terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O PROBLEMA DA MORALIDADE DO ABORTO 1 - PETER SINGER


O PROBLEMA DA MORALIDADE DO ABORTO
A POSIÇÃO DE PETER SINGER
A interrupção voluntária da gravidez é moralmente legítima?

Por que razão o problema do aborto vem à baila quando falamos de problemas da civilização técnica e científica? Podemos apontar razões para dissociar tais coisas e a principal seria a de que o aborto já foi praticado, discutido e legislado antes da ciência levantar voo... na época moderna mais propriamente com Galileu.
A ligação entre o problema do aborto e a cultura científico -  tecnológica, pode ser dada pelo facto de a ciência ter facilitado imenso a prática do aborto. Mas essa razão assenta numa outra que nos parece ser mais importante: o desenvolvimento da cultura científica enfraqueceu as tradicionais fontes de normas que regulavam o comportamento humano, exigindo assim de certa forma que o problema fosse retomado. Com a ciência e a técnica, a tradição e a antiguidade deixam de ser critério para justificar e manter uma norma. A religião e os costumes em geral perderam assim parte da sua força. A verdade sobre o assunto parece depender de uma discussão filosófica e do desenvolvimento da ciência - nomeadamente das ciências biológicas para definir quando começa realmente a vida - e não da força que tenha herdado da tradição. 
Quando perguntamos se é moralmente errado abortar, estamos a falar de interrupção voluntária da gravidez. Há o aborto que acontece (aborto espontâneo) e o aborto que se faz ou que se quer que aconteça (aborto voluntariamente provocado). (Nota na margemDistinguem-se duas espécies de aborto provocado: o aborto terapêutico e o aborto não terapêutico. No primeiro caso, a morte do feto é um meio para salvar ou proteger a vida da mãe. No segundo caso, procura-se intencional e directamente a morte do feto, não por razões médicas, mas por outras razões que podem ser falta de recursos para sustentar e criar uma criança, ter sido vítima de violação, etc.) Não vamos discutir, apesar do caso que apresentámos, se o Estado deve permitir ou proibir o aborto. Por outras palavras, o problema que vamos debater não é o da legalidade do aborto, ou seja, se deve haver leis que o permitam ou o proíbam. Sabemos que em muitos países o aborto – a interrupção voluntária da gravidez – é legalmente permitido e que, mesmo nos países que, como a Irlanda e a Polónia, o proíbem, este é permitido em circunstâncias especiais – quando a gravidez resulta de violação ou põe em risco a vida da mãe.
O aborto é uma decisão pessoal, não um debate legal, diz o cartaz. Mas será que podemos reduzir o aborto a uma «questão de consciência»?
O debate sobre a moralidade do aborto é muito complexo. Nesta introdução ao tema, estudaremos os argumentos mais importantes a favor ou contra. Antes, é conveniente dizer que sobre a moralidade do aborto há duas posições gerais: a posição pró-vida e a posição pró-escolha. Os defensores da posição pró-vida afirmam que o aborto é um acto moralmente errado porque a vida de um feto tem um valor comparável à vida de um ser humano adulto. Nesta perspectiva, fazer um aborto é cometer um crime. Os defensores da posição pró-escolha negam que a vida de um feto seja equivalente à vida de um ser humano adulto e, mesmo que não retirem todo o valor à vida do feto, afirmam que o direito da mãe a abortar é mais forte. (NOTA  - Os defensores da posição pró-vida são conhecidos por conservadores e os defensores da posição pró-escolha são conhecidos por liberais. A caracterização que fizemos das duas posições ou teses foi geral porque em cada um desses grupos há atitudes mais flexíveis e outras mais intransigentes. No grupo pró-escolha há quem não reconheça qualquer valor ao feto até um certo estádio do seu desenvolvimento. No outro grupo, há quem não admita aborto em circunstância alguma.)
1. O argumento da humanidade do feto: o feto é um ser humano inocente.
O argumento mais frequente a favor da posição pró-vida é o seguinte:
Matar um ser humano inocente é moralmente errado.
Um feto humano é um ser humano inocente.
Logo, matar um feto humano é moralmente errado.
O argumento é válido (a conclusão é justificada pelas premissas), mas temos de ver se é bom e para isso não é suficiente que seja logicamente correcto. As premissas têm de ser verdadeiras. Mas será que são verdadeiras?
A primeira premissa parece indiscutível. A esmagadora maioria das pessoas considera errado matar seres humanos inocentes. É uma premissa que podemos considerar plausíve
Da segunda premissa já não podemos dizer o mesmo. O termo «ser humano» é ambíguo, isto é, pode ser entendido em sentidos diferentes. Em que sentido está a ser utilizado o termo «ser humano»? Podemos pensar em dois sentidos: «ser humano» pode querer dizer pessoa ou «ser humano» pode querer dizer «membro da espécie humana».
Apresentemos o argumento interpretando ser humano como sinónimo de pessoa:
Matar uma pessoa inocente é moralmente errado.
Um feto humano é uma pessoa inocente.
Logo, matar um feto humano é moralmente errado.

