domingo, 8 de maio de 2011

O PODER LIBERTADOR DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA.


O PODER LIBERTADOR DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA.
Todo o homem traz consigo tentações, forças que agitam as profundidades da sua alma. A psicanálise vulgarizou a sua acção e mostrou como o nosso pensamento e vontade dificilmente chegam a reprimi-los, por vezes à custa de perturbações psíquicas.
É o trabalho bem conhecido do recalcamento, com todas as consequências que provoca, às vezes catastróficas.
Ora, estas tendências que procuram ser satisfeitas e que os nossos costumes ou leis morais contrariam, que por vezes até, simplesmente, os nossos hábitos de pensar impedem por ignorância de se expandir, encontram na obra de arte uma saída espontânea, imaginária, aliás muitas vezes confusa. O artista criador liberta-se fazendo-as passar para a sua obra; o espectador, desfrutando-as pela imagem proposta ao seu olhar. Um e outro, em sentido literal, encontram-se «esvaziados».
Os psicólogos modernos aperceberam-se disto, a tal ponto que, por vezes, tentam libertar o neurótico, até um criminoso viciado, propondo-lhes o desvio do desejo que, como uma drenagem, permite a expansão dos impulsos perturbadores. Com o seu génio profundo, Aristóteles já o tinha adivinhado; afirmava-o pela sua teoria, que ficou célebre, da «catarsis». A palavra, em sentido estrito, quer dizer purga: a arte era considerada como purgante para a alma das suas paixões, mediante a satisfação artificial que lhes oferecia). Viver pela imaginação dispensa de viver pela acção. Vejamos a obra de um Toulouse - Lautrec: o seu sangue aristocrático trazia em si uma hereditariedade de força ávida de se expandir; o seu pai, senhor medieval perdido nos tempos modernos, testemunha-o suficientemente. Ora, o filho, tornando-se enfermiço, teve que renunciar a essas satisfações violentas da cavalaria, da caça... A sua obra tornou-se o gráfico registador que vibra com todos os apetites ardentes, tanto com temas evocando o desporto, o circo, a dança e a vida nocturna, como na sua técnica impulsiva e nervosa.
Quantas aventuras desconhecidas vivia, nas suas telas, o pacífico empregado de alfândega Rousseau? Atirado por elas para o meio das florestas virgens, ouvia o rugir dos leões, via deslizar as serpentes ao ponto de, por vezes, abrir a janela para se tranquilizar, enquanto pintava.
O que é verdade para um indivíduo pode também sê-lo para toda a colectividade. Se as representações do Diabo apareceram, sobretudo na Idade Média, nas escolas monacais, é porque, sem dúvida, desempenhavam um papel exutório para os instintos que a regra dos conventos reprimia demasiado radicalmente; mas, no séc. XV, era a sociedade inteira que desfrutava destas evocações.
Assim, a obra de arte alivia o homem de tudo o que não pode cumprir, realizar de outra maneira, quer por raes morais, quer por obsculos puramente materiais. O célebre romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, exprime simbolicamente o que aqui resumimos: aí vemos o herói conservar, apesar dos seus vícios, uma aparência angelicamente pura; é no seu retrato que, miraculosamente, se inscrevem os estigmas das suas taras.
Mas, da mesma maneira, o homem pode levar consigo sonhos de pureza e de perfeição que não chegam a realizar-se na decepcionante realidade. Se é artista, imprime-os, portanto, na imagem das suas obras; procura-os na dos outros, se é espectador. Chega assim a compensar as lacunas da vida e a dar uma espécie de existência ao que era necessário ao desenvolvimento do seu ser.
René Huyghe,

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