terça-feira, 1 de março de 2011

TEXTOS SOBRE O TEMA LIVRE – ARBÍTRIO E DETERMINISMO NA ACÇÃO HUMANA

TEXTOS SOBRE O TEMA
LIVRE – ARBÍTRIO E DETERMINISMO NA ACÇÃO HUMANA
TEXTO 1
O PROBLEMA DO DETERMINISMO E DO LIVRE – ARBÍTRIO
Algumas pessoas pensam que nunca é possível fazermos qualquer coisa diferente daquilo que de facto fazemos. Reconhecem que aquilo que fazemos depende das nossas escolhas, decisões e desejos e que fazemos escolhas diferentes em circunstâncias diferentes. Mas afirmam que, em cada caso, as circunstâncias que existem antes de agirmos determinam as nossas acções e tornam-nas inevitáveis. O total das experiências, desejos e conhecimentos de uma pessoa, a sua constituição hereditária, as circunstâncias sociais e a natureza da escolha com que a pessoa se defronta, em conjunto com outros factores dos quais pode não ter conhecimento, combinam-se todos para fazerem com que uma acção particular seja inevitável nessas circunstâncias. (…) A hipótese é que existem leis da natureza, tal como aquelas que governam o movimento dos planetas, que governam tudo o que acontece no mundo. Se isso é verdade, então mesmo quando estavas a decidir que sobremesa irias comer já estavas determinado pelos muito factores que operavam sobre ti e em ti que irias escolher o bolo. Não poderias ter escolhido o pêssego, apesar de pensares que podias fazê-lo: o processo de decisão é apenas a realização do resultado determinado no interior da tua mente. Se o determinismo é verdadeiro para tudo o que acontece, já estava determinado antes de nasceres que havias de escolher o bolo. A tua escolha foi determinada pela situação imediatamente anterior, e essa situação foi determinada pela situação anterior a ela, e assim sucessivamente, até ao momento em que quiseres recuar (…) Muitos cientistas acreditam hoje que o determinismo não é verdadeiro para as partículas básicas da matéria. – que numa dada situação existe mais de uma coisa que um electrão pode fazer. Se o determinismo também não for verdadeiro para as acções humanas, talvez isso deixe algum espaço para o livre arbítrio e para a responsabilidade. E se as acções humanas, ou pelo menos algumas de entre elas, não estiverem determinadas à partida? Mas o problema reside em que, se a acção não estava determinada à partida pelos teus desejos, crenças e personalidade, entre outras coisas, parece que foi apenas algo que aconteceu, sem qualquer explicação. Mas, nesse caso, como pode ter sido algo feito por ti? A acção livre limita-se a ser uma característica básica do mundo e não pode ser analisada. Há uma diferença entre algo que aconteceu, sem uma causa, e uma acção que se limita a ser realizada, sem uma causa. Portanto, talvez o sentimento de que podias ter escolhido um pêssego em vez de uma fatia de bolo seja uma ilusão filosófica, que não podia ser correcta, fosse qual fosse o caso.
NAGEL, Thomas, Que Quer Dizer Tudo Isto? – uma iniciação à filosofia, 2ª edição, 2007. Lisboa: Gradiva, pp. 46-55.
TEXTO 2
AS NOSSAS ACÇÕES SÃO PROGRAMADAS?
Imagine que é um brilhante cientista que criou um andróide muito semelhante ao andróide Commander Data da série Strar Trek. Contudo, algo de terrível acontece.
O andróide mata um ser humano. Não conseguindo capturar o andróide, o Ministério Público culpa-o a si. Segue-se o seguinte diálogo:

Procurador do Ministério Público: O sr. é o responsável pelo assassínio uma vez que programou o andróide, é o seu criador.
Cientista: É verdade, fui eu que o criei, mas programei-o para fazer escolhas de acordo com o seu livre-arbítrio.
Procurador: O sr. está enganado. O andróide não pode fazer escolhas livres. As suas escolhas são, em primeiro lugar, resultado do modo como foi programado, e em segundo lugar são resultado das modificações posteriores causadas pelo meio ambiente. As escolhas do andróide, foram determinadas por forças fora do seu controlo. O criador é responsável por estes factores. Seria responsável mesmo que o andróide pudesse alterar o seu programa de base e alterar o meio em que age, porque a sua forma de se auto-programar e de lidar com o meio foi determinada pelo seu construtor e programador.
Cientista: Se o andróide não tem livre-arbítrio por causa da sua constituição de base e das influências do meio, então os seres humanos também não têm livre-arbítrio. Tal como o andróide, os seres humanos também são o resultado da influência de factores genéticos (biológicos) e ambientais (sociais e culturais). Nascemos com uma constituição genética que não escolhemos e também não escolhemos as características físicas que apresentamos nem o meio em que nascemos. Se o andróide não pode ser responsabilizado, então eu, enquanto seu criador, também não posso ser responsabilizado.
Pode o andróide ser ao mesmo tempo programado e livre para fazer as suas próprias escolhas? Não é uma contradição nos termos?
Nós seres humanos não seremos como o andróide? Acreditamos que somos profundamente influenciados pelos nossos genes e pelo meio. Mas também acreditamos que pelo menos algumas das nossas escolhas e acções são livres. Podem estas duas crenças ser verdadeiras?
Temos a crença básica de que vivemos num universo em que os fenómenos se encontram determinados por acontecimentos anteriores e pelas leis da natureza. Por outro lado temos também a crença básica de que somos livres. Como é isto possível? Podemos ser livres num universo determinista? Ou a nossa liberdade é uma ilusão? Podemos conceber que o universo afinal não está inteiramente determinado justamente porque somos livres?
Retirado de LOGOS ECB

