terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O PROBLEMA DA MORALIDADE DO ABORTO 2 - JUDITH THOMSON


JUDITH THOMSON 
O argumento do direito à vida: o feto humano tem direito à vida.
O argumento da humanidade do feto é habitualmente acompanhado de outro conhecido pelo nome de argumento do direito à vida. Dado que o argumento anterior parece pouco satisfatório, vejamos se este tem mais sucesso.
Comecemos por o apresentar:
(1) Se o feto tem direito à vida, então o aborto é errado.
(2) O feto tem direito à vida.
(3) Logo, o aborto é errado.
O argumento é válido porque as premissas apoiam logicamente a conclusão. Mas será o argumento bom? Num famoso artigo de 1971, Judith Thomson afirma que não. E diz que não é bom porque a primeira premissa não é verdadeira. Por outras palavras, Thomson afirma que o aborto não é uma violação do direito moral do feto à vida. Para defender a sua tese, Thomson argumenta recorrendo a uma experiência mental ou situação hipotética. Imaginemos, diz a filósofa americana, que um famoso violinista está inconsciente devido a uma doença renal gravíssima da qual morrerá. Para que não morra, é necessário que no hospital seja ligado, durante nove meses, ao sistema circulatório de alguém que tenha um tipo de sangue compatível. Os admiradores do famoso violinista raptam alguém com esse tipo de sangue. Ao acordar depois do rapto, descobre que está ligada ao sistema circulatório do violinista. Pode desligar-se, mas, se o fizer, o violinista morrerá. É evidente, segundo Thomson, que essa pessoa não tem a obrigação moral de ficar ligada ao violinista nove meses para o manter vivo. O violinista é inocente? Certo. Tem direito à vida? Tem. Contudo, o direito do violinista à vida não implica o dever da pessoa a que está ligado de se manter ligada. Por outras palavras, o violinista não tem o direito de usar o corpo de outra pessoa para se manter vivo. O que pretende Thomson com este exemplo? Mostrar que a situação da mulher grávida é análoga ou semelhante à da pessoa ligada ao violinista. O feto é inocente e tem direito à vida, mas isso não implica que tenha o direito de usar o corpo de outra pessoa para se manter vivo. Por isso, tal como a pessoa raptada pode de uma forma moralmente legítima desligar-se do violinista, também a mulher grávida pode desligar-se do feto (abortar) sem violar qualquer direito moral deste. Para Thomson, o aborto é, por conseguinte, um acto moralmente permissível.Segundo Judith Thomson, o direito do feto à vida não prevalece sobre o direito da mulher a dispor do seu corpo.

Há quem pense que se pode defender a moralidade do aborto, negando a segunda premissa do argumento apresentado. Por outras palavras, há quem pense que o feto não tem direito moral à vida. Esta tese é defendida por Michael Tooley.
Segundo Tooley, só um indivíduo com consciência de si pode ter o direito à vida. Um indivíduo só é uma pessoa se tiver consciência de si. Em termos simples, o argumento que Tooley pretende refutar é o seguinte:
P1.   Um feto é uma pessoa.
P2. Uma pessoa tem direito moral à vida.
C. Logo, o aborto (matar um feto) não é moralmente correcto. (Excepto talvez para salvar a vida da mãe.)
Tooley vai negar que um feto seja uma pessoa e assim refuta o argumento.
Como já dissemos, uma coisa tem de possuir consciência de si para ser uma pessoa. Ora, ser uma pessoa implica que um indivíduo tem o conceito de sujeito de uma vida mental, ou seja, tem de se ver a si como sujeito que vive experiências, tem interesses, projectos, recorda acontecimentos passados, planeia acções, tenta prever as suas consequências, etc. Supõe-se que, a partir de uma certa fase do seu desenvolvimento, o feto se torna capaz de sentir dor, adquire alguma consciência, mas isso não significa que tenha consciência de si, que se veja a si como sujeito de uma vida mental, que saiba que é o indivíduo que vive certas experiências. Não tendo consciência de si, não é uma pessoa e por isso não tem direito moral à vida.
Podemos agora resumir o argumento de Tooley:
P1. Uma pessoa é um indivíduo que tem consciência de si.
P2. Só os indivíduos que têm consciência de si têm direito moral à vida.
P3. Os fetos humanos não são pessoas.
P4. Os fetos humanos não têm direito moral à vida.
C. Logo, o aborto não é um acto moralmente errado.
   
