquilo que é proibido, a ciência prefere o verdadeiro ao falso; que facto extraordinário justificaria que apenas a ideologia escapasse ao juízo praticado em relação a todos os outros domínios?
Quanto às formas de regulamentação das publicações, Bonald prefere a censura à justiça, deseja prevenir em vez de reprimir, e esforça-se por demonstrar que esse é o espírito, se não a letra, da Carta. Sobre este assunto os seus argumentos são variados. Poderíamos começar por raciocinar por analogia: não é preferível prevenir uma doença a ter de a curar, impedir um crime a ter de o punir? E a polícia não será um complemento necessário da justiça? É verdade que, para as outras acções, a lei se limita a reprimir.
No entanto, ao precisar a natureza do delito, age de maneira dissuasiva: toda a gente sabe que é proibido roubar. Ora, é impossível redigir leis sobre a imprensa de maneira igualmente precisa: não há meio de prever todas as formas que poderia tomar a heresia de um autor. O censor é por isso aquele que interpreta antecipadamente a lei, indicando obsequiosamente ao autor se a publicação dos seus pensamentos seria ou não um delito. De resto, este pode evitar
assim grandes gastos com a impressão e, se se for discreto, não se compromete a sua boa reputação; evita-se assim dar, através de um processo, publicidade a um obra que se quer fazer passar despercebida à atenção dos leitores. «É, portanto, necessária uma censura, uma censura severa, uma censura universal a todos os escritos, periódicos ou outros.» É por essa razão que, agindo de acordo com as suas convicções mais profundas, Bonald aceita, em 1827, tornar-se o presidente da Comissão de Censura.
Tzvetan Todorov, As Morais da História, Europa-América

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