sexta-feira, 11 de março de 2011

Uma Comparação entre as abordagens de Peter Singer, Tom Regan e Gary Francione


Uma Comparação entre as abordagens de Peter Singer, Tom Regan e Gary Francione


Na minha apresentação, farei uma comparação entre as diferentes abordagens filosóficas dos três teóricos mais influentes sobre a questão animal, que são o australiano Peter Singer e os americanos Tom Regan e Gary Francione. Antes de fazer esta comparação, seria interessante fazer uma breve introdução sobre duas abordagens éticas distintas.

Por um lado temos a ética conseqüencialista, que procura maximizar a quantidade de prazer e diminuir ao máximo a quantidade de sofrimento no mundo. De acordo com esta abordagem, nossas acções deveriam se pautar principalmente pelas consequências dos nossos actos e seria aceitável sacrificar o interesse de alguns em nome do bem estar geral. Por outro lado, temos a ética do dever, cujo ponto de partida é o da observância estrita de algumas regras básicas, independentemente do resultado global. Logo, esta abordagem se baseia principalmente nas intenções dos agentes morais.

 O livro Libertação Animal de Peter Singer foi fundamental para impulsionar o actual movimento em defesa dos animais não humanos ao questionar a nossa relação com as outras espécies sencientes sob uma óptica aparentemente não especista baseada no princípio da igualdade de consideração. Desde então, este livro tem sido considerado como a Bíblia dos direitos animais e o seu autor como o pai do movimento. Principalmente depois que a organização PETA passou a promover Singer como o principal teórico do movimento, em detrimento dos proponentes dos verdadeiros direitos animais, como Tom Regan e Gary Francione.

Eu mesmo devo reconhecer a minha dívida para com Peter Singer, pois foi a leitura de um pequeno texto de sua autoria que fez com que eu mudasse radicalmente a minha atitude em relação aos outros animais. E o primeiro livro que li sobre a questão animal foi justamente Libertação Animal. Quando o li, praticamente não tinha nenhum conhecimento filosófico, e tudo parecia fazer sentido. Mesmo assim, alguns trechos não deixaram de me causar certa estranheza, pois, sob certas circunstâncias, Singer não via problema algum na vivissecção e no consumo de produtos animais.   

Como filósofo utilitarista, Singer é um adepto da ética consequencialista, que, conforme já mencionei, tem como objectivo a maximização do bem estar geral, onde os interesses de alguns poderiam ser ignorados caso comprometessem esta maximização. Cada indivíduo senciente seria portador de uma determinada potencialidade para o prazer, e a vida daqueles com uma maior potencialidade para o prazer valeria mais do que a dos outros. Para Singer, a vida de um ser humano normal valeria mais do que a de qualquer outro animal, pois a sua capacidade cognitiva maior faria com que ele fosse supostamente capaz de desfrutar um número maior de experiências prazerosas. Do mesmo modo, a vida de um chimpanzé normal também valeria mais do que a de um ser humano com deficiência mental profunda. Um critério aparentemente antiespecista, mas um exame mais minucioso indica justamente o contrário. Em primeiro lugar, por que usar como critério uma capacidade cognitiva maior e não uma capacidade olfativa maior? Só porque do nosso ponto de vista necessariamente humano esta característica parece ser mais relevante? Não seria este um critério especista? Além disso, uma capacidade cognitiva maior também poderia provocar muito mais sofrimento psicológico, diminuindo a potencialidade de maximização do prazer de um indivíduo com este atributo.

Seguindo este mesmo raciocínio, para Singer a morte de um indivíduo que não tem consciência de sua mortalidade seria menos danosa do que a de um indivíduo consciente de sua própria finitude. Do mesmo modo, a exploração da maior parte dos animais não humanos seria aceitável se eles não sofressem com isso, pois eles não teriam a menor consciência de que estariam sendo explorados. Portanto, a maioria dos animais não se importaria em ser explorada e morta pelos seres humanos e sim com o modo como são explorados e mortos. O enfoque de Singer se concentra no tratamento, o que caracterizaria a sua abordagem como bem-estarista. Sem dúvida um bem-estarismo radical, muito mais rigoroso com a minimização do sofrimento do que o bem-estarismo tradicional. E aparentemente antiespecista, ao se basear no princípio da igualdade de consideração para todos os indivíduos sencientes.