TEXTO 3
QUAL DELAS É VERDADEIRA? A CRENÇA NO DETERMINISMO OU A CRENÇA NO LIVRE – ARBÍTRIO?
LÁZARO: Aí vem a Carolina. Talvez ela nos possa dizer o que pensa sobre o assunto.
DANIEL: Olá, Carolina.
CAROLINA: Olá, Daniel. Olá, Lázaro.
LÁZARO: Eu e o Daniel estávamos a falar do julgamento por assassínio do Leopoldo e do Carlos.
CAROLINA: É esse o julgamento no qual Clarence Darrow tentou persuadir o juiz de que os réus não deveriam ser condenados à morte por terem assassinado um miúdo?
LÁZARO: É. O julgamento foi notícia por todo o país. Leopoldo e Carlos tinham apenas dezoito anos na altura e os seus pais eram bem conhecidos em Chicago, onde viviam.
CAROLINA: Porque é que o Leopoldo e o Carlos mataram o miúdo?
LÁZARO: Queriam cometer o crime perfeito.
CAROLINA: E é tudo?
LÁZARO: Sim. Foram a uma escola precisamente na altura em que as crianças estavam a sair, fizeram entrar no carro um rapaz que, por acaso, conheciam, deram umas voltas com ele, e depois deram-lhe com um cinzel na cabeça, de tal modo que ele sangrou até morrer no próprio carro. Depois disso, enfiaram o corpo do rapaz para dentro de um túnel situado fora da localidade.
CAROLINA: Que coisa horrível!
LÁZARO: Também acho. Talvez tenha sido por isso que os jornais fizeram um grande espalhafato.
CAROLINA: Qual foi a estratégia de Darrow no julgamento?
LÁZARO: Darrow defendeu que o juiz deveria ter compaixão dos dois jovens assassinos porque o seu acto foi o resultado de causas sobre as quais não tinham controlo. Deixa-me ler-te aquilo que ele realmente disse: "Eu não sei o que fez estes dois rapazes cometer este acto de loucura, mas sei que há uma razão para tal. Sei que eles não o engendraram. Sei que qualquer uma causa, de um número infinito de causas que vão até ao início, poderá ter determinado o espírito destes rapazes, que vocês devem condenar à morte por malícia, ódio e injustiça porque alguém, no passado, pecou contra eles".
CAROLINA: Realmente, isso é uma estratégia arrojada para ser usada por um advogado de defesa!
LÁZARO: Claro. Ouve o resto. "A natureza é forte e impiedosa. Ela funciona de um modo misterioso, e nós somos as suas vítimas. Não podemos fazer muito contra isso. A natureza faz o seu trabalho e nós fazemos a parte que nos compete."
CAROLINA: Foi o juiz persuadido a reduzir a pena dos criminosos?
LÁZARO: Parece que sim, eles foram condenados a prisão perpétua, apesar de haver grande pressão, por parte da opinião pública, para que a sentença fosse a pena de morte.
CAROLINA: O que pensam vocês da estratégia do Darrow?
LÁZARO: Penso que é absurda, uma vez que se baseia na falsa crença de que tudo o que nós fazemos é determinado. Se isso fosse verdade, os dois assassinos não poderiam ter agido livremente, o que é, obviamente falso.
DANIEL: Eu diria que a posição, defendida por Clarence Darrow, de que tudo o que nós fazemos está determinado, está correcta. Se isto quer dizer que os dois assassínios não agiram livremente, então é nisso que devemos acreditar.
LÁZARO: E tu Carolina, o que dizes deste caso?
CAROLINA: Penso que a posição de Darrow, de que tudo o que nós fazemos é causado por acontecimentos prévios, está correcta. Mas também penso que somos livres e moralmente responsáveis por aquilo que fazemos.
LÁZARO: Isso parece-me contraditório. Se estava determinado que eles matariam o miúdo, não percebo como poderiam eles tê-lo feito livremente.
DANIEL: Já agora, por que não discutimos o tema do livre arbítrio e do determinismo? Pode ser que consigamos resolver as nossas discordâncias.
LÁZARO: Boa ideia. Queres ficar, Carolina?
CAROLINA: Claro, com prazer. Contudo, não me parece que o problema deva ser colocado apenas em termos de livre arbítrio ou determinismo.
LÁZARO: Então como pensas que o devemos colocar?
CAROLINA: Eu diria que há três questões principais: 1) Têm as pessoas livre arbítrio? 2) É o determinismo verdadeiro? E 3), é o livre arbítrio compatível com o determinismo?
LÁZARO: A minha resposta a essas questões é que as pessoas têm livre arbítrio, que o livre arbítrio é incompatível com o determinismo, e, logo, que o determinismo é falso.
DANIEL: O meu raciocínio é exactamente o oposto. Defendo que o determinismo é verdadeiro e, logo, que as pessoas não têm livre arbítrio.
CAROLINA: Concordo contigo, Lázaro, quando afirmas que as pessoas têm liberdade, e contigo, Daniel, quando afirmas que o determinismo é verdadeiro, mas não julgo que as duas posições sejam contraditórias.
Clifford Williams
Tradução e adaptação de Luís Filipe Bettencourt.
Texto retirado de
Free Will and Determinism, de Clifford Williams (Hackett, 1980, pp. 1-8).
TEXTO 4
DETERMINISMO E RESPONSABILIDADE
Algumas pessoas pensam que, se o determinismo é verdadeiro, ninguém pode ser razoavelmente elogiado ou condenado por nada, tal como a chuva não pode ser elogiada ou condenada por cair. Outras pessoas pensam que continua a fazer sentido elogiar as boas acções e condenar as más, ainda que elas sejam inevitáveis. Afinal de contas, o facto de alguém estar determinado à partida a comportar-se mal não quer dizer que não se tenha comportado mal. Se rouba os teus discos, isso revela falta de consideração e desonestidade, quer tenha sido determinado, quer não. Além do mais, se não o condenarmos, ou talvez até se não o castigarmos, voltará, provavelmente a fazê-lo. Por outro lado, se pensarmos que aquilo que fez estava determinado à partida, isso parece-se mais com o castigo de um cão que roeu o tapete. Não quer dizer que o consideramos responsável por aquilo que fez: estamos apenas a tentar influenciar o seu comportamento no futuro. Por mim, não penso que faça sentido condenar alguém por algo que lhe era impossível não fazer.
NAGEL, Thomas, Que Quer Dizer Tudo Isto? – uma iniciação à filosofia, 2ª edição, 2007. Lisboa: Gradiva, pp. 46-55

