A resposta à questão «O que é o homem?»
Para Kant o campo da filosofia engloba quatro questões:
"l — Que posso eu saber?
2 — Que devo eu fazer?
3 — Que me é permitido esperar?
4 — Que é o homem?"
Segundo o filósofo alemão as três primeiras questões remetem para a última encontrando nesta o seu fundamento.
A questão antropológica comanda as outras, está na sua génese ou origem. Por isso mesmo as três primeiras perguntas são "ramificações" ou diferentes modalidades de formulação de um só problema: "O que é o homem?" Perguntar pelo homem naquilo que o define essencialmente é inquirir sobre as suas possibilidades enquanto sujeito que visa conhecer sobre o seu dever como sujeito racional e sobre o que lhe é permitido esperar.
1. QUE POSSO SABER?
O conhecimento humano não pode ultrapassar o plano dos fenómenos: só conhecemos o que podemos intuir e só nos é possível intuir dados sensíveis.
As categorias do entendimento são funções sintéticas que apesar da sua origem não empírica só podem objectivar os dados que a sensibilidade recebeu, porque só os dados sensíveis são objectos para um sujeito. Deste modo, a síntese causal que o entendimento efectua é imanente, não pode prolongar-se para fora do plano dos objectos espácio-temporais.
Assim as questões fundamentais da razão (Deus, liberdade e imortalidade) nunca terão resposta científica. Aquilo que verdadeiramente interessava conhecer é-nos inacessível.
A metafísica é uma vocação natural da razão humana. Esta não se satisfaz com o conhecimento dos objectos empíricos, procurando o acesso ao incondicionado, ao plano metafísico. Perguntando se o acesso cognitivo às realidades metafísicas é possível, Kant vai efectuar uma crítica, isto é, uma análise das condições de possibilidade a priori do conhecimento humano (Investigação Transcendental). Essa investigação irá conduzi-lo a uma doutrina dos limites da razão, isto é, à afirmação de que a razão fora da referência aos objectos empíricos não pode constituir conhecimentos. Como é a razão o juiz e o réu desta investigação podemos dar-lhe o nome de autocrítica da razão pura.
Se o conhecimento absoluto — metafísico — é impossível a vontade ou o desejo de um tal conhecimento não se pode extirpar ou anular. Queremos o absoluto, é esse o nosso destino como seres racionais. Não podendo tornar as realidades metafísicas cognoscíveis estamos "condenados" a uma procura indefinida do Absoluto, a uma "peregrinação" interminável. Enquanto sujeito epistémico ou cognoscente o homem é uma tarefa sempre por cumprir: conhece cada vez mais adequadamente o que pode conhecer querendo conhecer o que não pode. As ideias da razão são a expressão dessa "falha", dessa "carência": ao representarem o Absoluto como algo que nunca está dado, impelem o entendimento para uma busca permanente que ficará sempre confinada ao horizonte espácio-temporal embora ele se comporte como se fosse possível atingir a Causa última, absoluta, incondicionada, de todas as coisas.
Assim, no plano teórico ou do conhecimento, o homem é um ser finito (limitado) insatisfeito com essa finitude. A perfeição — o conhecimento absoluto — é um ideal irrealizável que o homem impõe a si mesmo para fazer avançar o conhecimento possível. A doutrina kantiana do conhecimento revela que o homem é uma "inquietação insanável", uma essencial abertura ao Absoluto (ao Infinito) um ser destinado a aproximar-se sempre da perfeição sem nunca a poder atingir.
2. O QUE DEVO FAZER? (COMO DEVO AGIR?)
Devo agir de uma forma puramente racional e desinteressada, i. e., por puro e simples respeito pela lei moral, que é uma lei da razão pura prática. É este o imperativo categórico do homem . Ao respeitar a lei moral — ao agir por dever — não respeito uma lei abstracta mas a pura racionalidade que está na sua origem: respeito a minha própria racionalidade, o meu "carácter inteligível", a minha autonomia. A lei moral exige que o homem não esteja ao serviço das suas inclinações sensíveis, considera imperativo categórico do homem não subordinar aquilo que o define como pessoa — a razão autónoma — a factores empíricos (paixões, egoísmos, interesses, afectos).