Actividades
I
Leia o texto seguinte e responda às perguntas:
A mulher tem o direito de escolher o que acontece ao seu próprio corpo.
«Proponho, então, que admitamos que o feto é uma pessoa desde o momento da concepção. Como se desenvolve o argumen­to a partir daqui? Aproximadamente da maneira que passo a ex­plicar. Todas as pessoas têm o direito à vida. Por isso, o feto tem o direito à vida. A mulher tem, sem dúvida, o direito de decidir o que acontece no e ao seu corpo – toda a gente aceita isto. Mas o direito à vida de uma pessoa é, seguramente, mais forte e mais exigente do que o direito da mãe a decidir o que acontece no e ao seu corpo – e, por isso, suplanta-o. Logo, não se pode matar o feto; não se pode fazer o aborto.
Isto parece plausível. Mas agora vou pedir ao leitor que ima­gine o seguinte. De manhã acorda e descobre que está numa cama adjacente à de um violonista inconsciente – um violinista inconsci­ente famoso. Descobriu-se que ele sofre de uma doença renal fa­tal. A Sociedade dos Melómanos investigou todos os registos mé­dicos disponíveis e descobriu que só o leitor possui o tipo de sangue apropriado para ajudar. Por esta razão, os melómanos raptaram-no, e na noite passada o sistema circulatório do violinista foi liga­do ao seu, de maneira a que os seus rins possam ser usados para purificar o sangue de ambos. O director do hospital diz-lhe agora: «Olhe, lamento que a Sociedade dos Melómanos lhe tenha feito isto – nunca o teríamos permitido se estivéssemos a par do caso. Mas eles puseram-no nesta situação e o violinista está ligado a si. Caso se desligasse, matá-lo-ia. Mas não se importe, pois isto dura apenas nove meses. Depois ele ficará curado e será seguro desligá-lo de si». De um ponto de vista moral, o leitor teria a obrigação de aceitar esta situação? Não há dúvida de que aceitá-la seria muito simpático da sua parte, constituiria um gesto muito generoso. Mas teria de aceitá-la? E se, em vez de nove meses, fossem precisos nove anos? Ou ainda mais tempo? Suponha que o director do hospital lhe dizia: «Teve azar, concordo, mas agora tem de permanecer acamado, com o violinista ligado a si, durante o resto da sua vida. Afinal, lembre-se de que todas as pessoas têm o direito à vida e que os violinistas são pessoas. Reconheço que tem o direito de de­cidir o que acontece no e ao seu corpo, mas o direito à vida de uma pessoa suplanta o seu direito de decidir o que acontece no e ao seu corpo. Por isso, nunca poderá desligar-se dele». Suponho que o leitor iria considerar isto ultrajante, o que sugere que existe algo de realmente errado no argumento aparentemente plausível que mencionei há pouco.»

Judith Jarvis Thomson, Uma Defesa do Aborto in A Ética do Aborto – Perspectivas e Argumentos, Organização e tradução de Pedro Galvão, Lisboa, Dinalivro, 2005, pp. 27 e 28.


1 – De que problema trata o texto?
O texto trata do problema da legitimidade do aborto perguntando se o direito do feto à vida é razão suficiente para se declarar que não é moralmente admissível abortar.

2 – Que tese defende o texto?
O texto defende a tese de que, mesmo supondo que o feto é uma pessoa e reconhecendo que tem direito à vida, o direito da mãe a decidir o que acontece no e ao seu corpo suplanta o direito do feto à vida.

3 – Que argumento pretende Thomson refutar?
Mediante a leitura do texto, apercebemo-nos de que o argumento a refutar é o seguinte:
Toda e qualquer pessoa tem direito à vida.
Sendo uma pessoa, o feto tem direito à vida.
A mãe tem direito a dispor do seu corpo, tem autonomia de decisão, mas o direito à vida é mais forte do que o direito a dispor do seu corpo.
Logo, o aborto não é moralmente permissível.
Mais do que provar que o aborto é aceitável, Thomson pretende mostrar que um dos habituais argumentos anti-aborto não é aceitável.

