segunda-feira, 25 de abril de 2011

ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA REVOLUÇÃO CARTESIANA

ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA REVOLUÇÃO CARTESIANA

1.UMA NOVA CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA
Todas as ciências não são senão o conhecimento humano, que permanece sempre uno e idêntico, por mais diferentes que sejam os objectos aos quais se aplica.» (R.D.E.)
Esta é uma ideia fundamental do pensamento cartesiano: a ideia da unidade do corpo das ciências. Como está expresso no texto, esta unidade baseia-se na unidade e identidade do espírito humano, do sujeito pensante.
Sejam quais forem os objectos ou assuntos a que se aplique, o espírito humano permanece o mesmo no seu modo de conhecer. Tal como a luz do Sol é única e idêntica por mais diversos que possam ser os objectos que ilumina, assim o nosso conhecimento é único e idêntico seja qual for a diversidade dos objectos que investiga.
Dado que a luz não muda quando mudam os seus objectos, por analogia diremos que o nosso modo de conhecer e o conhecimento não variam quando mudam os objectos que consideram.
As várias ciências não são diversas maneiras de conhecer ou diversas luzes sobre diferentes objectos. São diversas paisagens que uma mesma luz (um mesmo modo de conhecer) ilumina.
Esta concepção cartesiana de ciência é radicalmente diferente da concepção dominante (aristotélico-tomista), que diferenciava as ciências conforme os objectos e estabelecia uma hierarquia entre elas, baseada no grau de inteligibilidade contido nesses objectos.
Toda a ciência, segundo essa concepção, é ciência de um determinado objecto e recebe as suas características desse objecto (lembrar a alegoria da linha em Platão e a hierarquia das ciências em Aristóteles). A atenção incidia no objecto. A ciência não era encarada do ponto de vista do sujeito. Assim, era irredutível a diversidade das ciências.

2.UMA NOVA CONCEPÇÃO DE MÉTODO
Falar de uma ciência universal ou unitária implica falar de um método universal: os objectos (as realidades a conhecer) podem variar mas o modo como conhecemos é sempre o mesmo, isto é, segundo as regras metodológicas da evidência, da análise, da síntese, da enumeração e segundo duas operações que são a intuição e a dedução.
O método é nas suas linhas gerais o seguinte:
a) No que respeita ao conhecimento da realidade o movimento é das ideias para as coisas. Estas serão objectos de conhecimento certo e evidente se as ideias que delas formarmos forem claras e distintas, i.e., evidentes. Nunca atribuiremos às coisas senão o que captamos com evidência nas ideias que delas formamos.
b) Antes de conhecer devemos estabelecer as condições da verdade. Ou seja, antes de falarmos das coisas devemos encontrar a linguagem correcta do seu conhecimento.
c) Devemos organizar os conhecimentos, ie., ordená-los segundo um sistema de relações de dependência.

3.UMA NOVA CONCEPÇÃO DE VERDADE
Para Descartes, importa afirmar a autonomia da razão. Ela não deve perder a sua unidade submetendo-se aos factos e modelando-se por eles. Deve construir uma totalidade sistemática, uma unidade dedutiva, submetendo-se apenas às regras que ela mesma estabelece.
Deste modo a verdade já não será, como se pensava, o acordo do juízo com a coisa mesma. E aqui evidente uma profunda inversão da atitude do sábio: é a ordem do real que deve harmonizar-se com ou submeter-se à ordem das razões (da Razão) fundada na veracidade do Ser absolutamente perfeito: Deus.
Tal como não podemos ler o livro do mundo se não constituirmos a língua que o vai tornar inteligível, não podemos seguramente conhecer a verdade sobre as coisas sem antes definirmos o que é a verdade. O conhecimento da verdade, o que ela é, em que consiste, é a condição prévia que nos tornará capazes de dizer, com segurança, que conhecemos as coisas.
Como é exposto na 1.a regra do método, a verdade consiste na clareza e distinção das ideias. Deixou de ser a adequação ou conformidade do espírito com o real. Passou a ser uma simples qualidade interna da ideia.
Para Descartes, é esgotar energias e engenho tentar ajustar o pensamento às coisas. Estas, tal como o livro que por si só, sem a criação de um dicionário, é ilegível, são ininteligíveis. Tal como a língua que vai decifrar o livro do mundo não está neste, a verdade não está nas coisas e, logo, é um contra-senso entendê-Ia como adequação do pensar às coisas.
Sobre esta concepção de verdade é visível a influência dos estudos matemáticos de Descartes, das suas investigações nesse domínio. Nas matemáticas, a verdade de uma ideia não é atestada senão pela certeza que nela intuímos, independentemente da experiência.

