sábado, 26 de fevereiro de 2011

NIETZSCHE 1 - O RACIONALISMO É A NEGAÇÃO DA VIDA


Nietzsche 1
O racionalismo é a negação da vida
«Da minha vontade de saúde, de vida, fiz a minha filosofia»

«Para o forte, o conhecimento, o dizer sim à realidade é uma necessidade tal como para o fraco, sob a inspiração da fraqueza, também é uma necessidade a cobardia e a fuga perante a realidade — o ‘ideal’»

Na segunda metade do século XIX, o pen­samento de Nietzsche constitui-se como a crítica mais radical e violenta contra a cul­tura ocidental estabelecida. Essa contesta­ção atinge a cultura europeia em todas as suas modalidades: filosofia, religião, moral, arte, ciência, etc.
A cultura ocidental está, segundo Nietzsche, envenenada por uma certa moral, por uma atitude antinatural que desvaloriza o mundo sensível, o mundo do devir, tudo o que é corpóreo, em nome da Razão e do Espírito. Os valores e os ideais que a cultura europeia promoveu são o resultado de uma vontade empenhada em instaurar a racionalidade a todo o custo. Esta sobrevalorização da Razão é, para Nietzsche, um sintoma de decadência, de falta de vitalidade.
O racionalismo ocidental atrofiou a vida humana porque desvalorizou de uma forma radical este mundo e esta vida, transformando em mundo verdadeiro e superiormente real um mundo artificialmente construído, que nada mais traduz do que a incapacidade e a im­potência perante a realidade, isto é, perante o sofrimento, a dor, tudo o que no mundo ter­reno nos inquieta, desconcerta e ameaça. Esta negação da vida, de tudo o que é sensível, corpóreo, dos instintos, das paixões, produziu grandes obras intelectuais, esteve na origem de brilhantes produções do espírito, mas revela-se, no fundo, profundamente imoral.
Os valores promovidos ao longo de séculos no Ocidente são valores nocivos, prejudi­ciais, opostos a uma relação saudável com a vida. Não são o produto de uma Razão pura, mas a criação de uma vontade fraca e impotente, incapaz de enfrentar a realidade e dizer sim à vida na sua totalidade.
A Razão é o instrumento de uma vontade de vingança contra a realidade sensível, é um meio de a destituir de qualquer valor, de desprezar tudo o que na realidade é difícil de dominar ou controlar: o corpo, os sentimentos, as paixões, o carácter imprevisível do de­vir, no qual a vida consiste.
Descobertas as raízes indecentes da cultura ocidental, a imoralidade e os baixos instin­tos que profundamente a determinam, exige-se o derrube dos valores e ideais que, pretensamente racionais, nada mais são do que a negação de uma racionalidade saudável.
A decadência, segundo Nietzsche, começa com a filosofia socrático-platónica.
O pensamento ocidental tem identificado a verdade com o Bem, mas o que se tem considerado verdadeiro representa uma construção artificial que nega a realidade e o que se tem considerado bom corresponde a uma condenação de tudo o que é natural, das raízes profundas da vida. Nietzsche avalia negativamente o pensamento europeu desde Sócrates até aos nossos dias.
Como o cristianismo, herdeiro do platonismo, ocupa um lugar central no desenvolvi­mento da cultura ocidental, ele é, aos olhos de Nietzsche, o agravamento e a consolidação de uma atitude negativa perante a vida. O que é comum ao platonismo e ao cristianismo é o facto de julgarem a vida à luz de certos valores que Nietzsche denuncia como niilistas. O que os caracteriza ê a procura do Além, de um mundo que transcende este e que, embora não seja mais do que uma ficção, será considerado como o mundo verdadeiro e como o mundo do Bem.
O desgosto niilista de viver faz com que o cristianismo não represente uma reacção vi­tal contra a decadência helenística mas a sua continuação lógica. O próprio platonismo ti­nha afirmado a necessidade de distinguir «mundo verdadeiro» (o mundo das Ideias imutá­veis e eternas) do «mundo aparente» (o mundo sensível ou do devir), tendo definido o «mundo verdadeiro» como razão de ser ou fundamento do aparente.
A inevitável consequência desta distinção será o descrédito e a negação da realidade do mundo sensível ou do devir. Neste sentido, platonismo e cristianismo são manifestações sucessivas de uma atitude fundamentalmente niilista (dizer não à vida, considerar «este mundo» como imperfeito, como uma falsa realidade) que determina inteiramente o curso da civilização europeia.
Ao criticar a cultura ocidental remontando às suas origens socrático-platónicas, Nietzsche vai revelar que tipo de homem é aquele que tem necessidade de contrapor ao mundo sensível ou do devir um outro mundo e porque razão esse outro mundo é conside­rado como um «mundo verdadeiro».
