quarta-feira, 2 de março de 2011

A PERSPECTIVA NATURALISTA SOBRE O SENTIDO DA VIDA


A Perspectiva Naturalista Sobre o Sentido da Vida

O problema do sentido da vida é de difícil formulação devido à ambiguidade da expressão “sentido da vida”. Esta ambiguidade, por sua vez, resulta da ambiguidade da palavra “sentido”. Noutros contextos, a palavra "sentido" pode referir-se ao sentido das palavras, mas aqui é óbvio que não é disso que se trata. No nosso contexto, podemos querer dizer duas coisas quando nos referimos ao sentido da vida: 1) podemos estar a falar da direcção, do propósito, da finalidade da nossa vida; 2) ou podemos estar a falar do valor da nossa vida.
Como, por outro lado, há vários tipos de finalidades, e como nem todas as finalidades são susceptíveis de dar sentido à nossa vida, o próprio sentido da expressão é origem de mais confusões.
Comecemos por esclarecer dois tipos diferentes de finalidades.
Se me perguntarem com que finalidade apanhei hoje de manhã o comboio, respondo que foi para me dirigir à faculdade.
O que dá sentido à minha viagem de comboio é o meu desejo de ir para a faculdade. Claro que agora podemos perguntar com que finalidade vou para a faculdade. Eu posso responder que vou para a faculdade porque preciso de trazer alguns livros da biblioteca e quero assistir a alguns seminários. E agora podem perguntar-me qual é a finalidade disso. E nunca mais se acaba. A pergunta pela finalidade tem esta característica: aparentemente, podemos sempre continuar a fazê-la. É como a pergunta “Porquê?” – que, a propósito, é muitas vezes uma pergunta pela finalidade de algo (“Por que é que apanhaste o comboio esta manhã?”).
Mas será que podemos realmente continuar sempre a exigir mais uma resposta? Não haverá aquilo a que os filósofos chamam “finalidades últimas”? Sem dúvida que sim. Quando faço várias coisas para preparar um chá, o prazer que tenho a beber chá é uma finalidade última: não faz sentido perguntar com que finalidade gosto de beber chá. E compreende-se porquê: o meu gosto de beber chá é algo que dá um sentido a tudo o que faço para poder beber chá, é a razão de ser de tudo o que faço para beber chá; mas, em si, o meu gosto por chá não é um meio para qualquer outra finalidade; é uma finalidade em si, uma finalidade última. O mesmo acontece com tudo o que faço para ir para o colégio: estou a satisfazer o meu gosto por filosofia; e isto é um fim em si, não é algo que eu faça em função de outra coisa qualquer.
Podemos assim compreender a nossa vida como um encadeamento de acções que procuram atingir diversas finalidades últimas. Isto dá origem a uma forma errada de entender o problema do sentido da vida. Essa forma é a seguinte: o problema do sentido da vida consiste em descobrir a finalidade última da vida humana.
Algumas escolas gregas defendiam que a finalidade última que devíamos procurar na nossa vida era a satisfação dos nossos desejos ou o conhecimento ou a virtude ou outra coisa qualquer. E depois mostravam o que pensavam ser a melhor maneira de atingir essa finalidade última e única. Esta é uma forma errada de entender o problema do sentido da vida por dois motivos.
Em primeiro lugar, porque não é verdade que a existência de uma única coisa que seja a finalidade última da vida humana seja uma garantia do sentido da nossa vida. Claro que, numa certa acepção fraca da expressão “sentido da vida”, a existência de uma finalidade última dá sentido à nossa vida. Mas isso é apenas uma acepção fraca da expressão. Não é apenas isso que realmente temos em mente quando perguntamos pelo sentido da vida. Afinal, ainda que a finalidade última da minha vida seja X, não se segue que faça sentido viver para alcançar X – a não ser que X tenha, intrinsecamente, algum valor.
Em segundo lugar, porque se acharmos que a nossa vida tem valor desde que haja uma finalidade última X, não se percebe por que razão é importante que haja uma única finalidade última. Na verdade, ao longo da vida, os seres humanos cultivam várias finalidades últimas. Entre as várias finalidades últimas que os seres humanos cultivam estão o conhecimento, o amor, a amizade, o prazer de ver os filhos a crescer e os amigos a prosperar. Por que razão uma única é mais importante do que várias?