4- Como argumenta Thomson?
Thomson recorre a uma experiência mental que, no caso, funciona como um contra-exemplo à ideia de que o direito de uma pessoa à vida suplanta outros direitos. Trata-se portanto de uma situação hipotética que exige contudo que reflictamos sobre o mundo real e que pode guiar-nos na análise de situações reais.
Thomson pede-nos que imaginemos que um dia acordamos ligados a um famoso violinista inconsciente, que, para sobreviver, precisa de estar ligado aos nossos rins durante nove meses (o que para um feto é o tempo normal de gestação no útero materno). Estamos nesta situação, não por vontade própria (o que pode sugerir que no caso da mulher grávida esta foi vítima de violação e de gravidez indesejada), mas porque a Sociedade dos Melómanos nos raptou. O violinista é uma pessoa inocente e não tem qualquer responsabilidade na situação criada. Thomson pensa que não temos qualquer obrigação de ficar ligados ao violinista, apesar de este ter direito à vida. Na verdade, esse direito não pode suplantar o nosso direito a dispor do nosso corpo e a controlar o que lhe acontece. Logo, é legítimo desligarmo-nos dele.

5 – O que pretende concluir Thomson com este contra-exemplo?
Com esta experiência mental, Thomson pretende várias coisas:
1 – Refutar a tese de algumas facções anti-aborto que defendem que o direito à vida suplanta a liberdade de escolha da mulher, o direito de decidir o que fazer com o que está a acontecer e acontece no seu corpo.

Segundo Thomson, o direito de um indivíduo à vida não implica que outras pessoas sejam responsáveis por essa vida e tenham de a assegurar, ou seja, que o direito à vida deve prevalecer sempre. Muitos activistas anti-aborto argumentam que todas as pessoas têm direito à vida (alguns defendem que é sempre errado, mesmo que para salvar a vida da mãe). Ora, como o violinista é uma pessoa e o direito à vida suplanta, para muitos opositores do aborto, o direito a decidir o que acontece no nosso corpo, teríamos de concluir que é nossa obrigação ficarmos ligados ao violinista seja por que tempo for. Esta conclusão parece absurda e ridícula, o que prova, segundo Thomson, que há algo de errado no argumento que defende a superioridade do direito à vida.

2 – Afirmar que o direito à vida não é o direito a usar o corpo de outra pessoa para permanecer vivo.

