quarta-feira, 2 de março de 2011

FICHA DE TRABALHO SOBRE A RAZÃO DE SER DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA



FICHA DE TRABALHO SOBRE A RAZÃO DE SER DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA
Propomos a realização de um texto relativamente longo subordinado ao título indicado. Trata-se, em certa medida, de tentar compreender o que está na base do impulso artístico. O que leva um artista a criar uma determinada obra seja ele romancista, poeta, músico, pintor ou escultor? Porquê a arte? A que necessidade corresponde? Será que somos artistas não somente porque temos talentos, mas também por necessidade? Se os grandes artistas alargam as fronteiras da nossa sensibilidade não é isso também o que eles procuram para si mesmos com as suas obras? Ser artista é confessar que o mundo não chega? Ou que é insuportável?
Porventura, dirá que seria mais apropriado perguntar aos próprios artistas. Contudo, isso não nos deve impedir de tentar, sejamos artistas ou não, compreender as motivações eventuais que impelem certas pessoas — a que chamamos artistas — a produzir obras de arte. Para dar conteúdo ao texto que vai elaborar pode recorrer a material já exposto na unidade sobre a Estética e ao que pomos agora ao seu dispor. Sugerimos, para além dos textos, que veja o filme Amadeus, de Milos Forman, sobre a vida de Wolfgang Amadeus Mozart.

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“Porque é que as pessoas escrevem? Já me fiz tantas vezes esta pergunta que hoje posso responder com a maior facilidade. Elas escrevem para criar um mundo no qual possam viver. Nunca consegui viver nos mundos que me foram oferecidos: o dos meus pais, o mundo da guerra, o mundo da política. Tive de criar o meu, como se cria um determinado clima, um país, uma atmosfera onde eu pudesse respirar, dominar e me recriar a cada vez que a vida me destruísse. Esta é a razão de ser de toda a obra de arte.
Também escrevemos para aprofundar o nosso conhecimento da vida. Escrevemos, como Proust, para tornar as coisas eternas e para nos convencermos de que elas o são. Para podermos transcender a nossa vida e alcançarmos o que existe além dela. Escrevemos para testemunhar a nossa viagem no labirinto… Quando não escrevo, o meu universo reduz-se: sinto-me numa prisão.” (Anaïs Nin)

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“O artista ou o poeta possuem uma luz interior que transforma os objectos para deles fazer um mundo novo, sensível, organizado, um mundo vivo que é em si mesmo o sinal infalível da divindade.” (Matisse)