4.UMA NOVA CONCEPÇÃO DE METAFÍSICA
Quer para Descartes quer para o saber tradicional, a metafísica é a ciência dos primeiros princípios. A semelhança, acaba, contudo, aqui:
Vejamos as diferenças:
a) Para a tradição, a metafísica era a ciência dos primeiros princípios do ser, ao passo que para Descartes ela é a ciência dos primeiros princípios do conhecimento.
b) O que Descartes considera como primeiros princípios do sistema do saber nunca antes tinham sido considerados primeiros princípios. São princípios como a existência do sujeito pensante, a distinção alma-corpo e a existência de Deus.
Dizer «penso logo existo» não é, de modo nenhum, uma novidade mas, dizer que a proposição «eu penso logo existo» é o primeiro princípio do sistema do saber e que Deus está na base deste sistema enquanto garantia da objectividade ou imutabilidade dos conhecimentos que o constituem, é algo de radicalmente novo.
c) O que os filósofos até aí consideraram como primeiros princípio do sistema do saber eram realidades das quais não tinham um conhecimento claro e distinto e daí a fragilidade do edifício científico tradicional.
d) Para a filosofia tradicional de inspiração aristotélica e também platónica, a metafísica era o momento culminante do sistema do saber (era o seu fecho) ao passo que para Descartes a metafísica era a base do sistema, o seu momento inicial.
e) A tradição aristotélica construía o sistema do saber a partir da experiência o que, segundo Descartes, punha em causa a autonomia da Razão.
5.UMA NOVA CONCEPÇÃO DE DEUS
a) Deus como causa sui - causa de si mesmo
Esta concepção é, face à tradição filosófica, algo de revolucionário; para os seus contemporâneos é insólita. Deus era considerado um ser incausado. Assim se distinguia de todos os outros entes que não podiam existir sem uma causa. Por essa razão eram considerados finitos, limitados.
Para filósofos como S. Tomás, Suarez, Duns Escoto, existir por si só (caso de Deus) é o contrário de existir por uma causa. Para S. Tomás aquilo que tem uma causa é um ser que tem um começo em determinado momento. Se Deus fosse causa sui seria temporal, finito, limitado. É uma contradição nos termos dizer que Deus se causa a si mesmo.
A originalidade da posição cartesiana consiste em afirmar que Deus, precisamente porque é infinito e omnipotente, se causa a si mesmo, se conserva a si próprio no ser desde sempre. Esta tese resulta de uma estrita obediência ao princípio de razão suficiente que diz que tudo o que existe tem uma razão de ser, uma causa. Causando-se, Deus existe por si de modo positivo, ou seja, existir por si é ter o poder de se causar e não o de ser incausado. Esta causalidade, ao contrário de qualquer outra, é intemporal: a causa não é anterior ao efeito.
Descartes introduz, por conseguinte, uma nova ideia de Deus que faz da infinitude a propriedade de uma realidade que é causa do seu próprio ser e que, por este motivo, não pode ser temporal.
«É muito manifesto pela luz natural (razão) que o que pode existir pela sua própria força, existe desde sempre, de toda a eternidade» (Resposta às primeiras objecções às Meditações Metafísicas.)
b) Deus como garantia da verdade
Deus é a «raiz da árvore do saber». Se o cogito, o «Eu penso logo existo», é a primeira certeza que eu descubro, ela não é contudo fundamento da objectividade e da imutabilidade do saber. O sujeito pensante constitui conhecimentos mas a garantia de que eles não são subjectivos, variáveis, só pode ser dada por Deus. Só o Ser eterno assegura o que é próprio de um conhecimento científico: ser sempre verdadeiro.
Esta tese era surpreendente para os contemporâneos de Descartes, formados no espírito da filosofia tomista. Para esta, a afirmação da existência de Deus é posterior à certeza sobre a existência das coisas sensíveis. Daí o remontar-se das coisas sensíveis a Deus como de um efeito a uma causa.
«É um dos traços característicos da filosofia cartesiana a necessidade de fazer apelo a Deus para garantir as nossas verdades (transformá-las em conhecimentos objectivos). A filosofia escolástica, à qual se censura o facto de constantemente fazer intervir a Teologia, não se servia de Deus para chegar ao mundo (nem para fundar a ciência), mas do mundo para atingir Deus».
(Etienne Gilson)
Em Descartes, só o recurso a Deus e à sua veracidade garante a validade da forte inclinação que sinto em crer na existência das coisas sensíveis e o carácter absoluto das verdades racionais. A respeito deste último tema declara que «o ateu não pode ser geómetra». Entendamos bem esta tese! O ateu pode demonstrar teoremas, e ficar persuadido tal como aquele que admite Deus, mas não pode, sem a garantia divina, estar certo de que o teorema permanecerá verdadeiro. O seu saber será pontual e parcial, a bem dizer fugaz, e não aquilo a que podemos chamar participação na verdade eterna.
c) Deus como criador das essências e das existências