Perguntemos se o feto é uma pessoa? Admitamos que ser pessoa significa ser racional e possuir consciência de si. Por outras palavras, uma pessoa é um indivíduo capaz de pensar, de planear acções, que tem memória do passado, noção do tempo presente, expectativas acerca do futuro e que se apercebe de que, mudando com o tempo, continua a ser o mesmo. O João pode aumentar de peso, perder cabelo, envelhecer, ser pai, tornar-se diabético, mas não deixa de ser e de ter consciência de que continua a ser o João.
Dada a definição de pessoa, podemos afirmar que o feto é uma pessoa? Não. Ainda não atingiu o grau de desenvolvimento mental que lhe permita pensar racionalmente e ter consciência de si. Logo, o argumento não é bom.
Passemos ao outro possível sentido do termo «ser humano»: ser humano significa ser membro da espécie humana. Apresentemos o argumento:
Matar um membro inocente da espécie humana é moralmente errado.
Um feto humano é um membro inocente da espécie humana.
Logo, matar um feto humano é moralmente errado.

Esta versão do argumento da humanidade do feto foi criticada por Peter Singer. Ataca a primeira premissa, dado que a segunda é verdadeira. A primeira premissa é inaceitável para Singer. Porquê? Porque nos diz que é errado matar um membro da espécie humana só porque este pertence à espécie humana. Em termos biológicos, em virtude do seu código genético, um feto humano, um bebé, um jovem ou um adulto humanos pertencem à espécie humana. Mas será que essa pertença é moralmente relevante ou significativa? Não, diz Singer. A espécie, tal como a raça, é uma característica sem importância moral. Assim sendo, o facto de um ser vivo pertencer à espécie humana, não torna errado matá-lo. Ter dois braços, duas pernas, uma certa morfologia, caminhar erecto são características tão relevantes do ponto de vista moral como ter cabelo encaracolado. Não é suficiente ser membro da espécie humana para que seja errado matar um feto humano. Só seria errado matar o feto humano se este fosse uma pessoa, isto é, um ser dotado de consciência de si, de memórias, experiências, interesses e projectos. Ora, segundo Singer, os fetos humanos não são pessoas. Assim sendo, o argumento que apresentamos não é satisfatório.
Actividade 1
Leia o texto e responda às questões seguintes:
O argumento central contra o aborto segundo Singer
«Os seres humanos desenvolvem-se gradualmente no interior do corpo das mulheres. A morte de um óvulo humano acabado de fertilizar não parece ser o mesmo que a morte de uma pessoa. Todavia, não existe uma fronteira óbvia entre o feto que se desenvolve gradualmente e o ser humano adulto. Logo, o aborto levanta uma questão ética difícil.
Aqueles que defendem o direito da mulher ao aborto referem-se frequentemente a si próprios como "pró-escolha" em vez de "pró-aborto". Deste modo, procuram ultrapassar a questão do estatuto moral do feto e fazer do direito ao aborto uma questão de liberdade individual. Mas não pode ser simplesmente pressuposto que o direito da mulher ao aborto é uma questão de liberdade individual, dado que primeiro terá de ser provado que o feto abortado não é um ser merecedor de protecção. Se o feto merece protecção, então leis contra o aborto não criam "crimes sem vítimas", como o fazem leis contra relações homossexuais entre adultos que o consentem. Portanto, a questão do estatuto moral do feto não pode ser evitada.
O argumento central contra o aborto pode ser formulado deste modo:
É errado matar um ser humano inocente.
Um feto humano é um ser humano inocente.
Logo, é errado matar um feto humano.
Os defensores do aborto habitualmente negam a segunda premissa do argumento. A disputa acerca do aborto torna-se então uma disputa sobre se o feto é um ser humano, ou, por outras palavras, sobre quando começa uma vida humana. Os oponentes do aborto desafiam os seus adversários a identificar uma qualquer fase do processo gradual de desenvolvimento humano que estabeleça uma linha divisória moralmente significativa. A menos que exista tal linha, dizem, temos de ou elevar o estatuto do embrião inicial ao estatuto de criança, ou baixar o estatuto de criança ao estatuto de feto; e ninguém advoga a última direcção.
Geralmente, as linhas divisórias mais sugeridas entre o óvulo fertilizado e a criança são o nascimento e a viabilidade. Ambas estão sujeitas a objecções. Uma criança nascida prematuramente pode muito bem ser menos desenvolvida do que um feto próximo do termo da gravidez, e seria peculiar defender que não podemos matar a criança prematura, mas podemos matar um feto mais desenvolvido. Por sua vez, a viabilidade varia de acordo com o estado da tecnologia médica, e mais uma vez seria estranho defender que o feto tem direito à vida se a mulher grávida vive em Londres, mas já não o tem se a mulher grávida vive na Nova Guiné.
Quem deseja negar ao feto o direito à vida está em terreno mais seguro se desafiar a primeira premissa do argumento, em vez da segunda. Descrever um ser como "humano" é usar um termo que incorpora duas noções distintas: membro da espécie Homo sapiens, e ser uma pessoa, no sentido de um ser racional e autoconsciente. Se "humano" é tomado como equivalente a "pessoa", a segunda premissa do argumento, que afirma que o feto é um ser humano, é manifestamente falsa; ninguém pode plausivelmente argumentar que o feto é ou racional ou autoconsciente.
Se, por outro lado, "humano" é tomado apenas como "membro da espécie Homo sapiens", então é preciso mostrar por que razão ser membro de uma dada espécie biológica é suficiente para ter direito à vida. De preferência, argumentará o defensor do aborto, devemos olhar para o feto e ver aquilo que ele é — as características que ele realmente possui — e avaliar a sua vida em função disso mesmo.»
Peter Singer
Texto adaptado de Oxford Companion to Philosophy, organizado por Ted Honderich (OUP, 1995)
Tradução de Faustino Vaz
1 – Qual é a tese central do texto?
A tese central do texto é a de que o argumento baseado na humanidade do feto não é um bom argumento.
2 – Que condições seriam necessárias segundo Singer para que um feto fosse uma pessoa?
Para que um feto fosse uma pessoa – coisa que Singer não admite que seja –, teria de possuir racionalidade e autoconsciência.
3 – Será possível inventar um contra-exemplo que negue a proposição «É errado matar um ser humano inocente»?
Imaginemos que pessoas inocentes foram hipnotizadas por um psiquiatra louco e que têm ordens para matar seja quem for. Apesar de serem inocentes, não será razoável pensar que temos o direito de os matar se nos ameaçarem gravemente? Será este o caso dos fetos que constituem uma ameaça à sobrevivência da mãe? A verdade é que, se este contra-exemplo for razoável, a primeira premissa daquele que Singer considera o argumento central contra o aborto é destruída e o argumento deixa de ser persuasivo.

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