TEXTO 5
DETERMINISMO RADICAL E CRIME
Em 1924, dois adolescentes de Chicago, Richard Loeb e Nathan Leopold, raptaram e assassinaram um rapaz chamado Bobby Franks apenas para provar que conseguiam fazê-lo. O crime impressionou o público. Apesar da brutalidade do seu acto, Leopold e Loeb não pareciam especialmente perversos. Provinham de famílias ricas e eram ambos estudantes excelentes. Aos dezoito anos, Leopold era o licenciado mais jovem na história da Universidade de Chicago, e, aos dezanove anos, Loeb era a pessoa mais nova que se tinha licenciado na Universidade de Michigan. Leopold estava prestes a entrar na Escola de Direito de Harvard. Como era possível que tivessem cometido um assassinato absurdo? O seu julgamento iria receber o mesmo tipo de atenção que o de O. J. Simpson, setenta anos mais tarde.
Os seus pais contrataram Clarence Darrow, o advogado mais famoso da altura, para os defender. Darrow era conhecido como o paladino das causas impopulares — tinha defendido sindicalistas, comunistas e um negro acusado de ter morto um membro de uma turba racista. Três anos depois, no seu caso mais famoso, defendeu John Scopes, do Tennessee, da acusação de ter ensinado a evolução numa aula do ensino secundário. Darrow era também o adversário da pena de morte mais conhecido no país. Em 1902, tendo sido convidado pelo director da Prisão de Cook County para dar uma conferência aos presidiários, disse-lhes o seguinte:
Na verdade, não acredito minimamente no crime. No sentido habitual da palavra, não existem crimes. Não acredito em qualquer distinção entre as verdadeiras condições morais das pessoas que estão dentro e das que estão fora da prisão. São iguais. Do mesmo modo que as pessoas que estão aqui dentro não poderiam ter evitado estar aqui, as pessoas que estão lá fora também não poderiam ter evitado estar lá fora. Não acredito que as pessoas estejam na prisão porque o mereçam. Estão na prisão apenas porque não puderam evitá-lo, devido a circunstâncias que ultrapassam inteiramente o seu controlo e pelas quais não são minimamente responsáveis.
Estas ideias iriam figurar proeminentemente na defesa de Leopold e Loeb. [...]
Leopold e Loeb tinham já admitido a sua culpa, pelo que o trabalho de Darrow era apenas mantê-los longe da forca. Não haveria um júri. O juiz escutaria os argumentos dos advogados e decidiria depois se os réus seriam enforcados.
Darrow falou durante mais de doze horas. Não sustentou que os rapazes eram loucos. Ainda assim, disse, não eram responsáveis pelo que tinham feito. Darrow apelou a uma nova ideia que os psicólogos tinham proposto, nomeadamente que o carácter humano é moldado pelos genes do indivíduo e pelo ambiente. Disse ao juiz: «As pessoas inteligentes sabem agora que todo o ser humano é o produto de uma hereditariedade infindável que o precede e de um ambiente infinito que o rodeia».
Não sei o que levou estes rapazes a realizar esse acto louco, mas sei que houve uma razão para que o tenham realizado. Sei que não o produziram por si. Sei que qualquer uma de um número infindável de causas que remontam ao começo pode ter actuado na mente destes rapazes — que vos pedem para enforcar por malícia, ódio e injustiça — porque, no passado, alguém pecou contra eles.
Os psiquiatras tinham atestado que os rapazes não tinham sentimentos normais, pois não mostravam qualquer reacção emocional ao seu acto. Darrow tirou partido disto:
Deveremos censurar Dickie Loeb por causa das forças infinitas que conspiraram para o formar, das forças infinitas que actuaram na sua criação muito antes de ele ter nascido, sabendo que, por causa dessas combinações infinitas, ele nasceu sem [o tipo correcto de emoções]? Se devemos, então tem de haver uma nova definição de justiça. Deveremos censurá-lo pelo que não teve e nunca teve?
Darrow descreve Loeb como alguém que, na infância, esteve privado do afecto de que um rapaz precisa, tendo passado os dias a estudar e as noites a ler secretamente histórias de crimes enquanto fantasiava cometer o crime perfeito e enganar a polícia. Quanto a Leopold, ele era fraco e não tinha amigos. Cresceu obcecado com a filosofia do «super-homem» de Nietzsche, desprezando as outras pessoas e querendo desesperadamente provar a sua superioridade. Depois os dois rapazes conhecerem-se e, juntos, cometeram um crime que nenhum deles poderia ter cometido sozinho. Porém, estavam apenas a jogar com a mão que a natureza lhes dera. «A natureza é forte e impiedosa», concluiu Darrow. «Trabalha de uma forma misteriosa que lhe é própria e nós somos as suas vítimas. Nós próprios não temos muito a ver com ela.»
O juiz deliberou durante um mês e depois condenou Leopold e Loeb a prisão perpétua. Doze anos mais tarde, Richard Loeb, que fora o instigador do crime, foi morto numa contenda com outro prisioneiro. Nathan Leopold passou trinta e quatro anos na prisão, durante os quais deu aulas a outros prisioneiros, ofereceu-se como cobaia para experiências médicas com a malária, dirigiu a biblioteca da prisão e trabalhou no hospital da prisão. Depois ficar em liberdade condicional, foi viver para Porto Rico, onde continuou a esforçar-se até ao fim da vida por se «tornar novamente um ser humano», sobretudo através de trabalhos que implicavam ajudar os outros. Morreu em 1971.
James Rachels, Problemas da Filosofia (Lisboa: Gradiva, 2009, pp. 155-9)
TEXTO 6
DETERMINISMO RADICAL: O SER HUMANO É O QUE A GENÉTICA E A EDUCAÇÃO FAZEM DE SI