Neste ponto Descartes está em desacordo com quase todos os teólogos, sobretudo S. Tomás. Só Guilherme de Ockham, teólogo franciscano do século XIV, ao que parece desconhecido de Descartes, ousara dizer que todas as verdades (essências) lógicas, matemáticas ou morais, são criadas. Por outras palavras, o acto de criação divino não obedeceu, não foi orientado por verdades ou princípios lógicos e morais. Tudo foi criado por Deus (este ser vivo, esta verdade matemática, etc.) de forma soberana, absolutamente livre. Ao decidir que 2 + 2 são 4 e outras verdades, Deus fê-lo arbitrariamente. A decisão é gratuita, não submetida a nenhuma lei. Assim é porque Deus assim quis. Deus poderia ter feito com que 2+2 não somassem 4, poderia ter criado outras verdades em vez daquelas que soberanamente incutiu no nosso entendimento de uma vez para sempre.
«As verdades matemáticas que denominais eternas foram estabelecidas por Deus e dele dependem inteiramente, tal como o resto das criaturas»
Se fez uma coisa e não outra, a razão disso é-nos incompreensível pois apesar de Deus ser cognoscível, os seus desígnios ou finalidades são, segundo Descartes, insondáveis.
6.NOVAS FORMAS DE DEMONSTRAR A EXISTÊNCIA DE DEUS
Em relação às provas clássicas, aristotélico-tomistas, Descartes é original, pois o seu método impede-o de, no momento em que expõe as suas provas, adoptar a via cosmológica. Com efeito, o mundo exterior não é ponto de partida, toda e qualquer realidade sensível, nesse momento do seu percurso, está posta em dúvida.
O método cartesiano para a investigação da verdade e a dúvida metódica, forma de aplicação da primeira regra do método, impuseram como ponto de partida um dado imanente e não sensível (a ideia de perfeito) ou uma realidade não sensível na qual essa ideia reside (o sujeito pensante temporalmente limitado). Às duas primeiras provas que aparecem na terceira das seis Meditações Metafísicas dá-se o nome de provas pela via da causalidade. Já as conhecemos. Para melhor perceber a originalidade cartesiana face às provas de inspiração aristotélica iremos estudar a primeira das cinco vias que S. Tomás utiliza para provar a existência de Deus: a via do movimento.
Constatação ou verificação de um facto
Os nossos sentidos verificam que no mundo há coisas que se movem, estão em movimento.
Formulação de um princípio lógico que vai orientar toda a argumentação
Tudo o que está em movimento é movido por outro. Como o movimento é a passagem de um estado potencial a um estado actual, do poder ser ao ser efectivamente, diremos que nada passa por si mesmo de um estado potencial a um estado actual. Nenhuma coisa é a causa do seu próprio movimento.
Justificação deste princípio
Suponhamos que um bocado de madeira está, neste momento, quente. Como pode passar a um estado oposto diremos que está quente em acto (o estado actual) e frio em potência (estado potencial ou o que pode vir a ser). Como passa de quente a frio? Não por si mesmo mas devido à acção de um agente externo que pode ser o arrefecimento acentuado da temperatura ambiente, a imersão em água fria, etc. Este movimento, esta mudança não é causado pela realidade que muda.
Desenvolvimento ou elaboração do argumento com base no princípio justificado
Provado que tudo o que está em movimento tem de ser movido por outro, argumentemos: partimos de um dado sensível, A, que está em movimento. Aplicando o princípio justificado, teremos de dizer que esse movimento é causado por B. Se 8 estiver em movimento, como tudo o que está em movimento é movido por outro, teremos de dizer que 8 é movido por C. Se C estiver em movimento, será movido por O e assim sucessivamente. Se esta sequência prosseguir indefinidamente, i.e., se não encontrarmos nada que não esteja em movimento, então nunca explicaremos o movimento do qual partimos. Se não encontrarmos um termo primeiro da série, que explique todos os outros sem precisar de ser explicado por nenhum outro, não fará sentido dizer que um dos termos da série (p. ex. C) é causa do movimento de outro (8). O termo primeiro não pode estar em movimento, tem de ser imóvel, caso contrário dependeria de outro. Esse ser absolutamente independente, porque imóvel, é a causa de toda a série de movimentos. A esse ser absoluto do qual tudo depende e que de nada depende damos o nome de Deus. O movimento é um facto indesmentível. Tudo o que existe tem uma causa. Só Deus pode ser a causa do movimento que se estabelece entre os seres finitos. Logo Deus tem de existir.
As diferenças essenciais entre as provas cartesianas pela via da causalidade e as provas tomistas das quais demos um exemplo que, na estrutura, serve para todas, são as seguintes:
a) Em Descartes, o ponto de partida da argumentação é a ideia de perfeito (1.a prova) ou o sujeito pensante que tem em si essa ideia (2.a prova) e nunca poderia ser a realidade sensível. Seria equivalente a não saber pensar por ordem e a desconhecer os resultados da aplicação da dúvida metódica.
b) Em Descartes, o princípio de causalidade não se aplica, nas demonstrações da existência de Deus, a nenhuma realidade sensível como o movimento. Deus é provado como causa necessária da ideia de perfeito e da subsistência do sujeito pensante no tempo. E na 1.a prova que se evidencia mais a originalidade em relação à Escolástica: Deus é causa de uma ideia.