A lei moral exige ser absolutamente respeitada. A vontade que aja de uma forma puramente racional será a única vontade com valor moral. Contudo, não sendo o homem um ser puramente racional, o puro e simples respeito pelo carácter formal da lei moral é para o homem um dever e um devir, ou seja, nunca um dado adquirido, mas sempre um esforço de aperfeiçoamento moral, cuja meta ideal é a santidade. Esse esforço tem o nome de virtude e é indefinido. Como a lei moral exige a pureza e a racionalidade do agir (a perfeição moral), e ela é para o homem inalcançável, o destino do homem deve ser uma caminhada sem fim em direcção à perfeição.
Tal como no plano do conhecimento vemos que no plano moral a perfeição é o "tê-los", a finalidade ideal que se procura. No plano moral a procura da perfeição — da pureza e da racionalidade absolutas da acção — é um dever, um imperativo categórico: o homem deve transcender o sensível, tudo o que é empiricamente condicionado, para se tornar cada vez mais homem, i. e., ser dotado de um valor absoluto (pessoa). No plano do conhecimento estavam em jogo realidades absolutas colocadas fora do homem, exteriores e que se tratava de atingir, enquanto que no plano moral o absoluto que, deve procurar realizar é o homem como ser plenamente autónomo e racional integrado numa comunidade de pessoas.
A moral kantiana exige do homem a insatisfação face ao excessivo papel da sensibilidade na sua vida moral. O esforço de aperfeiçoamento moral do homem consiste numa libertação sempre recomeçada em relação à sua condição animal (com particularidades muitas vezes mais brutais e bestiais do que noutras espécies), numa luta perpétua contra a decadência e a desumanidade.
3. O QUE ME É PERMITIDO ESPERAR?
O esforço de aperfeiçoamento moral — a tentativa de transcendência do sensível, a tentativa de suprimir as inclinações sensíveis enquanto princípios determinantes do agir — torna legítimo esperar uma recompensa. Cada homem tem direito a esperar a felicidade na medida em que dela se tornou digno. Essa esperança é inseparável da crença na existência de Deus, exigida por razões de ordem moral. Assim, segundo Kant, a religião será um "anexo da moral", será uma religião nos limites da simples razão.
A esperança do homem numa vida mais humana, num futuro em que o mundo corresponda às exigências da vontade racional, indica que a actividade do homem é finalizada ou teleologicamente orientada, i. e., visa determinados fins. Sendo a natureza e a história os campos concretos dessa actividade em que o homem aponta para si mesmo um aperfeiçoamento moral, elas não podem ser a negação de toda e qualquer ideia de finalidade. Na natureza, quer reflictamos sobre a beleza natural quer sobre a organização dos seres vivos, podemos contemplar indícios de finalidade. Ora na medida em que pensamos legitimamente — sem pretensões à objectividade científica — a natureza como se fosse finalizada, como se agisse segundo fins (sendo o fim supremo o homem como ser moral) temos razão suficiente para esperar que as acções humanas visando o reino dos fins (o reino da moralidade e do respeito absoluto pela pessoa humana — fim em si mesmo) têm alguma hipótese de se realizar neste mundo. Este "reino dos fins", esta comunidade autenticamente humana, é um projecto, uma tarefa histórica, um longo e tortuoso percurso. Em termos juridico-políticos tem o nome de "paz perpétua" entre os Estados e os homens sob a administração de uma "sociedade das nações", baseada no direito internacional e não na força. Não sendo a realização perfeita da moralidade, porque o antagonismo regrado entre os homens não desaparece, o "Estado cosmopolita" representa um progresso moral do homem. A história da humanidade, apesar de todo o seu registo de crueldade e vilanias, autoriza-nos uma esperança nas tendências morais da espécie humana. Torna-se legítimo esperar que as relações entre os diversos Estados possam um dia ser regidas pela razão moral.