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“Todo o homem traz consigo forças que agitam as profundidades da sua alma. A psicanálise vulgarizou a sua acção e mostrou como o nosso pensamento e vontade dificilmente chegam a reprimi-los por vezes à custa de perturbações psíquicas. É o trabalho bem conhecido do recalcamento, com todas as consequências, que provoca, às vezes, catástrofes.
Ora, estas tendências que procuram ser satisfeitas e que os nossos costumes ou leis morais contrariam, que por vezes até, simplesmente, os nossos hábitos de pensar impedem por ignorância de se expandir, encontram na obra de arte uma saída espontânea, imaginária, aliás muitas vezes confusa. O artista criador liberta-se fazendo-as passar para a sua obra; o espectador, desfrutando-as pela imagem proposta ao seu olhar. Um e outro, em sentido literal, encontram-se «esvaziados».
Os psicólogos modernos aperceberam-se disto, a tal ponto que, por vezes, tentam libertar o neurótico, até um criminoso viciado, propondo-lhes o desvio do desejo que, como uma drenagem, permite a expansão dos impulsos perturbadores. Com o seu génio profundo, Aristóteles já o tinha adivinhado; afirmava-o pela sua teoria que ficou célebre, da «catarsis» (a palavra, em sentido estrito, quer dizer purga: a arte era considerada como purgante para a alma das suas paixões, mediante a satisfação artificial que lhes oferecia).
Viver pela imaginação dispensa de viver pela acção. Vejamos a obra de Toulouse-Lautrec: o seu sangue aristocrático trazia em si uma hereditarie-dade de força ávida de se expandir; o seu pai, senhor medieval perdido nos tempos modernos, testemunha-o suficientemente. Ora, o filho, tornando-se enfermiço, teve de renunciar a essas satisfações violentas da cavalaria, da caça… A sua obra tornou-se gráfico registador que vibra com todos os apetites ardentes, tanto com temas evocando o desporto, o circo, a dança e a vida nocturna, como na técnica impulsiva e nervosa.
Quantas aventuras desconhecidas vivia, nas suas telas, o pacífico empregado de alfândega Rousseau? Atirado por elas para o meio das florestas virgens, ouvia o rugir dos leões, via deslizar as serpentes ao ponto de, por vezes, abrir a janela para se tranquilizar, enquanto pintava.
O que é verdade para um indivíduo pode também sê-lo para toda a colectividade. Se as representações do Diabo apareceram, sobretudo na Idade Média, nas escolas monacais, é porque, sem dúvida, desempenhavam um papel exutório para os instintos que a regra dos conventos reprimia demasiado radicalmente; mas no séc. XV, era a sociedade inteira que desfrutava destas evocações.
Assim, a obra de arte alivia o homem de tudo o que não pode cumprir, realizar de outra maneira, quer por razões morais, quer por obstáculos puramente materiais. O célebre romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, exprime simbolicamente o que aqui resumimos: aí vemos o herói conservar, apesar dos seus vícios, uma aparência angelicamente pura; é no seu retrato que, miraculosamente, se inscrevem os estigmas das suas taras.
Mas, da mesma maneira, o homem pode levar consigo sonhos de pureza e de perfeição que não chegam a realizar-se na decepcionante realidade. Se é artista, imprime-os, portanto, na imagem das suas obras; procura-os na dos outros, se é espectador. Chega assim a compensar as lacunas da vida e a dar uma espécie de realidade ao que era necessário ao desenvolvimento do seu ser.»

René Huyghe, Sentido e Destino de Arte, Edições 70, pp. 22–23


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«É bom não esquecer que, para muitos artistas há uma função essencial da arte: exprimir por meio de uma beleza sobrenatural — quer dizer, fora das normas — um amor que também o foi. Trata-se menos de alimentar a recordação, que dispensa os monumentos, que de recordar à face da terra um sentimento único que só a morte foi capaz de destruir e talvez de alcançar por esse meio a necessidade universal que têm os apaixonados de exibir publicamente a sua felicidade, de se glorificarem dela. O objectivo da arte será pois, neste caso, eternizar o amor passado dando forma ao luto daquele que subsiste. O dilaceramento da ausência, a luta contra o aniquilamento sempre deram origem às obras mais belas e mais verdadeiras.
Éluard grita a sua dor quando lhe morre a mulher, Nusch, a sua «morta-viva», a quem ele continua a falar:

Os meus olhos separaram-se dos teus olhos
E perdem a sua confiança perdem a sua luz
A minha boca separou-se da tua boca
A minha boca separou-se do prazer
E do sentido do amor e do sentido da vida
As minhas mãos separaram-se das tuas mãos
As minhas mãos tudo deixam escapar
Os meus pés separaram-se dos teus pés
Não mais avançarão já não há estradas
Não mais conhecerão o meu peso nem o repouso
Foi-me dado ver a minha vida acabar
Com a tua
A minha vida em teu poder
Que eu julguei infinita
Eu estava tão perto de ti que tenho frio ao pé dos outros.