Suponhamos o seguinte caso. Uma jovem recebe duas cartas no mesmo correio; uma é um convite para ir com o seu namorado a um concerto, a outra é um pedido para que visite uma criança doente num bairro de lata. A rapariga é uma grande apreciadora de música e receia bairros de lata. Ela deseja ir ao concerto e estar com o namorado; ela receia as ruas imundas e as casas sujas, e evita correr o risco de contrair sarampo ou febre. Mas ela vai ver a criança doente e não vai ao concerto. Porquê?
Porque o seu sentido do dever é mais forte do que seu amor-próprio.
Ora, o seu sentido do dever é em parte devido à sua natureza ― isto é, à sua hereditariedade ― mas é principalmente devido ao meio. Como todos nós, a rapariga nasceu sem quaisquer conhecimentos e com apenas uns rudimentos de uma consciência. Mas foi bem ensinada e a instrução faz parte do seu meio.
Podemos dizer que a rapariga é livre de agir como escolhe, mas ela age de facto como foi ensinada que deve agir. Este ensino, que faz parte do seu meio, controla a sua vontade.
Podemos dizer que um homem é livre de agir como escolhe. Ele é livre de agir como ele escolhe, mas ele escolherá como a hereditariedade e o meio o fizerem escolher. Porque a hereditariedade e o meio fizeram com que ele seja aquilo que é. 
Robert Blatchford, Not Guilty, Albert and Charles Boni, Inc., 1913.

TEXTO 7
NINGUÉM NASCE LIVRE, LOGO NINGUÉM É LIVRE
Se continua a achar que tem liberdade, então pergunte-se a si próprio: se é livre, quando começou a sê-lo? Pois, se é livre agora, deve ter havido uma primeira acção livre. Certamente que não nasceu livre. Quando acabou de nascer reagiu ao ambiente à sua volta de forma basicamente pré-programada. Tal como não escolheu ter dois olhos, um nariz, um cérebro, cada um dos seus membros e assim por diante – nenhuma desta coisas dependeu de si – também não escolheu como reagir à luz, ao calor, à fome, à dor, ou mesmo à cara sorridente da sua mãe. Todos nós iniciámos a vida sem qualquer liberdade. Assim, as nossas acções não podem de modo algum ser livres a menos que tenha havido uma primeira acção livre executada algum tempo depois de termos nascido. Quando ocorreu a sua primeira acção livre? Se não pode ter executado uma primeira acção livre, então também não pode ter executado uma segunda acção livre, ou uma terceira e assim por diante até à sua acção presente de ler estas palavras.
KOLAK, Daniel e MARTIN, Raymond, Sabedoria sem respostas – uma breve introdução à filosofia, 2004. Lisboa: Temas e Debates, pp. 43-47


TEXTO 8
O COMPATIBILISMO SEGUNDO WALTER STACE
«Discutirei em primeiro lugar o problema do livre-arbítrio, já que se efectivamente não houver livre-arbítrio também não haverá moralidade. A moralidade diz respeito ao que o homem deve ou não fazer. Mas se o homem não tiver liberdade de escolher o que fazer e se age compulsivamente, então não fará sentido dizer-lhe que não deveria fazer o que fez e que deveria fazer outra coisa diferente. Todas as regras morais perderiam assim todo o seu sentido. Se, por outro lado, se age sempre compulsivamente, como pode alguém ser moralmente responsável pelas suas acções? Por exemplo, como pode alguém ser punido por aquilo que não podia evitar?

Tentarei mostrar que a noção comum de “livre-arbítrio” não significa indeterminismo. E tentarei descobrir a definição correcta investigando como a noção é usada na conversação ordinária.

Eis algumas amostras que mostram como a noção é usada vulgarmente. Como se verá, incluirá casos em que se pretende saber se o homem agiu ou não livremente para determinar se foi ou não moral e legalmente responsável pelos seus actos.

Jones: Uma vez fiquei sem comer durante uma semana.
Smith: Fizeste isso de livre vontade?
Jones: Não. Fi-lo porque estava perdido no deserto e não conseguia encontrar comida.
Mas supõe que o homem que passou fome era Mahatma Gandhi. A conversa poderia ter sido assim:
Gandhi: Uma vez fiquei sem comer durante uma semana.
Smith: Fizeste isso de livre vontade?
Gandhi: Sim. Fi-lo porque queria forçar o Governo Britânico a dar a independência à Índia.

Supõe um outro caso. Supõe que roubei um pedaço de pão e que era tão honesto como George Washington. Então, se fosse acusado desse crime em tribunal, o diálogo poderia ser:
Juiz: Roubou o pão de livre vontade?
Stace: Sim, roubei-o porque tinha fome.
Ou em circunstâncias diferentes poderia ser:
Juiz: Roubou o pão de livre vontade?
Stace: Não. Roubei-o porque o meu patrão me ameaçou com pancada se não o fizesse.
Num julgamento recente em Trenton, alguns dos acusados de homicídio assinaram confissões, mas depois afirmaram tê-lo foi sob coacção da polícia. A conversa poderia ter sido assim:
Juiz: Assinaram a confissão de livre vontade?
Prisioneiro: Não. Assinei porque a polícia me espancou.
Agora supõe que um filósofo era membro do Júri. Podemos imaginar a seguinte conversa na sala do tribunal:
Porta-voz do Júri: O prisioneiro diz que assinou a confissão porque o espancaram e não porque quis.
Filósofo: Isso é irrelevante. Não há livre-arbítrio.
Porta-voz do Júri: Está a dizer que é indiferente o prisioneiro ter assinado a confissão porque a sua consciência lhe ordenou contar a verdade ou porque foi espancado?
Filósofo: Exactamente. Quer tenha sido causado pelo espancamento policial, quer tenha sido causado pelo desejo próprio – o desejo de dizer a verdade, por exemplo – assinar a confissão foi causalmente determinado, pelo que em qualquer dos casos o prisioneiro não agiu de livre vontade. E uma vez que não existe livre-arbítrio, saber se assinou ou não de livre vontade não deve ser discutido por nós.