Para utilitaristas como Singer, a potencialidade para o prazer valeria mais do que individualidade de cada animal que não tem consciência da morte. Portanto, não haveria problema algum em interromper a vida de um animal de modo indolor se um outro animal da mesma espécie fosse criado logo em seguida e levasse a mesma vida prazerosa que a do seu antecessor. Além disso, isso geraria um prazer culinário extra para o “omnívoro consciencioso” responsável pela criação destes animais.

A abordagem de Singer nada tem a ver não só com os direitos animais, mas também com a ideia de direitos humanos que já é aceita pela maioria das pessoas. De acordo com tudo o que foi exposto acima, seres humanos órfãos com capacidade cognitiva gravemente prejudicada poderiam ser doadores de órgãos compulsórios ou usados como cobaias, contanto que sua dor fosse minimizada e sua morte fosse indolor. Para o utilitarismo, direitos são simples ferramentas destinadas a garantir a coesão social e maximizar o bem-estar geral, podendo ser violados se a sua observância prejudicar esta maximização.  

Já para os adeptos da ética do dever, os direitos são invioláveis, excepto em um contexto de legítima defesa ou de estado de necessidade. Mesmo se não houver uma maximização do bem estar geral. Um exemplo prático desta abordagem ética é a aceitação do conceito universal de direitos humanos por todos os países civilizados. De acordo com este conceito, seria inaceitável usar como cobaias mil indivíduos com deficiência mental profunda que foram abandonados pelas suas próprias famílias, ainda que este uso contribuísse decisivamente para a cura de dezenas de milhões de pessoas muito queridas e potencialmente produtivas.

Quando usamos a expressão direitos animais, devemos ter em mente que o significado da palavra direitos é exactamente o mesmo que é empregado na expressão direitos humanos. E de maneira nenhuma como o “direito” dos animais não humanos de serem usados de maneira supostamente humanitária pelos humanos. Nesse sentido, os americanos Tom Regan e Gary Francione são os principais expoentes dos direitos animais.

De acordo com Regan, para que um indivíduo seja titular de direitos básicos ele deve ser um sujeito-de-uma-vida, ou seja, ele deve ter uma vida mental complexa, o que incluiria, além da senciência, inteligência, percepção de si no tempo, cuidado de si e dos seus, autoprovimento e capacidade de interagir natural e socialmente. Já para Gary Francione, a mera presença da senciência, que nada mais é do que a capacidade de um organismo ter sensações, ou seja, de ter consciência de sua sensibilidade, já seria suficiente para que um indivíduo seja considerado com titular de direitos, sem haver necessidade de qualquer característica cognitiva mais complexa.

Em uma situação de emergência, onde alguns indivíduos só poderiam ser salvos em detrimento de outros, como é o caso de uma casa em chamas ou de um bote salva-vidas afundando, Regan admite que a vida de um ser humano normal teria mais valor que a de qualquer outro animal, empregando o mesmo critério especista de Singer, que é o da potencialidade de desfrutar um número supostamente maior de experiências futuras. Ou seja, se tivéssemos que escolher entre mil cachorros e um ser humano em uma situação como esta, deveríamos necessariamente escolher salvar o humano. Para Francione, a capacidade de um indivíduo de desfrutar um número maior de experiências futuras é irrelevante e não poderia ser empregada como critério de desempate mesmo em situações de emergência, pois todos os indivíduos sencientes teriam direito à vida em igual medida, já que sua morte implicaria na privação de suas experiências futuras, mesmo se eles não tiverem a mais remota idéia do que seja futuro.

Outra diferença entre Regan e Francione é que o primeiro enfatiza mais o respeito que deveríamos ter em relação a todos os sujeito-de-uma-vida tendo em vista as características que compartilhamos com eles, ao passo que o segundo se concentra mais na aplicação do princípio da igualdade de consideração e na erradicação do status de propriedade humana dos animais não humanos, sem a qual este princípio jamais poderia ser colocado em prática.

Podemos concluir que, apesar de Singer ter desencadeado o actual movimento de defesa animal graças ao seu livro Libertação Animal e ter influenciado muitos de nós a adoptarem o veganismo, sua abordagem não tem nada a ver com direitos animais. Se o nosso objectivo é a verdadeira libertação animal, que só ocorrerá mediante o reconhecimento dos animais como sujeitos de direito, deveremos difundir a abordagem abolicionista de Regan e de Francione.

Cláudio Godoy
veddas.org.br/enda/.../ClaudioGodoy_SingerReganFrancione.doc







  

1 comentário:

  1. Bom texto. Penso mais de acordo com a teoria abolicionista de Gary Francione.

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