terça-feira, 1 de março de 2011

A ATITUDE FILOSÓFICA


A atitude filosófica

Todos temos crenças acerca do que é real, do que é valioso, do que é moralmente correcto ou incorrecto, etc. A filosofia examina criticamente estas crenças fundamentais, ou seja, a aceitação ou recusa das nossas crenças básicas não se faz sem antes as submeter a um exame racional. Isto quer dizer que a filosofia transforma essas crenças em problemas. Por exemplo, por mais pessoas que acreditem que Deus existe ou que o aborto é moralmente aceitável, um filósofo tem de perguntar duas coisas: 1 – Será que isto é verdade? 2 – Há boas razões para pensar que estas crenças são verdadeiras? Por isso se diz que a filosofia é uma atitude crítica, problematizante, que não dá nada como garantido.
Uma ilustração da atitude filosófica: a alegoria da caverna.
Um célebre texto de Platão, conhecido por Alegoria da Caverna, dá-nos uma ideia não só do que é a atitude filosófica, mas também de alguns problemas que ocupam a reflexão dos filósofos.

Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no género dos tapumes que os homens dos "robertos" colocam diante do público, para mostrarem as suas habilidades por cima deles.
Estou a ver – disse ele.
– Visiona também ao longo deste muro homens que transportam toda a espécie de objectos, que o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros seguem calados.
Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu falas – observou ele.
– Semelhantes a nós – continuei. –Em primeiro lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto, de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras projectadas pelo fogo na parede oposta da caverna?
Como não – respondeu ele –, se são forçados a manter a cabeça imóvel toda a vida?
– E os objectos transportados? Não se passa o mesmo com eles?
Sem dúvida.
– Então, se eles fossem capazes de conversar uns com os outros, não te parece que eles
julgariam estar a nomear objectos reais, quando designavam o que viam?
É forçoso.
– E se a prisão tivesse também um eco na parede do fundo? Quando algum dos transeuntes falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa, senão que era a voz da sombra que passava?
Por Zeus, que sim!
– De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas condições não pensavam que a realidade
fosse senão a sombra dos objectos.
É absolutamente forçoso – disse ele.
– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e via de verdade, voltado para objectos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada um desses objectos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objectos vistos outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?
Muito mais – afirmou. (...)
– Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui eu – deve agora aplicar-se a tudo quanto
dissemos anteriormente, comparando o mundo visível através dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira.
Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a ideia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência, e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública.»
Platão, A República, Livro VII, 514a – 517d
A alegoria da caverna fala – nos da condição da maioria dos seres humanos no que respeita ao conhecimento e ao que julgam ser a verdadeira realidade. Somos prisioneiros dos nossos hábitos, do que nos transmitiram através da socialização. Temos a cabeça cheia de ideias ou de crenças que não nos damos ao trabalho de examinar, de avaliar. Essa falta de pensamento crítico faz com que tomemos por verdadeira uma crença sem nos perguntarmos se há boas razões para a aceitar. Na alegoria, os prisioneiros representam o peso das ideias feitas e recebidas sem análise racional, são grilhões que atrofiam o pensamento. Qual é o erro que os prisioneiros cometem? Consideram que as sombras são a verdadeira realidade. Quer dizer, não sabem que as sombras são sombras. Quando um prisioneiro se solta – o que significa que os prisioneiros são prisioneiros por livre vontade, por comodismo, pensar diferente dos outros é difícil porque detestamos ver postas em causa crenças a que estamos agarrados há muito – ele distancia – se do mundo das sombras e pode assim ver as coisas, as sombras, com olhos diferentes. Olha para as sombras e vê que elas são sombras de alguma coisa, que não existem por si e por isso não são nem a única nem a verdadeira realidade. A ascensão esforçada do ex – prisioneiro ao mundo exterior à caverna, é uma transformação do seu modo de pensar. Adopta um espírito crítico e transforma as crenças da maioria em problemas. Os prisioneiros estão imóveis, passivos, porque consideram incontestáveis as crenças dominantes, são dominados por estas. O filósofo «está em movimento», numa viagem que o faz subir da caverna em direcção à luz exterior, não se satisfaz com as ideias feitas e essa viagem é difícil porque exige disciplina e capacidade intelectual além de coragem para pensar criticamente acerca de crenças básicas que nos foram transmitidas e aceites de forma acrítica. Ao perguntar «Será que Deus existe?», «Será que devemos obedecer a quem nos governa?», «Será que há uma vida para além da morte?», «Será que é justo