O porta-voz do Júri e os restantes membros concluiriam justamente que o filósofo deveria estar a cometer um erro qualquer. Que tipo de erro poderia ser? Só é possível uma resposta. O Filósofo devia estar a usar a noção “livre-arbítrio” num sentido bem peculiar e que diverge do uso comum que lhe é reconhecido quando alguém quer determinar a responsabilidade moral da acção. Quer dizer, devia estar a usar a definição incorrecta que implica acção não determinada por causas.

Supõe que um homem abandonou o seu escritório ao meio-dia e foi questionado sobre esse facto. Poderíamos ter ouvido o seguinte:
Jones: Abandonaste o escritório de livre vontade?
Smith: Sim. Fui almoçar.
Mas também poderíamos ter ouvido:
Jones: Abandonaste o escritório de livre vontade?
Smith: Não. Fui forçado pela acção da polícia.

Recolhemos já um número de casos de acção que, segundo o uso habitual em Português, seria designado de casos em que alguém agiu de livre vontade. Devemos também dizer que em todos estes casos as pessoas agiram em conformidade com as suas escolhas. E também poderemos dizer que podiam ter agido de outra forma, se assim o escolhessem. Por exemplo, Mahatma Gandhi não foi coagido a passar forme; escolheu passar fome. Podia ter comido se o desejasse. Quando o Smith saiu para ir almoçar, foi porque o escolheu. Podia ter ficado no escritório e ter realizado mais alguma tarefa, se assim o desejasse. Também recolhemos um número de casos em que se verifica o contrário. São casos em que os sujeitos não podiam exercer a sua liberdade de escolha. Foram obrigados a agir como agiram. Não tinham escolha. O homem no deserto não passou fome porque quis. Não tinha escolha. Foi obrigado a passar fome porque nada havia para comer. O mesmo se passou nos outros casos. Deve ser bastante fácil dizer, através do exame destes casos, o que vulgarmente queremos dizer quando afirmamos que alguém agiu ou não de livre vontade. Devemos então ser capazes de extrair destes casos a definição correcta do termo. Coloquemo-los num quadro:
Actos livres

Ghandi passa fome porque quer libertar a Índia.
 Uma pessoa rouba pão porque está com fome.
Uma pessoa assina uma confissão porque quer dizer a verdade.
 Uma pessoa abandona o escritório porque quer lanchar.

Actos não-livres
Um homem passa fome num deserto porque não há comida.
Uma pessoa rouba porque o seu patrão a obrigou.
Uma pessoa assina uma confissão porque foi submetida a tortura.
Uma pessoa abandona o escritório forçado pela polícia.

É óbvio que para encontrar a definição correcta de acções livres devemos descobrir que característica é comum a todos os actos da coluna da esquerda, mas que, ao mesmo tempo, está ausente de todos os actos da coluna da direita. Esta característica que todos os actos livres terão, mas que todos os actos não-livres não terão, será a característica definidora do livre-arbítrio.

Será a característica de ser incausada ou não ser determinada por causas aquela que procuramos? Não, porque ainda que seja verdade que todos os actos da coluna da direita tenham causas, como a carga da polícia ou a falta de comida no deserto, também é verdade que todos os actos da coluna da esquerda são causados. A greve de forme do Sr. Gandhi foi causada pelo desejo de libertar a Índia; o acto de abandonar o escritório foi causado pela fome; e assim sucessivamente. Para além de que não há razão para duvidar que as causas dos actos livres sejam por sua vez causadas por causas prévias, e assim segundo uma regressão contínua ao passado. Qualquer fisiologista pode explicar as causas da fome. O que causou o desejo poderoso do sr. Gandhi de libertar a Índia é sem dúvida mais difícil de descobrir. Mas deve ter causas. Algumas delas podem radicar nas peculiaridades das glândulas do seu cérebro, outras nas suas experiências passadas, outras na hereditariedade, outras na educação. Os defensores do livre-arbítrio tendem a negar estes factos. Mas fazê-lo é um tipo especial de alegação, que não é suportada por algum tipo de evidência. A única perspectiva razoável é que todas as acções humanas, tanto as que são livres como as que não são, ou são totalmente determinadas por causas ou pelo menos são tão determinadas como todos os outros eventos da natureza. Pode ser verdade, como nos diz a física, que a natureza não seja determinística no sentido que antes se supunha. Mas seja qual for o grau de determinismo que prevaleça no mundo, as acções humanas parecem ser tão determinadas como tudo o resto. E se é assim, o que distingue as acções que resultam de escolhas livres das que não resultam de escolhas livres não pode ser o facto de estas últimas serem determinadas por causas enquanto que aquelas não o são. Então, ser incausada ou ser indeterminada é uma definição incorrecta de acção livre. Qual será então a diferença entre actos livres e actos não-livres? Qual será a característica que está presente em todos os actos da coluna da esquerda e que está ausente de todos os actos da coluna da direita? Não é óbvio que, embora ambos os conjuntos de acções tenham causas, as causas da coluna da esquerda sejam de um tipo diferente de causas? Os actos livres são todos causados por desejos, ou motivos ou algum tipo de estados psicológicos ou mentais internos do agente. Os actos não-livres são todos causados por forças ou condições físicas externas ao agente. A força policial significa força física exercida do exterior; a ausência de comida no deserto é uma condição física do mundo exterior. Podemos assim apresentar as seguintes definições operatórias. Actos livres são todos aqueles cujas causas imediatas são estados psicológicos do agente. Actos não-livres são todos aqueles cujas causas imediatas são estados ou condições externas ao agente.

É claro que se definirmos livre-arbítrio desta forma, seguramente que existirá livre-arbítrio e a negação da sua existência pelos filósofos deve ser vista tal como é – sem sentido. É óbvio que todas as acções dos homens que atribuímos habitualmente ao exercício do livre-arbítrio, ou que dizemos resultarem de escolhas livres, são de facto acções que foram causadas pelos seus próprios desejos, pensamentos, emoções, impulsos ou outro tipo de estados psicológicos.