Naturalismo: Finalidade e Valor

Uma ideia popular é a de que sem Deus a vida não faz sentido. O que está subjacente a esta ideia é o facto de a existência de Deus conferir sentido à nossa existência. Esta é uma ideia pelo menos altamente discutível. Logo, parece que não há qualquer conexão entre a existência de Deus e o sentido da nossa vida. A nossa vida pode fazer sentido ou não, mas isso parece ser independente da existência ou inexistência de Deus.
Infelizmente, a ideia de que sem Deus a vida não faz sentido tem tido muito sucesso. A ideia parece ser a seguinte. Se Deus não existe, se o universo, a vida e nós próprios somos o resultado da operação das leis da natureza, então o nosso aparecimento não foi planeado, não constitui um passo decisivo na prossecução de uma dada finalidade. Logo, a vida não tem sentido.
Esta conclusão parece ser um pouco apressada.
O facto de a nossa vida ser um passo importante na direcção de uma dada finalidade só dá sentido à nossa vida, no sentido forte e substancial, se essa própria finalidade tiver claramente valor. O grande problema do teísmo é explicar por que razão viver no paraíso ao lado de Deus é algo que tem intrinsecamente mais valor do que o nada.
Mas talvez o teísta esteja apenas a dizer que a vida tem sentido e valor em si e que o paraíso é apenas o prolongamento disso, para toda a eternidade; a esta alternativa o naturalista não pode deitar mão porque para ele a vida acaba com a morte.
Esta maneira popular de interpretar o teísmo é insatisfatória, pois depende da ideia de que a vida humana já tem valor intrínseco, que é precisamente o que estamos a tentar explicar – e portanto não nos podemos limitar a pressupô-lo, sob pena de cometermos a falácia do círculo vicioso. E, como vimos, mesmo a ideia teísta mais sofisticada não é senão a expressão da esperança de que a vida tenha sentido, apesar de a razão humana não poder compreender que sentido é esse.
Outra forma de interpretar a ideia teísta seria esta: a vida só pode ter sentido se puder de algum modo ser prolongada indefinidamente; uma vida que acaba no vazio é uma vida sem sentido; e isso é o que defende o naturalista: que a vida acaba no vazio.
Esta ideia também não é muito prometedora, pois empurra-nos para o sentido fraco da expressão “sentido da vida”. Tudo o que esta ideia afirma é que a vida humana faz sentido para nós – porque é agradável para nós. Mas não garante que a vida humana tenha realmente sentido de um ponto de vista mais substancial. Ainda que fosse verdade que prolongar indefinidamente o sentido fraco da nossa vida faz realmente sentido, isso não garantiria que a vida humana teria sentido de um ponto de vista mais substancial – isto é, não garantiria que um universo sem seres humanos, ou a inexistência de universo, fosse algo que fizesse menos sentido do que um universo com seres humanos.
Todavia, a ideia de que prolongar indefinidamente uma vida que tem sentido em termos fracos é também ela duvidosa. Pelo contrário, há razões para pensar que a minha vida seria absurda se eu pudesse viver 200 mil anos – quanto mais uma eternidade inteira. A não ser que a minha vida tenha valor objectivo, prolongá-la indefinidamente não parece prolongar indefinidamente o valor subjectivo da minha vida – pelo contrário, parece uma maneira segura de retirar todo o sentido subjectivo à minha vida. A morte, ao contrário do que se pensa, pode muito bem ser o que dá sentido à vida, em termos subjectivos.
Esta última afirmação pode parecer enigmática e sem dúvida que precisa de alguma defesa, apesar de ser lateral ao nosso tema. Ora, para os nossos propósitos basta-nos mostrar, como já fizemos, que prolongar uma vida que apenas tem sentido subjectivo não lhe dá sentido objectivo. Só posso defender a afirmação mais forte de que prolongar uma vida com sentido subjectivo lhe tira mesmo esse sentido neste ensaio chamando a atenção para a intuição comum de que a repetição ad eterno de seja o que for que tenha apenas valor subjectivo torna isso absurdo. Apesar de beber chá ser algo que faz pleno sentido, beber chá durante toda a eternidade é absurdo. Apesar de o estudo fazer pleno sentido, estudar durante toda a eternidade é absurdo. Numa vida eterna, temos a oportunidade de fazer tudo durante todo o tempo e há uma forte intuição a favor da ideia de que tudo perderá o sentido subjectivo que tinha. É o facto de sermos mortais e transitórios que dá sentido às diferentes finalidades subjectivas que vamos cultivando ao longo da vida. Se as pudéssemos cultivar a todas eternamente, nenhuma delas teria para nós mesmos qualquer valor.
