quarta-feira, 2 de março de 2011

TOLERÂNCIA E MULTICULTURALISMO - LIMTES DA TOLERÂNCIA - O CASO DA MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA


Tolerância e Multiculturalismo

No mundo actual poucos são os países nos quais todos os cidadãos falam a mesma língua, têm a mesma religião e pertencem ao mesmo grupo étnico-nacional. Assim, no mesmo espaço vivem e manifestam-se culturas diversas e diferentes costumes e estilos de vida.
As sociedades democráticas ou abertas são pluralistas. Nas sociedades ocidentais, o pluralismo – a liberdade de expressão, de associação e de culto – foi uma conquista difícil. Em sociedades cuja cultura tem uma relativa homogeneidade, o pluralismo não se confronta com reivindicações étnicas e comunitárias e com a disparidade das culturas. Mas dados os forte fluxos migratórios, as sociedades abertas são hoje sociedades multiculturais, em que se torna complicado o “reconhecimento recíproco das diferenças”, sob o controlo de leis que devem valer igualmente para todos.
A diversidade cultural no interior de uma mesma sociedade tem, sem dúvida, aspectos positivos porque é fonte de enriquecimento cultural. Pode, contudo, ser também fonte de problemas porque as culturas minoritárias podem não abdicar de costumes e comportamentos que perante a lei constituem infracções ou crimes. Imaginemos que há pessoas que por tradição cultural têm várias esposas ou que comem carne de cão ou de gato. Serão toleráveis tais práticas em sociedades que reconhecem, dado o seu pluralismo e abertura, os direitos das minorias? Serão estas práticas legítimas? Em nome da tolerância, devemos aceitar seja o que for (só porque consagrado em dado espaço cultural) sem tentar determinar o valor do que se tolera?
A estas perguntas algumas pessoas respondem: não havendo valores universalmente reconhecidos – cada indivíduo só reconhece os valores que servem os seus interesses – devemos considerar tolerável o que não é interdito pela lei. Só o que é ilegal é intolerável.


 Os Limites da Tolerância: o Caso da Mutilação Genital Feminina

O caso seguinte constitui um desafio a todos os que colocam a si próprios esta pergunta: com base em que critério/s consideramos algo intolerável?
Trata-se de uma prática comum em muitos países africanos e que também é frequente nas comunidades de imigrantes africanos residentes em países europeus. A mutilação genital feminina (M. G. F.) é uma boa oportunidade para reflectir sobre os limites da tolerância. O tema é chocante, mas seria leviano e patético não o dar a conhecer por esse motivo.


O Que é a Mutilação Genital Feminina?

Por cada ano que passa, dois milhões de jovens mulheres, entre os 15 e os 25 anos, sofrem a mutilação de uma parte dos seus órgãos genitais. Esta prática tem igualmente o nome de excisão. Em que consiste? Na esmagadora maioria dos casos sem cuidados higiénicos especiais nem anestesia, uma excisora — é quase sempre uma mulher — utiliza uma lâmina de barbear ou uma faca e na presença de pais e amigos corta o clítoris e os pequenos lábios da jovem. É frequente que também os grandes lábios sejam retirados. É a “excisão total” ou infibulação.

Nas últimas décadas, a excisão acontece cada vez mais cedo. Actualmente a maior parte das vítimas tem menos de um ano. A prática da mutilação genital feminina é uma tradição de vários países africanos (é também praticada na Índia, na Indonésia e no Paquistão), embora não da maioria. Pratica-se sobretudo em países que a declararam ilegal: Nigéria, Sudão, Egipto, Somália e Quénia. Noutros países, Mali e Guiné-Bissau, por exemplo, não há qualquer interdição legal.
Por que razão várias etnias e populações inteiras continuam a realizar a mutilação genital feminina? A resposta imediatamente dada é esta: “É o costume. Entre nós todas as mulheres são excisadas”.
Mas as “razões” variam conforme as etnias (grupos de pessoas que partilham uma mesma língua, hábitos, costumes e valores). Para certos grupos, retirar o clítoris é necessário para que esse pequeno órgão não envenene o bebé no momento do nascimento, não prenda o órgão sexual masculino ou não impeça e relação sexual. Para além destas superstições, há outras justificações a que poderemos chamar simbólicas. Certas etnias do Mali, do Senegal e da Mauritânia consideram que a excisão é um acto purificador que dá à jovem o “direito à oração”. Outras afirmam que a excisão é o ritual que assinala a última etapa da vida de uma rapariga antes do casamento. A mutilação genital significa a ruptura dolorosa com a família e com a infância. Através dela a rapariga passa a ser tratada como mulher. Sem a excisão, não alcança esse estatuto nem pode casar-se.

As organizações não governamentais (ONG) e as mulheres africanas que combatem esta prática denunciam-na como estratégia de domínio sexual masculino (e como responsável por atrozes sofrimentos e por acentuada mortalidade em bebés e crianças do sexo feminino). A ablação do clítoris retira grande parte da sensibilidade aos órgãos genitais (a mulher perde em prazer o que ganha em fidelidade?). Mas não é fácil lutar contra costumes enraizados há milénios.

Pró ou Contra a Excisão ou Mutilação Genital Feminina

Propomos ao aluno que, argumentando, tome posição acerca deste assunto. Para delimitar a sua argumentação sugerimos que reflicta sobre a MGF enquanto prática de alguns grupos culturais inseridos em sociedades modernas, liberais e pluralistas como as da União Europeia.

Seja a tua posição favorável ou contrária à MGF, tens de ponderar os seguintes problemas:

a) Cada grupo étnico-cultural tem direito à sua identidade cultural. Mas até que ponto? Uma tradição, por mais enraizada que esteja, constitui por si um direito?

b) As sociedades pluralistas, mais do que as diferenças culturais, valorizam e enaltecem os direitos individuais e pretendem entre outras coisas promover o estatuto das mulheres. A que dar precedência: aos direitos culturais ou aos direitos individuais?

c) A unidade do todo social implica o respeito por leis comuns. O direito à diferença cultural é justificação para a violação da lei? Note-se que em Portugal a excisão é do ponto de vista legal um crime.

d) Mas são simplesmente considerações legais que estão em jogo? A consciência moral nada tem a dizer? São simplesmente os direitos do cidadão que estão em foco? A tolerância cultural não pode pôr em causa direitos universais (próprios de todos os indivíduos, seja qual for a etnia, a filiação cultural e nacional, o sexo, etc.)?

e) Já dissemos que múltiplas culturas vivem no espaço social constituído pelas sociedades modernas. São sociedades multiculturais resultantes de processos civilizacionais e migratórios. Dada esta realidade, defende-se em alguns meios intelectuais a ideia de multiculturalismo, pretendendo-se fundamentalmente evitar que as culturas minoritárias sejam sufocadas pela cultura dominante. O multiculturalismo defende o reconhecimento da herança cultural de cada grupo, digna de respeito e apreço; a equivalência das orientações culturais de cada grupo; o direito de cada grupo a manter a sua singularidade cultural; e o enaltecimento da diversidade cultural. Se formos multiculturalistas, aceitaremos que se considere a excisão como um “caso de polícia”?


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