Ao aplicar a nossa definição descobriremos que funciona habitualmente bem, mas também que existem alguns casos enigmáticos relativamente aos quais a definição parece não se aplicar. Estes casos podem sempre ser resolvidos prestando maior atenção ao modo como usamos as palavras, e tendo em conta que nem sempre as usamos de forma consistente. Só tenho lugar para um exemplo. Supõe que um ladrão ameaça disparar sobre ti a menos que lhe entregues a carteira, e supõe que de facto lha entregas. Será que ao lhe entregares a carteira estás a agir de livre vontade? Se aplicarmos a nossa definição, concluiremos que sim, já que a causa imediata da acção não foi uma força externa actual, mas o medo da morte, que é uma causa psicológica. A maioria das pessoas, contudo, diria que não agiste de livre vontade, mas por coacção. Será que isto mostra que a definição está errada? Não penso assim. Aristóteles, que apresentou uma solução para o problema do livre-arbítrio substancialmente semelhante à minha (embora não tenha usado a noção “livre-arbítrio”), admitiu que existem casos “ambíguos” ou de fronteira em que é difícil saber se devemos chamar de actos livres ou de actos compulsivos. No caso em discussão, ainda que não tenha efectivamente sido usada força, a arma apontada à tua cabeça assemelha-se de tal forma ao uso efectivo de força, que tendemos a considerar um caso de coacção. É um caso de fronteira.

Vejamos agora aquilo que pode parecer um outro caso problemático. De acordo com a minha perspectiva, uma acção pode ser livre ainda que possa ser prevista com absoluta segurança. Mas supõe que contas uma mentira e que alguém o poderia ter previsto com absoluta segurança. Poderia alguém perguntar “Podias ter dito a verdade?” A resposta é que podias efectivamente ter dito a verdade se o tivesse escolhido. De facto podias tê-lo feito, já que se as causas que produziram tal acção, nomeadamente os seus desejos, tivessem sido diferentes, então teriam produzido diferentes efeitos. É errado pensar que previsibilidade e livre-arbítrio são incompatíveis. Isto está de acordo com o senso comum. Se, por conhecer o teu carácter, posso prever que vais agir honestamente, ninguém poderá dizer quando agires desta forma, isso prova que não agiste livremente.

Mas a ideia de que o determinismo é incompatível com a responsabilidade moral é uma ilusão tanto quanto o é a ideia de que o livre-arbítrio é incompatível com o determinismo. Não desculpas um homem por um acto errado, porque, depois de conhecer o seu carácter, sentes com total certeza que ele viria a realizar tal acção. Do mesmo modo, não privas alguém de uma recompensa ou prémio, porque, depois de conheceres a sua bondade e as suas capacidades, sentes com total certeza que ele viria a merecê-lo.

Como vemos, a responsabilidade moral não é apenas consistente com o determinismo, exige-o. A defesa da punição assenta no facto de o comportamento humano ser causalmente determinado. Se a dor não pudesse ser causa da verdade, não haveria justificação para punir as mentiras. Se as acções e as volições humanas fossem incausadas, seria inútil punir ou recompensar, ou fazer qualquer outra coisa para corrigir o comportamento errado das pessoas, uma vez que nada as influenciaria. A responsabilidade moral pura e simplesmente desapareceria. Se realmente os seres humanos não fossem determinados, as suas acções seriam completamente imprevisíveis e caprichosas, e, por isso, seriam irresponsáveis. Isso é, em si mesmo, um argumento forte contra a perspectiva comum dos filósofos de que o livre-arbítrio significa ser indeterminado por causas.»
Walter T. Stace, “Compatibilism” in Pojman, Louis P. (2006). Philosophy: The Quest for Truth. 6.ª ed. Nova Iorque: Oxford University Press, pp. 369 –74 (Tradução e adaptação de Vítor João Oliveira)