Apesar de o violinista ser uma pessoa e de ter o direito a viver, isso não implica que tenha qualquer direito a usar outro corpo para permanecer vivo. Thomson conclui que temos o direito a decidir o que acontece ao nosso corpo e que esse direito não pode ser suplantado pelo direito de uma pessoa inocente à vida. A mulher tem o direito a dispor de modo autónomo do seu corpo, especialmente quando a gravidez resulta de violação, em casos em que a sua vida corre grave perigo e em casos em que a mulher tomou precauções razoáveis para evitar uma gravidez indesejada. A gravidez é uma condição que afecta o corpo da mulher e, por isso, a mulher tem o direito de decidir se quer dar continuidade ou não à gravidez. Em suma, aplicando o exemplo ao debate sobre a legitimidade do aborto, o direito do feto à vida não lhe dá necessariamente o direito a usar o corpo da mãe para permanecer vivo.
3 – Afirmar que o direito à vida não é necessariamente o direito a não ser morto. É somente o direito a não ser morto injustamente.
Se nos desligarmos do violinista, matamo-lo, mas não o matamos injustamente, apesar de reconhecermos o seu direito a viver. Assim sendo, não é suficiente defender que o feto tem direito à vida. Isso não encerra o assunto. É preciso mostrar que o aborto é uma morte injusta. Manter a vida do feto não é obrigatório porque não é moralmente errado não a realizar, embora também não seja moralmente errado realizá-la. Thomson reconhece que é mesmo uma acção moralmente boa, só que não constitui obrigação moral.
II
Leia o texto seguinte e responda ás questões:
Objecção ao argumento do feto como intruso
«A perspectiva que visa estabelecer o direito ao aborto a partir do direito da mulher a controlar o seu corpo apresenta-nos a criança como um intruso. Thomson sustenta que a criança é um intruso no corpo da mulher, assemelhando-se a um assaltante ou a uma pessoa inocente que entra por engano na nossa casa. Tal como o proprietário da casa tem o direito de eliminar o intruso, mesmo que seja parcialmente responsável por ele ter entrado na sua casa, também a mulher tem o direito de eliminar a criança do seu corpo, mesmo que seja parcialmente responsável pelo facto de ela estar dentro de si – isto acontece quando a gravidez resultou de um acto sexual voluntário e a contracepção falhou. Tenho duas respostas para este argumento.
Em primeiro lugar, a criança não é um intruso. Ela está pre­cisamente onde deve estar, no lugar apropriado para a primeira fase da sua vida. A simples existência de um argumento que com­para o filho da própria mulher a um assaltante ou a um intruso diz-nos muito sobre a mentalidade dos seus defensores. Se a mu­lher vê o seu próprio filho como um assaltante ou um intruso, isso é já um mal, mesmo que se abstenha de o matar. Imagine que a criança já nasceu e que a mãe a vê como um intruso na sua casa, como alguém que está sempre no seu caminho, a restringir-lhe a liberdade. Veríamos aí um egoísmo terrível. Passa-se o mesmo quando a criança é mais pequena e a expressão «na sua casa» tem um sentido mais íntimo, pois refere o próprio corpo da mãe. Esta mentalidade ignora a grande dádiva e privilégio de ser mãe, a dádiva de poder alimentar uma nova pessoa humana. Tam­bém ignora a responsabilidade profunda que temos uns pelos ou­tros, enquanto membros da comunidade humana. Isto não se apli­ca apenas ao auxílio aos necessitados e às outras obrigações que temos para com as pessoas já nascidas; envolve também as nossas obrigações para com os nossos próprios filhos. A mulher que vê o filho que está no seu útero como um intruso foi em tempos uma criança que vivia dentro de um útero. Ela não teria desejado ser vista como um intruso pela mãe. «Faz aos outros aquilo que quererias que eles te fizessem.»
A mulher tem o direito de estar neste mundo, num lugar apropriado para viver. Exactamente da mesma forma, a crian­ça que está no seu útero tem o direito de estar no seu mundo, num lugar apropriado para se alimentar, desenvolver e ficar protegida. Assim, contrariamente ao que Thomson pensa, a criança tem o direito de estar no útero – tal como a própria Thomson teve este direito quando era ainda uma nascitura. Deste modo, a analogia com o assaltante ou o intruso acidental fracassa – e, consequentemente, qualquer argumento que tente justificar a expulsão da criança do útero a partir da ideia de que não passa de um in­truso está também condenado ao fracasso.
Em segundo lugar, mesmo que a criança fosse um intruso, isso justificaria a sua eliminação da mulher, mas não o acto de a matar. Como já observei, não posso atirar o intruso pela janela, se isso significar que vou matá-lo atirando-o de um penhasco. E, como é óbvio, o aborto consiste nisto: matar a criança. O aborto é errado porque consiste em muito mais do que uma simples eliminação: con­siste em cortar a criança aos pedaços, queimar a sua pele, etc. Quem faria algo deste género a um intruso?»

Adaptado de Stephen D. Schwarz, O Direito da Mulher a Controlar o Seu Corpo?, in A Ética do Aborto, pp 64-66.


  1 – Qual é a tese central do texto? 
A tese central do texto é a de que o feto humano é um ser que tem direito a ser protegido.
2 – Que proposição mostra que Schwarz discorda radicalmente de Thomson ou pelo menos da interpretação que faz das suas ideias?
A proposição é A criança não é um intruso.
3 – Ao afirmar que a criança não é um intruso, Schwarz está implicitamente a denunciar como fraco o argumento do violinista apresentado por Thomson. Lendo o texto de Schwarz consegue esclarecer qual a principal objecção do autor?
Schwarz nega que haja semelhança plausível entre o violinista ligado à pessoa da qual a sua sobrevivência depende e o bebé que vive no útero da mãe. A pessoa ligada ao violinista não tem dever algum de sustentar a vida daquele, ao passo que a mãe tem o dever de preservar a vida do feto. Porquê? Porque o violinista é um estranho que estabelece uma ligação exterior e artificial com a pessoa a que está ligado e o feto é filho de uma pessoa, ligado a ela de forma natural e profundamente íntima. Que não se tenha a obrigação de sustentar a vida de estranhos não implica que não tenhamos a obrigação de sustentar a vida do que é nosso e em nós vive.                   


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