Não se limitam a duas as provas cartesianas da existência de Deus. Na 5.a Meditação, antes de resolver o problema da existência das coisas sensíveis, do mundo, Descartes apresenta um novo argumento a que, mais tarde, Kant deu o nome de «argumento ontológico». De forma sucinta, consiste no seguinte: posso atribuir efectivamente a uma coisa aquelas qualidades ou predicados que concebo clara e distintamente pertencerem à sua essência. À essência de Deus pertence a existência porque é claro e distinto que a um ser perfeito ou completo não pode faltar, entre outros predicados, a perfeição fundamental que é a existência. Mostrando que a existência de Deus é uma evidência irrefutável, Descartes diz que se pode rigorosamente deduzir da essência de Deus a sua existência tal como da ideia de triângulo deduzo que a soma dos seus ângulos internos vale dois ângulos rectos. Só no caso de Deus, a existência se apresenta imediatamente pela simples consideração da sua essência ou ideia. A ideia de Deus, a ideia de infinito que encontro em mim, é diferente de qualquer outra. A ideia de infinito não implica simplesmente a ideia de existência. Implica a existência efectiva (não sensível) do ser infinito do qual tenho a ideia.
Um filósofo anterior a Descartes, Santo Anselmo, apresentara uma prova que no seu tom geral é muito semelhante. Ei –la:
Concebemos como perfeito o ser acima do qual nada há de maior. A ideia de perfeito corresponde à concepção de um ser superior a todo e qualquer outro. Quando pensamos um ser perfeito pensamo-lo como superior a todo e qualquer outro que possa existir.
Será que esse ser só existe no pensamento, será que é uma simples ideia?
Existir efectivamente, fora do pensamento, é superior a existir simplesmente no pensamento.
 Logo Deus tem de existir na realidade e não só no meu pensamento (como ideia) porque, caso contrário, cometeríamos a contradição de dizer que o ser que concebemos como supremo era inferior a tudo o que realmente existe, a tudo o que não existe simplesmente sob a forma de ideia ou conceito.
É absurdo conceber Deus como não existente: o ser perfeito tem de existir, caso contrário seja imperfeito.