                                                 TEXTO 9
O DETERMINISMO MODERADO DE DAVID HUME
Irei começar por expor a teoria compatibilista da liberdade apresentada por David Hume. A ideia é que uma acção é praticada livremente se o agente podia ter actuado de outra forma, caso o tivesse desejado. Suponha que aceita uma oferta de emprego para o verão. Hume afirma que você agiu livremente se tivesse podido declinar a oferta, caso pretendesse fazê-lo. Pela mesma ordem de ideias, quando alguém entrega a carteira a um ladrão ao ouvi-lo dizer "O dinheiro ou a vida!", essa pessoa está a agir de livre vontade se for verdadeiro que caso tivesse preferido morrer em vez de permanecer vivo, podia ter recusado entregar a carteira. Portanto, a teoria de Hume é que as acções livres são aquelas que estão sob o controlo causal das crenças e desejos do agente. Quando uma crença está sob o controlo do agente, parece ser verdade que se o agente tivesse tido um outro conjunto de desejos, também poderia ter seleccionado e praticado uma acção diferente. A teoria de Hume é compatibilista porque defende que uma acção é livre se se encontra causalmente relacionada de uma maneira particular com as crenças e desejos do agente. O que seria, de acordo com a teoria de Hume, uma acção não livre? Suponha que quer sair de uma sala mas não é capaz visto que está pregado ao chão. Neste caso, não é livremente que permanece na sala. É obrigado a manter-se nela quer queira quer não. A sua acção não se encontra sob o controlo das suas crenças e desejos.
Eis outro exemplo de acção não livre. Suponha que o submeti a uma operação ao cérebro. Desliguei as suas crenças e desejos dos nervos que enviam impulsos para o resto do seu corpo. Também lhe implantei um transmissor de rádio para que o seu corpo receba as minhas instruções. Agora são as minhas crenças e desejos que ditam o que você faz e diz. Nesta situação, o seu corpo tornar-se-ia um robô - seria um escravo da minha vontade. Faria o que eu quero porque é esse o meu desejo. Você poderia ser visto a beber água, a depositar dinheiro na minha conta bancária, e assim por diante. Mas não faria nenhuma destas coisas de livre vontade. A teoria de Hume explica por que razão neste caso as suas acção não seriam livres.
Primeira objecção à teoria de Hume: o comportamento compulsivo
Penso que a principal objecção à teoria de Hume pode ser encontrada em casos de comportamento compulsivo. Pense-se no cleptomaníaco que discutimos na lição anterior. Um cleptomaníaco é um ladrão cujo desejo de roubar é invencível. Um cleptomaníaco pode querer roubar mesmo sabendo que vai ser apanhado e castigado. Mesmo possuindo um pleno conhecimento de que roubar lhes trará sofrimento em vez de ajuda, continua a roubar.
Os cleptomaníacos são apanhados nas malhas de uma obsessão. São escravos de um desejo que não diminui ao compreenderem que agir em função dele lhes faz mais mal do que bem. Há ladrões que não são cleptomaníacos, é claro. Este tipo de ladrão pode tentar roubar algo, mas a decisão de o fazer seria afectada pela informação acerca das hipóteses de ser apanhado e castigado. Nada disto faz qualquer diferença para o cleptomaníaco. O cleptomaníaco está emparedado; o seu desejo não é sensível a considerações de interesse próprio.
Penso que o cleptomaníaco não rouba de livre vontade. Contudo, este caso satisfaz os requisitos de Hume para ser considerado um comportamento livre. Os cleptomaníacos querem, acima de tudo, roubar coisas. Ao roubar, estão a seguir os seus desejos. Se não tivessem querido roubar, não o teriam feito. As acções do cleptomaníaco estão, pois, sob o controle das suas crenças e desejos. O problema é que há algo nesses desejos e no modo como funcionam que impede o cleptomaníaco de ser livre. A teoria de Hume define liberdade em termos da relação que se verifica entre crenças e desejos, por um lado, e as acções por outro. Para Hume, as acções livres são controladas pelos desejos do agente. O comportamento compulsivo constitui uma objecção à teoria de Hume. É a natureza daquilo que o cleptomaníaco deseja que o impede ser livre. Isto sugere que a teoria compatibilista não deve ignorar as ligações anteriores na cadeia causal acima.
Segunda objecção à teoria de Hume: a sala fechada de Locke
Há um segundo problema, mais subtil, com a explicação de Hume. No seu Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690), John Locke (1632-1704) descreveu um homem que decidiu de livre vontade permanecer numa sala com o objectivo de aí conversar com um amigo. Sem que o soubesse, a porta da sala foi fechada à chave. Segundo Locke, podemos praticar livremente uma acção sem que tenhamos liberdade para agir de modo diferente. O homem mantém-se na sala por sua livre vontade, embora seja falso que podia ter agido de outra forma caso tivesse escolhido fazê-lo. Se a maneira como Locke descreve este caso é correcta, a teoria de Hume está errada. Para que alguém pratique uma acção de livre vontade não é essencial que pudesse ter praticado qualquer outra acção caso o tivesse desejado. Segundo Locke, podemos praticar livremente uma acção mesmo não tendo liberdade para agir de outra maneira. Um acto é livre devido à razão que leva a praticá-lo; a teoria de Hume não consegue explicar em que deverá consistir um processo que subjaza às acções livres. Eis outro exemplo que ilustra o que Locke tem em vista. Imagine uma qualquer acção que tenha sido praticada livremente. Suponha que ontem à noite, por exemplo, o João assistiu de livre vontade a um concerto. Agora imagine que se tivesse decidido não ir ao concerto teria sido raptado e, contra a sua vontade, teria na mesma sido levado ao concerto. Enquanto deliberava, desconhecia o que se preparava. O que conta é que o João assistiu ao concerto de livre vontade, embora não pudesse ter feito outra coisa. Para se compreender onde Locke quer chegar convém comparar o homem fechado na sala (embora não o saiba) com o cleptomaníaco. O modo de pensar do cleptomaníaco indica que os seus processos de pensamento funcionam mal. Algo na sua mente impede-o de ser livre. Mas nada há de errado na mente do homem do exemplo de Locke, embora não seja livre de agir de certas maneiras.
Elliott Sober
TEXTO 10
OBJECÇÃO AO DETERMINISMO MODERADO
O Determinismo Moderado considera que o determinismo e o livre-arbítrio são compatíveis. O desejo do agente é o último elemento de uma cadeia causal constituída por causas que o agente não controla, mas que não lhe tiram a liberdade. Desde que nenhuma coacção imediata o impeça de agir de acordo com esse desejo o agente é livre. A sua acção é simultaneamente determinada e livre. Mas será mesmo assim?
Muitos críticos do Determinismo Moderado consideram que não. Argumentam que, para que se possa considerar que o agente foi livre ao realizar uma certa acção, é indispensável que ele tivesse possibilidades alternativas de acção, ou seja, que ele não pudesse fazer apenas uma coisa, mas que isso não sucede se todas as acções estiverem determinadas por causas anteriores.
“Há possibilidades alternativas quando o agente no momento imediatamente anterior à sua decisão, tem ainda diante de si mais do que um curso de acção e a acção podia ter sido diferente do que foi mantendo-se todos os outros factores inalterados. Ele disporia de alternativas reais se, e só se, a sua decisão pudesse ter sido outra, mantendo-se tudo o mais idêntico: as circunstâncias em que se encontrava, mas também a sua personalidade, as suas crenças e os seus desejos.” (Adaptado a partir de: Paulo Ruas, “O Problema do Livre-arbítrio”, Crítica - http://criticanarede.com/met_savater.html).
Vejamos um exemplo.
Évarist Galois aceitou participar num duelo contra um indivíduo muito mais hábil que ele no manejo das armas, pois no país e na época em que viveu recusar o desafio para um duelo era considerado uma manifestação de cobardia e quem o fizesse ficava publicamente desonrado e era alvo do desprezo geral. Há pessoas cuja personalidade as torna indiferentes à opinião e sentimentos dos outros, mas Galois não era como elas. Galois agiu livremente? Ele tinha possibilidades alternativas de acção? Ele podia ter feito outra coisa? Tendo em conta o conceito de possibilidades alternativas referido, a resposta a essas perguntas terá de ser negativa. A influência dos costumes sociais e a sua personalidade (produto de diversos factores sobre as quais não tinha controle), levaram Galois desejar fazer o duelo e depois levaram-no fazer efectivamente o duelo.
Imagine-se dois mundos exactamente iguais em tudo até ao momento da decisão de Galois. Seria possível num dos mundos ele aceitar o duelo e no outro recusar? Não parece possível, uma vez que a sua personalidade, as suas crenças e desejos seriam iguais.
Por isso, argumentam os críticos, a tentativa do Determinismo Moderado conciliar o determinismo e o livre-arbítrio não foi bem sucedida. O determinismo impede que haja reais possibilidades alternativas de acção e sem isso não pode haver livre-arbítrio.
Os defensores do Determinismo Moderado rejeitam essa objecção, pois consideram que esta se baseia num conceito incorrecto de possibilidades alternativas. Não faz sentido exigir que o agente deseje fazer X e possa não o fazer para haver possibilidades alternativas de acção, pois o livre-arbítrio consiste precisamente em poder fazer o que se deseja. Argumentam que Galois podia ter feito outra coisa se tivesse desejado outra coisa e que é isso que significa ter possibilidades alternativas de acção.
“Se a série de causas que conduziu à decisão de aceitar o duelo incluísse outros desejos e crenças, se a sua personalidade fosse em algum aspecto diferente, então, no caso de nada o impedir (ou seja, de não haver coações imediatas), Galois poderia não ter aceite o duelo.” (Adaptado a partir de Paulo Ruas, op. cit.)
Por isso, argumentam os deterministas moderados, o determinismo permite a existência de possibilidades alternativas de acção e é compatível com o livre-arbítrio
O que é mais plausível, a objecção ou a crítica à objecção?
Uma nota final, para continuar a pensar. A personalidade, as crenças e desejos de uma pessoas são o produto de inúmeras causas anteriores que o agente não controla. Muitas vezes vemos pessoas desejarem coisas que nos parecem ser contra os seus interesses, embora elas não se apercebam disso. Se é assim, estará o Determinismo Moderado certo quando considera que somos livres sempre que fazemos o que desejamos?
Retirado de Dúvida Metódica