A mentalidade do metafísico, que Nietzsche «considera como uma cobardia perante a realidade», não tolera a imprevisibilidade, a instabilidade e a dor que são características desta: um tal mundo fá-lo sofrer, um tal mundo desgosta-o, um tal mundo é odioso. Determinado por estes sentimentos ou instintos negativos, desejando vingar-se de um mundo que ele é incapaz de suportar e ao qual atribui a causa dos seus sofrimentos, o fraco ou o impotente constrói um mundo artificial à imagem dos seus desejos de segurança e estabilidade, de paz e de continuidade e é de tal modo profundo o seu desejo de que exista esse mundo que o vai transformar em mundo verdadeiramente real ou superior. Ao analisar a génese desse tal mundo, Nietzsche não pode deixar de evidenciar que esse mundo é uma construção da fraqueza perante o único mundo real. Aquilo que o Ocidente se habituou a considerar como a verdadeira realidade, e que em linguagem cristã terá o nome de «reino de Deus» ou «vida eterna», é afinal a miserável invenção de vontades fra­cas e impotentes, o produto do delírio doentio daqueles que nada mais são do que realida­des falhadas, seres impotentes e débeis. Poderíamos comover - nos com este desejo de es­tabilidade e de paz mas, o «outro mundo» não é inventado simplesmente para consolar mas para satisfazer uma vontade de vingança, um ressentimento mesquinho em relação ao único mundo real. Assim, não se deformou simplesmente a realidade ou esta vida ao sobre­por-lhe como infinitamente superior uma outra. Com efeito, o «outro mundo» ou «a outra vida» são ficções destinadas a desprezar, a caluniar e a destituir de qualquer valor o mundo do devir. São estes instintos baixos que, por paradoxal que pareça, determinam subterraneamente os valores, as grandes construções espirituais (morais, religiosas, filosó­ficas) de que o Ocidente se orgulha.
Assim, o combate de Nietzsche contra a cultura ocidental, intoxicada pelo platonismo e pelo seu herdeiro populista que é o cristianismo, é feito com o objectivo de reafirmar a vida, de a libertar de uma moral que a atrofia, a contamina e a nega nas suas raízes mais profundas. Não é de admirar que um dos aspectos mais profundos da crítica de Nietzsche à cultura ocidental seja a crítica à moral.
Com efeito, ela é a raiz de tudo, isto é, de todos os valores que a cultura ocidental pro­moveu. Por moral, devemos entender a resposta que o homem dá à questão «Como devo agir?» ou «Como devo viver?» Desde bem cedo se estabeleceu na cultura ocidental que o homem devia agir rejeitando tudo o que é natural ou sensível.
A atitude moral tem sido o convite à evasão do mundo sensível em direcção ao mundo inteligível, dito perfeito e mais valioso. A moral ocidental tem sido a expressão do ódio e da vontade de vingança própria daqueles que negam autêntica realidade a este mundo, tem sido um produto tóxico (moralina) que envenena a relação do homem com o mundo e com a vida, que impede a entrega plena à existência terrena, que inventa paraísos arti­ficiais que transformam a realidade num inferno. Enquanto o homem não se aperceber de que o «outro mundo» nada vale e que só este é que conta, a sua relação com a vida será doentia, enquanto o homem não se aperceber de que onde cresce a dor e o sofrimento tam­bém crescem a felicidade e a alegria, continuará a ser uma realidade doente.
Numa obra inacabada e somente publicada em 1901, um ano depois da sua morte, obra essa constituída mediante a elaboração e recomposição de fragmentos que Nietzsche dei­xara dispersos, o autor de Assim Falava Zaratustra define o que sempre foi o objectivo da sua reflexão.
«É preciso destruir a moral para libertar a vida.»
[Nietzsche, Vontade de Poder, vol I]
Traçado esse plano, estabelece o meio que permitirá cumpri-lo:
«Basta provar que a própria moral é imoral, no sentido em que até agora se entendeu este termo.»
[Nietzsche, op. cit.vol. I]
Todo e qualquer sistema moral (há morais e não a moral) é determinado por um con­junto de instintos que para Nietzsche são de dois tipos: afirmativos e glorificadores da vida ou negativos e caluniadores. A moral, seja ela qual for, tem um fundamento psicofisiológico, ou seja, é a partir do corpo do sujeito que julga e da forma como este com aquele se relaciona que se constitui a perspectiva sobre a vida chamada valor. A moral, nas suas diversas formas, é manifestação ou sintoma de uma determinada espécie de vida: ascen­dente ou descendente.
«Destruir a moral» significa destruir uma certa espécie de moral, mostrar a sua imoralidade, ou seja, que ela satisfaz instintos de ódio, vingança e ressentimento que são um desmentido dos seus próprios princípios. Veremos mais adiante como essa opera­ção corrosiva se efectua.
«Libertar a vida» significa libertar uma certa forma de vida de uma moral que a into­xica, a denigre e impede a sua plena manifestação.




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