4. O QUE É O HOMEM?
O homem é um ser dominado pelo desejo de absoluto.
No plano do conhecimento o absoluto para o qual o homem se encaminha é a causa última ou incondicionada de tudo; no plano moral o absoluto assume a figura da perfeição moral, do completo e total acordo entre a vontade do homem e a lei pura da sua razão; no plano político-histórico o absoluto é simbolizado pela "paz perpétua", forma de vida entre as nações conforme às exigências da razão e graças à qual se desenvolveriam todas as disposições ou potencialidades que fariam do homem um ser humano.
O que define o homem, ser racional finito, é o facto de estando ciente da sua fini-tude, a projectar em direcção ao infinito: dentro dos limites que constituem a sua condição finita o homem é constante ultrapassagem de si mesmo. É uma finitude sequiosa de absoluto, uma racionalidade em devir. Pode dizer-se que o homem é habitado por uma "nostalgia metafísica". Ele age como se os ideais longínquos e inacessíveis que coloca perante si mesmo fossem realizáveis, agindo assim como se a finitude que o caracteriza não fosse um dado mas uma condição que deve ser constantemente testada. Assim, o homem é um ente que está permanentemente a inventar-se a si mesmo: a sempre renovada "aposta no ideal", seja em que plano for, é, para o homem, sinal de que não é uma realidade definida mas um processo infinito de realização. O cumprimento integral de si mesmo é sempre algo a fazer, uma tarefa inacabada, uma "finalidade sem fim".
O homem é aquele ser enigmático que, uma vez que nunca está realizado, constantemente pergunta a si mesmo "o que sou eu?".
Como se pôde ver ao longo da exposição sobre a filosofia kantiana, o discurso sobre o homem (a antropologia) insistiu na sua dimensão moral: o destino supremo do homem é cumprir-se como ser racional livre.
A lei moral é venerada porque é uma lei da liberdade cujo cumprimento eleva infinitamente o valor do homem como pessoa. O homem está submetido a uma dupla legalidade: natural e moral, e falar de dois mundos (numénico e fenoménico) é falar de dois modos de ser do homem. Se o homem pertencesse unicamente ao mundo natural, em que cada acto está submetido à causalidade necessária e se define como efeito previsível de uma causa anterior, a liberdade não faria sentido e o homem seria uma simples criatura animal. É a consciência da presença da lei moral em mim que me permite pensar as minhas acções como livres, como resultado de uma decisão voluntária e não como um simples efeito de uma causa precedente. A lei moral eleva-me acima do determinismo natural, revelando que o homem tem um modo de ser independente da animalidade.
O respeito pela lei moral permite que eu me compreenda como membro de um reino dos fins, isto é, como pertencendo a uma comunidade de seres racionais que só se submetem às suas próprias leis. Se agir moralmente me revela como livre e membro de uma comunidade de seres racionais ou pessoas, então podem considerar-se todos os seres desprovidos de razão como coisas, meios, isto é, como realidades que só possuem um valor relativo. Só a lei moral me faz compreender que não sou uma coisa, mas uma pessoa, que não me reduzo ao estatuto de ser natural ou fenoménico e daí a veneração que, segundo Kant, ela provoca. Em nome dela é legítima a revolta contra a tirania política e económica, contra tudo o que nega os direitos do homem.
Kant nunca põe em causa os direitos do conhecimento científico, mas nesse plano o homem só se conhece como objecto. Só a lei moral permite ao homem descobrir-se como ser livre e responsável, como senhor dos seus próprios actos e é essa determinação moral do homem que dá ao mundo um valor, um sentido.