Em conclusão, não há qualquer razão para pensar que a existência de Deus dá sentido à vida. Se a vida humana tem sentido, isso não se deve à existência de Deus. Mas poderá a vida humana ter sentido com base em algo que não Deus? Como pode responder o naturalista ao problema do sentido da vida?
Só podemos conceber que a nossa vida tenha sentido de um ponto de vista substancial se houver, objectivamente, valor. Dizer que uma vida humana tem sentido de um ponto de vista substancial é dizer que essa vida tem objectivamente valor.
Vejamos um exemplo, de modo a ilustrar esta ideia.
Consideremos a vida de uma pessoa virtuosa. Essa pessoa trouxe bem ao mundo; pautou a sua vida por valores como o altruísmo, a temperança, a bondade, a ajuda ao próximo. Procurou contribuir para resolver problemas do seu mundo, como a fome ou a miséria, a falta de acesso ao conhecimento ou à arte. Será que essa vida tem sentido, de um ponto de vista substancial? A resposta depende de saber se o bem que essa vida trouxe ao mundo é ele mesmo objectivamente um valor. Se for, então a resposta à nossa pergunta é clara: um universo sem esta pessoa seria um universo objectivamente menos valioso do que um universo com esta pessoa.
É bom reparar que deste ponto de vista o sentido da vida humana não está inteiramente dado à partida, isto é, ainda que a pura existência de uma vida humana possa ter desde logo algum valor cognitivo, ético ou outro, o valor da vida dessa pessoa dependerá do que ela própria  fizer.A sua vida terá tanto mais sentido quanto maiores bens cognitivos, éticos ou outros criar. Esta é uma ideia importante, que explica aliás algumas das nossas intuições quando avaliamos a vida de um ser humano.
Uma intuição comum é a seguinte ideia: a vida de um grande artista, de um grande cientista ou de um grande benfeitor é uma vida plena de sentido, ao contrário da vida de um psicopata, de um ditador ou de um terrorista. Esta intuição não é fácil de explicar se não tivermos maneira de perceber que o sentido da vida é algo que depende essencialmente do valor objectivo dos bens criados por essa vida; se continuarmos pensar que a vida humana tem valor em si mesma, a vida de Gandi tem tanto sentido como a de Hitler – pois ambos acabaram por morrer, nenhum deles obedeceu a um plano divino e a existência de ambos ficou a dever-se às leis da natureza e não à vontade de Deus. E se tudo o que contasse para o sentido da vida fosse o facto de as pessoas alcançarem os seus propósitos (o sentido subjectivo da vida), a vida de um assassino como Hitler teria o mesmo sentido que a de um benfeitor como Gandi. Só quando compreendemos que o sentido da vida humana é uma consequência dos bens objectivos que essa vida trouxe à existência podemos explicar a intuição comum de que entre a vida de Hitler e a de Gandi há uma diferença fundamental.
Neste ensaio, propus-me defender a ideia de que se a ética é objectiva, então uma vida humana pode fazer sentido, na acepção robusta do termo, se essa vida se pautar pelos valores éticos correctos. Mas não é difícil ver que nada há de especial na ética. Se admitirmos que uma vida ética tem sentido, não é menos fácil admitir que uma vida que promova outros valores objectivos, se os houver, terá igualmente sentido: valores estéticos ou cognitivos vêm imediatamente à mente. O que é importante notar é que a vida humana não parece constituir por si um domínio separado de valores; o valor de uma vida humana é o resultado dos valores que nos são familiares e só se essa vida os cultivar.
A perspectiva naturalista aqui apresentada permite-nos compreender com alguma clareza, espero, em que consiste o sentido da vida humana. Um universo sem seres humanos é um universo com menos valor não porque um deus tenha determinado a nossa existência, mas porque somos seres capazes de criar coisas que têm objectivamente valor. Somos capazes de criar ciências e obras de arte, filosofia e bem-estar. Somos também capazes de criar guerras e fomes, ilusões e falsidades. O sentido da nossa vida não nos foi dado por uma qualquer divindade; a escolha está nas nossas mãos.
Podemos viver uma vida com sentido procurando atingir finalidades como o conhecimento, o bem moral ou a beleza. Ou podemos viver uma vida fútil, egoísta, voltada para nós próprios, cega e insensível ao que se passa à nossa volta, ou loucamente motivada contra uma parte substancial da humanidade, como é o caso dos racismo e da intolerância religiosa. É esta escolha fundamental que caracteriza, precisamente, a condição humana.