TEXTO 11
SER LIVRE É PODER TER FEITO OUTRA COISA
Vou contar-te um caso dramático. Já ouviste falar das térmitas, essas formigas brancas
que, em África, constroem formigueiros impressionantes, com vários metros de altura e duros como pedras? Uma vez que o corpo das térmitas é mole, por não ter a couraça de quitina que protege outros insectos, o formigueiro serve-lhes de carapaça colectiva
contra certas formigas inimigas, mais bem armadas do que elas. Mas por vezes um dos formigueiros é derrubado, por causa de uma cheia ou de um elefante (os elefantes, que havemos nós de fazer, gostam de coçar os flancos nas termiteiras). A seguir, as térmitas-operário começam a trabalhar para reconstruir a fortaleza afectada, e fazem-no com toda a pressa. Entretanto, já as grandes formigas inimigas se lançam ao assalto. As térmitas-soldado saem em defesa da sua tribo e tentam deter as inimigas. Como nem no tamanho nem no armamento podem competir com elas, penduram-se nas assaltantes tentando travar o mais possível o seu avanço, enquanto as ferozes mandíbulas invasoras as vão despedaçando. As operárias trabalham com toda a velocidade e esforçam-se por fechar de novo a termiteira derrubada… mas fecham-na deixando de fora as pobres e heróicas térmitas-soldado, que sacrificam as suas vidas pela segurança das restantes formigas. Não merecerão estas formigas-soldado pelo menos uma medalha? Não será justo dizer que são valentes? Mudo agora de cenário, mas não de assunto. Na Ilíada, Homero conta a história de Heitor, o melhor guerreiro de Tróia, que espera a pé firme fora das muralhas da sua cidade Aquiles, o enfurecido campeão dos Aqueus, embora sabendo que Aquiles é mais forte do que ele e que vai provavelmente matá-lo. Fá-lo para cumprir o seu dever, que consiste em defender a família e os concidadãos do terrível assaltante. Ninguém tem dúvidas: Heitor é um herói, um homem valente como deve ser. Mas será Heitor heróico e valente da mesma maneira que as térmitas-soldado, cuja gesta milhões de vezes repetida nenhum Homero se deu ao trabalho de contar? Não faz Heitor, afinal de contas, a mesma coisa
que qualquer uma das térmitas anónimas? Por que nos parece o seu valor mais autêntico e mais difícil do que o dos insectos? Qual a diferença entre um e outro caso? Muito simplesmente, a diferença assenta no facto de as térmitas-soldado lutarem e morrerem porque têm de o fazer, sem que possam evitá-lo (como a aranha come a mosca). Heitor, pelo seu lado, sai para enfrentar Aquiles porque quer. As térmitas-soldado não podem desertar, nem revoltar-se, nem fazer cera para que outras vão em seu lugar: estão programadas necessariamente pela natureza para cumprir a sua heróica missão. O caso de Heitor é distinto. Poderia dizer que está doente ou que não tem vontade de se bater com alguém mais forte do que ele. Talvez os seus concidadãos lhe chamassem cobarde e o considerassem insensível ou talvez lhe perguntassem que outro plano via ele para deter Aquiles, mas é indubitável que Heitor tem a possibilidade de se recusar a ser herói. Por muita pressão que os restantes exercessem sobre ele, ele teria sempre maneira de escapar daquilo que se supõe que deve fazer: não está programado para ser herói, nem o está seja que homem for. Daí que o seu gesto tenha mérito e que Homero nos conte a sua história com uma emoção épica. Ao contrário das térmitas, dizemos que Heitor é livre, e por isso admiramos a sua coragem.
Fernando Savater, Ética para um Jovem (Lisboa: Dom Quixote, 2005)







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