terça-feira, 10 de maio de 2011

Kant e a fundamentação filosófica do conceito de pessoa


Kant e a fundamentação filosófica do conceito de pessoa
A noção de pessoa está no centro do pensamento moral do Ocidente. Tem uma fonte histórica dupla: jurídica e religiosa. Por um lado tem a sua origem no direito romano e atribui-se a todo aquele que tem uma existência civil e direitos, ao contrário do escravo, que não tem direitos. Foram os filósofos estóicos que lhe conferiram um sentido moral: o termo "pessoa» designava originariamente uma máscara, tendo depois tomado o sentido de papel numa peça de teatro e, por analogia, como é evidente em Epicteto e Marco Aurélio, a função que a Providência estabelece para cada homem durante a sua vida.
A outra fonte histórica é a tradição judaico-cristã: a do Antigo Testamento, que prescreve o amor por todos os homens (inclusive os estrangeiros) e o socorro à viúva, ao órfão, ao oprimido, ao pobre e ao esfomeado. O Novo Testamento retoma este dever de caridade universal, mas vai mais longe, identificando o amor do próximo com o amor de Deus e pregando o amor aos próprios inimigos. Além disso, afirma a igualdade das almas, coisa muito diferente da função exercida na cidade e da posição ocupada na hierarquia social. O que importa não é a aparência exterior, mas o interior, aquilo que constitui a alma da acção no sentido pleno da palavra: a intenção. Daí a proibição de julgarmos os outros porque o futuro está aberto para o homem, para a mulher adúltera, para o filho pródigo. A humanidade é, para o cristianismo, a virtude essencial e traduz-se pelo espírito de simplicidade do qual as crianças são, ao longo dos Evangelhos, o símbolo.
Contudo, nos Evangelhos, a ideia de igualdade das pessoas apresenta-se sob a forma de predicação e de exortação: tratar todos os homens como humanos e iguais. É com Kant, no século XVIII, que a pessoa se torna uma noção propriamente filosófica. É verdade que, educado no seio de uma família pertencente a uma seita protestante muito rigorosa (o pietismo), Kant meditou longamente sobre os grandes textos da Bíblia e do cristianismo, mas o seu objectivo principal foi o de constituir uma moral racional, independente da religião. A pessoa é o homem enquanto ser racional. Em 1785, na obra Fundamentos da Me ta física dos Costumes, Kant lança as bases de uma ética da pessoa e, no essencial, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, retoma esses princípios.
Nessa obra Kant enuncia pela primeira vez estes princípios fundamentais: o homem é um fim em si, é uma pessoa e distingue-se das coisas. Para Kant considerar o homem como fim em si é considerar cada homem como uma pessoa, isto é, como um valor absoluto e não como um meio ao serviço de um fim. Assim o ser racional identifica-se com a razão e tal como esta não deve estar subordinada a condições estranhas, a princípios externos.
Compreende-se assim que a pessoa se distingue de tudo o que, sob o nome de necessidades e de inclinações, constitui aquilo a que se chama individualidade. Daí Kant tira a máxima do imperativo moral que deve ordenar a nossa conduta, quer individual quer colectiva, e que prescreve ao mesmo tempo o respeito por si e o respeito pelos outros:
Age sempre de maneira que trates a humanidade quer na tua pessoa quer na pessoa do outro, sempre e ao mesmo tempo como um fim e nunca simplesmente como um meio.
A divisão social do trabalho implica que cada homem exerce uma função útil no seio da sociedade. A vida social funda-se numa reciprocidade de serviços e, neste sentido, todos os homens são meios ao serviço dos outros. Por exemplo, o médico chamado a meio da noite à cabeceira de um doente não tem o direito de recusar o seu socorro, mas são se torna por isso escravo do doente que o retribui. A sua dignidade de pessoa não é de modo algum afectada a assim deve ser para qualquer profissão, trabalho ou função.
Ninguém tem o direito moral de impor a um homem uma tarefa que possa alienar o seu valor como ser humano. Ninguém tem o direito moral de utilizar um ser humano para obter prazer ou satisfazer interesses. Ninguém tem o direito moral de se tratar a si próprio como uma coisa. É faltar ao respeito por si mesmo, tal como qualquer forma de injustiça ou de opressão é uma falta de respeito pelos outros.
Apercebemo-nos de que aquilo a que se convencionou chamar civilização ocidental se funda nesta ética da pessoa teorizada por Kant. Os fundamentos estabelecidos por Kant foram desenvolvidos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e pela Declaração dos Direitos Universais do Homem de 1948, continuando a ser um ideal a realizar plenamente nos factos e nas instituições. Respeito e dignidade da pessoa humana, valor absoluto da pessoa, são expressões que se tornaram familiares e que Kant pela primeira vez explicitou: a pessoa é o ser racional, é o ser livre. E esta liberdade que o torna livre não é capricho, fantasia ou arbitrariedade, mas sim autonomia.
Autonomia significa ao mesmo tempo obedecer e ter a capacidade de comandar, de ordenar. Obediência da parte daquilo que em nós é sentimentos, impulsos, inclinações sensíveis. Comando da parte da razão, à qual todo e qualquer impulso se deve subordinar porque nós próprios e os outros podemos ser vítimas das nossas paixões incontroladas.
Assim o homem enquanto ser racional só obedece a si mesmo e só obedece à sua própria legislação. O fundamento da dignidade de um ser racional como o homem consiste em que não obedece a outra lei senão a que ele próprio, enquanto racional, institui. Como todos os homens, enquanto seres racionais, são sujeitos e autores da lei segundo a qual nenhum deve, alguma vez, tratar-se a si mesmo e os outros como simples meios mas sempre e ao mesmo tempo como fins em si; deriva daí a possibilidade de uma ligação sistemática dos seres racionais mediante leis objectivas comuns. Este mundo ou comunidade ideal onde os homens se tratam reciprocamente como fins em si tem em Kant o nome de reino dos fins.
Louis Marie Morfaux, L'épreuve écrite de philosophie, Armand Colin, pp. 265-568

2 comentários:

  1. porque que o coneceito pessoa de kant e contestado por outros filosofos

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  2. porque que o coneceito pessoa de kant e contestado por outros filosofos

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