Desidério Murcho O Sentido da Vida (adaptado)
Intelectu  5 de Fevereiro de 2001



Actividades

1.Resuma a posição naturalista sobre o sentido da vida.

2.Que resposta daria a perspectiva naturalista à posição defendida por Tolstoi no seguinte texto:

As soluções de todas as possíveis questões da vida não podiam aparentemente satisfazer-me porque a minha questão, apesar de parecer ao princípio muito simples, incluía a necessidade de explicar o finito através do infinito e vice--versa.
Eu perguntava: «Qual é o sentido extra-temporal, extra-causal, extra-espacial da vida?». Mas respondia à questão «Qual é o sentido temporal, causal, espacial da minha vida?». O resultado foi que, depois de um longo esforço mental, a minha resposta foi «Nenhum».
Nas minhas reflexões equacionei constantemente – nem poderia ter feito outra coisa — o finito com o finito, o infinito com o infinito, e por isso daí resultou o que tinha precisamente de resultar: a força era a força, a matéria era a matéria, a vontade era a vontade, o infinito era o infinito, o nada era o nada — e nada mais poderia vir do nada.
[…] Quando vi isto, compreendi que não era correcto procurar uma resposta à minha questão no conhecimento ra-cional, e compreendi que a resposta dada pelo conhecimento racional era apenas uma indicação de que a resposta poderia ser alcançada se colocássemos uma questão diferente, mas apenas se ao discutir a questão introduzíssemos o aspecto da relação do finito com o infinito. Compreendi também que independentemente de quão irracional ou monstruoso fossem as respostas dadas pela fé, tinham esta vantagem: introduziam em cada resposta a relação do finito com o infinito, sem a qual não pode haver qualquer resposta.
Independentemente do modo como eu ponha a questão «Como tenho eu de viver?» a resposta é «De acordo com a lei de Deus». «Que resultado real terá a minha vida?» — «Tormento eterno ou bem-aventurança eterna». «Qual é o sentido que não é destruído pela morte?» — «A união com o Deus infinito, o paraíso.»
Assim, além do conhecimento racional, que me tinha parecido o único, fui inevitavelmente levado a reconhecer que toda a humanidade tinha um outro conhecimento irracional, a fé, que tornava a vida possível.
A irracionalidade da fé permanecia a mesma para mim, mas não podia evitar reconhecer que só ela dava à humanidade respostas às questões da vida e, consequentemente, a possibilidade de viver.

Leão Tolstoi, Confissão, 1882, pp. 17-18.

3.Por que razão, para a perspectiva naturalista, o sentido da vida não se pode reduzir a uma questão pessoal?

4.Concorda com a perspectiva naturalista sobre o sentido da vida? Porquê?

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