O artista participa fundamentalmente desse desejo e da sua realização, quer esculpa o túmulo, quer celebre de diversas maneiras as virtudes insubstituíveis do desaparecido. O dilaceramento constante entre o sentimento da vida que se escapa, e o desejo torturante de a fixar para sempre, de a tornar, pela imagem, imperecível, sempre caracterizou a arte: percepção do tempo que foge, desejo de o desafiar, de ter mãos nele, de o prolongar eternamente.
O artista tem poder sobre o tempo, já que a sua obra lhe sobrevive. É evidente quando se trata de uma escultura, até mesmo de uma pintura ou de um poema, menos, talvez, para a obra musical. No entanto, vejo nas dedicatórias que abrem, por exemplo, uma determinada sonata de Beethoven, a expressão vertiginosa do orgulho criador: aquela — aquele — a quem dedico a minha obra morrerá, mas o seu nome subsistirá para sempre, pois a minha música é imortal […].
O amor é sempre dilacerante, pois Eros e Tânatos seguem-se, e os amantes sabem-se espreitados pela morte: não só a do corpo, mas sobretudo a da paixão. O artista cria para se defender dessa angústia mortal. A sua obra é uma caução sobre a eternidade. Ela atesta a existência de perfeição, prolonga a beleza, pára o tempo para sempre no instante da felicidade. A arte apaga as incertezas, anula as dúvidas, reactualiza o desejo: ela diz que o amor não morre jamais.»

Marianne Roland Michel, op. cit., pp. 219-226


5
«O valor essencial da arte está em ela ser o indício da passagem do homem no mundo, o resumo da sua experiência emotiva dele; e, como é pela emoção, e pelo pensamento que a emoção provoca, que o homem mais realmente vive na terra, a sua verdadeira experiência, regista-a ele nos fastos das suas emoções e não na crónica do seu pensamento científico, ou nas histórias dos seus regentes e dos seus donos.
Com a ciência buscamos compreender o mundo que habitamos, mas para o utilizarmos; porque o prazer ou ânsia só da compreensão, tendo de ser gerais, levam à metafísica, que é já uma arte.
Deixamos a nossa arte escrita para guia da experiência dos vindouros, e encaminhamento plausível das suas emoções. É a arte, e não a história, que é a mestra da vida.»

Fernando Pessoa, Páginas de Estética, p. 3


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«Um artista, para além do prazer que nutre pela finalidade da sua prática criativa, experimenta prazer na manipulação dos materiais e na respectiva modelação; uma tal actividade produtiva é em si mesma compensatória e plena de satisfação, ou seja, não é trabalho. O assalariado interessa-se apenas pelo objectivo dos seus esforços, pela utilidade que possa colher do seu trabalho; a actividade que pratica não lhe traz satisfação, constitui tão-somente um fardo, uma necessidade incontornável que bom grado entregaria a uma máquina. O trabalho só o prende por obrigação e é por isso que o assalariado tem o espírito ausente daquilo que faz e passa o tempo a pensar noutros objectivos que pretende atingir tão depressa quanto possível. Se o objecto imediato do trabalhador for a satisfação de uma necessidade pessoal, por exemplo, construir uma casa, produzir os seus próprios instrumentos de trabalho ou confeccionar as roupas, então, juntamente com o prazer nos objectos úteis que vai ter ao seu dispor, há-de ir crescendo a tendência para trabalhar os respectivos materiais segundo imperativos do seu gosto pessoal. Ou seja, uma vez obtido o fundamental, a actividade produtiva orientada para necessidades menos prementes, tenderá a elevar-se ao nível da arte. Mas se o trabalhador aliena o produto do seu trabalho, resta-lhe apenas o valor abstracto do dinheiro, e a sua actividade, não podendo elevar-se acima da produtividade mecânica, representa somente esforço, trabalho triste e amargo. É esta a sorte dos escravos da indústria. A imagem lamentável que dão as nossas fábricas é a da mais profunda indignidade humana: um labor contínuo, tantas vezes quase destituído de objectivos, destruidor de corpos e dos espíritos.»

Richard Wagner, A arte e a revolução, pp. 69-73

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