pagar impostos ou ser enviado para uma guerra que acho injusta?», o filósofo abala as crenças estabelecidas, torna – se incómodo e pode ser considerado herege, adversário do regime, um perigoso despertador das consciências, um agitador. Vários sábios como Sócrates, Galileu, Giordano Bruno, sofreram com a sua ousadia de pensarem por si e de pensarem diferente dos outros. Andamos tão ocupados com as tarefas do dia-a-dia (assegurar o emprego, o sustento dos filhos, boas notas para ir para a universidade ou passar o ano) que ficamos aborrecidos quando alguém nos convida e tenta estimular para examinar criticamente as crenças em que temos baseado as nossas vidas. Ao descer à caverna, o filósofo anuncia que a realidade não é o que os seus habitantes pensam, que há um outro mundo lá fora. O que pretende ele com isto? O que quer ele dizer aos seus companheiros? Quer dizer – lhes que não devem transformar as ideias que receberam em hábitos mentais, que devem tornar – se filósofos e perguntar: O que justifica essas crenças? Que razões temos – se, é que temos, para pensar que elas são verdadeiras? A mensagem parece – me ser esta: «O vosso pensamento tem estado preso a crenças que nem se deram ao trabalho de questionar, aceitaram – nas como se não houvesse alternativa. Despertem, libertem – se porque não há uma só forma de pensar sobre as coisas. Aceitem só as crenças que estão apoiadas em bons argumentos. Deixem de ser conformistas, libertem – se de preconceitos. Não vivam à sombra do pensamento dos outros, dos que querem que vocês não pensem ou que só pensem como eles».
O filósofo regressado do mundo luminoso sem o qual nem sombras os prisioneiros veriam, não lhes diz: «Trago – vos a luz e a verdade». Seria trocar uma prisão por outra. O que o filósofo lhes diz é: «Façam como eu, afastem os olhos do fundo da caverna. Saiam da caverna para verem melhor o que está na caverna. Libertem – se das ideias estabelecidas, distanciem – se delas e reflictam racionalmente para ver se elas são aceitáveis. Pensem pela vossa cabeça. E nunca aceitem que uma crença é verdadeira só porque a maioria pensa que é verdadeira. A maioria pode estar errada. Escolham ser prisioneiros ou homens livres. A escolha é vossa.».
A filosofia é isto mesmo: pensamento crítico. O problema que os filósofos enfrentam com muitas pessoas é que pensar criticamente pode desorientar – nos, podemos sentir que estamos a ficar sem os pés no chão porque as crenças em que a nossa cultura e a nossa sociedade se baseia são questionadas. Não gostamos de ter dúvidas. Outro problema é que normalmente os filósofos chegam a respostas diferentes para o mesmo problema: uns dizem que somos livres, outros que não; uns dizem que o direito de governar se deve basear na vontade da maioria e outros no mérito; uns dizem que as intenções é que contam, outros que as boas acções dependem das consequências; uns que Deus existe e outros que Deus não existe. E muitas vezes, os argumentos parecem convincentes de um lado e do outro. Assim, muitas pessoas pensam que a filosofia nada nos diz e nos deixa confusos. Mas Platão dá a entender que a filosofia procura a verdade embora isso seja difícil. Haver problemas que devido à sua generalidade e radicalidade não têm solução científica, não quer dizer que não devamos responder – lhes. Na verdade, respostas sempre houve. A filosofia dá – nos o método – a discussão crítica de ideias – para lidar com as respostas que encontramos, sejam dos filósofos ou não. Esse método consiste em avaliar a qualidade dos argumentos em que se apoiam as crenças ou teorias que respondem aos problemas da filosofia. Devemos pensar por nós e pensar bem. E isso é importante para a nossa formação como seres humanos.
CARACTERÍSTICAS DA ATITUDE FILOSÓFICA
O USO CRÍTICO DA RAZÃO
A ATITUDE PROBLEMATIZANTE
A AUTONOMIA
A NECESSIDADE DE COMPREENDER AS QUESTÕES MAIS FUNDAMENTAIS DA EXPERIÊNCIA HUMANA
Para a filosofia as nossas crenças e opiniões não podem ser aceites sem justificação. Temos de as defender com argumentos.
Argumentos com os quais não estejamos de acordo devem ser refutados com contra – argumentos e nunca com um simples «não».
Ao interrogar as nossas crenças mais fundamentais, a filosofia pretende que pensemos se não estamos errados, não para nos desiludir mas para que procuremos ter uma compreensão mais alargada do mundo e de nós.

A filosofia transforma as nossas crenças em problemas, ou seja, coloca a questão «Será isso verdade?» «Há boas razões para acreditar que isso seja verdade?». O que parece evidente e bem estabelecido é para ser discutido.

Como dizia Kant, filosofar é ousar pensar por si. A atitude filosófica é incompatível com a dependência em relação a gurus ou orientadores espirituais e ao que a maioria julga ser a verdade.


Ao transformar algumas das nossas crenças em problemas, a filosofia pretende que olhemos para o mundo como se fosse a primeira vez que o encontrássemos. Assim, o conjunto de crenças estabelecidas a que nos habituámos, que nos dava segurança e orientação no mundo, é questionado. Reencontramos deste modo as questões mais profundas e misteriosas da nossa existência.

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