Há um primado da acção sobre o conhecimento em Kant. O verdadeiro destino do homem, que é a liberdade, cumpre-se não no plano teórico, mas sim no plano prático.
É porque o homem não pode deixar de pensar que é livre que o seu conhecimento se limita aos dados empíricos ou fenoménicos (conhecer a liberdade seria contraditório), que pensa a natureza como se ela agisse segundo fins e que a História, apesar das aparências, é orientada por uma finalidade de tipo moral.
A realização moral do homem é a finalidade essencial porque o que define o homem enquanto tal é a liberdade que como já sabemos é inseparável da consciência da lei moral. A liberdade como ser do homem é uma tarefa, uma conquista e nunca um facto: é algo em cuja realização e triunfo devemos acreditar porque só assim poderemos passar de sub-ho-mens a homens autênticos. A filosofia moral kantiana caracteriza-se pela esperança na auto-realização do homem (da espécie humana). É uma "aposta no homem", uma confiança na sua capacidade de superar os muitos obstáculos que o impedem de ser autenticamente humano e de viver humanamente com os outros
Este humanismo kantiano encontrou eco, quase dois séculos depois (1980), numa entrevista que o filósofo francês Jean-Paul Sartre concedeu, no final da vida, à revista Nouvel Observateur.
«Penso que a esperança faz parte do homem; a acção humana (...) visa sempre um objectivo futuro a partir do presente, onde a concebemos e onde a tentamos realizar; ela coloca o seu fim (a sua finalidade), a sua realização, no futuro, e, no modo como agimos, há a esperança, i. e., o facto de pôr uma finalidade como devendo ser realizada. (...) Cada homem, para lá dos fins teóricos ou práticos que tem a cada instante e que dizem respeito, por exemplo, a questões políticas e de educação, etc., para além disso, cada homem tem um fim, um fim que chamarei transcendente ou absoluto, e todas as outras finalidades só têm sentido em relação a ele. (...)
Para mim, como sabes, não há essência a priori, logo o que o homem é não está ainda estabelecido. Não somos homens completos. Somos seres que procuramos chegar a relações humanas e a uma definição do homem. Estamos em plena luta neste momento e isso durará sem dúvida numerosos anos. Mas é preciso definir esta batalha: procuramos viver em conjunto, como homens: procuramos ser homens. (...) Por outras palavras, o nosso objectivo é chegar a um verdadeiro corpo constituído em que cada pessoa seria um homem e onde as colectividades seriam igualmente humanas.
O que penso é que, quando o homem existir verdadeira e totalmente, as suas relações com os seus semelhantes e o seu próprio modo de ser poderão constituir o objecto daquilo a que poderemos chamar humanismo (...). Mas ainda não chegámos lá; nós somos, por assim dizer, sub-homens, isto é, seres que ainda não realizaram o seu objectivo, que talvez nunca o atinjam mas que caminham nessa direcção. (...) Se considerarmos que esses sub-homens têm em si princípios que são humanos, isto é, no fundo, certos germes que potenciam o homem e que, de certo modo, superam o próprio ser que é o sub-homem, então pensar as relações entre os homens mediante princípios que hoje se impõem pode receber o nome de humanismo. Há essencialmente a moral da relação com o outro. (...) É precisamente o lado humano que se encontra no sub-homem — justamente os princípios que potenciam o homem — que interditam que se use o homem como uma matéria ou um meio para obter um fim. E aí estamos precisamente no plano moral (da obrigação). (...) Não vivemos o homem senão como aquilo que de melhor há em nós, i. e., como o nosso esforço para estarmos para além de nós mesmos (o esforço de transcendência ou ultrapassagem), no círculo dos homens. Homens que nós podemos assim prefigurar nos nossos melhores actos.»
Senssacional
ResponderEliminarobrigada, me ajudou muito
ResponderEliminarSUPIMPA
ResponderEliminarEscreva também sobre a dialética transcendental.
ResponderEliminarGostaria muito de presenciar as vossas reflexões.