A inovação cartesiana consiste na forma matemática dada ao argumento ou à tradução da' experiência espiritual de uma existência superior que o meu pensamento não pode negar. A evidência da existência de Deus, o modo como na sua essência está necessariamente contida a existência, é análogo ao modo como na essência do triângulo está contida a propriedade ou o predicado de os seus ângulos somarem 180 graus. Por outro lado, essa prova surge no seio de um conjunto de verdades sistematicamente deduzidas a partir de princípios que não se encontram em Santo Anselmo. O argumento ontológico cartesiano, forma de demonstrar a existência de Deus explicitando em que consiste o ser divino, distingue-se assim da prova de Santo Anselmo.
7. UMA NOVA CONCEPÇÃO OU REPRESENTAÇÃO DO MUNDO FÍSICO
Depois de fundamentar a sua existência como ser pensante, a distinção entre alma e corpo e a existência de um Deus perfeito e bondoso que, por isso mesmo, garante que aquilo que eu concebo como claro e distinto é sempre verdadeiro, Descartes dirigiu a sua atenção para o mundo exterior, para a realidade física em geral.
Procurou descobrir o que há de claro e distinto a respeito dos objectos físicos mesmo antes de provar a sua existência real, o mundo natural é uma realidade puramente material cuja essência é a extensão (entidade geométrica). Só a extensão e o movimento são inteligíveis e, por conseguinte, aquilo que pode ser objecto da física.
Se o mundo é puramente material temos de abandonar a teoria aristotélica de que todo e qualquer corpo é uma substância composta por dois elementos: uma forma que define o que ela é, a sua essência (ou animal ou vegetal, etc.), e uma matéria que é o seu (da forma) substrato e a visa realizar perfeitamente. A matéria é definida como aspiração à forma: cada corpo humano tenta realizar na perfeição a forma que define o ser humano.
Para Descartes, só no caso do homem se verifica a união de um corpo a uma forma substancial (a alma). Rejeita a física aristotélica. Esta é um animismo, uma forma ingénua de entender o mundo, uma projecção psicológica mais ou menos disfarçada.
Há um suposto, uma base antropomórfica, na física aristotélica: concebemos o comportamento, o funcionamento dos corpos em geral, à imagem do nosso. Experimentando que em nós é a alma que move, orienta ou dirige o corpo, projectamos sobre as coisas diferentes de nós o que só para o nosso caso vale. Assim, julgamos que as coisas ou os seres naturais agem segundo finalidades, na maior parte dos casos, inconscientes: a semente cresce para se tornar, sem o saber, árvore e fruto, tudo procura realizar a sua forma específica. Assim a introdução do elemento alma (sensitiva, vegetativa) no seio do mundo material era a condição necessária para dar inteligibilidade a um mundo que, segundo Aristóteles, se fosse puramente material seria incompreensível, não poderia ser objecto de estudo científico.
Para Descartes é precisamente o contrário que possibilita a ciência, o conhecimento objectivo da natureza.
No mundo natural não há formas substanciais para cuja realização se orientaria a actividade dos entes físicos. Os seres naturais não agem segundo fins. Isso seria projectar sobre a natureza a maneira segundo a qual vemos a nossa vida. Assim, não há lugar para uma visão teleológica ou finalista do mundo. O mundo cartesiano é concebido à imagem de uma máquina, os acontecimentos ou fenómenos não são a realização de uma intenção. A distinção entre alma (forma) e corpo (matéria) estabelecida por Descartes no seu itinerário metafísico abriu o caminho para a negação da visão animista da Natureza. Puramente material, o mundo é plenamente inteligível pois a matéria reduz-se à extensão, ao espaço geométrico.

9. CONCLUSÃO FUNDAMENTAL SOBRE A FILOSOFIA CARTESIANA: É UMA FILOSOFIA RACIONALISTA
Todos os pontos referidos sob o título de «Revolução cartesiana» ilustram, melhor dizendo, explicitam em que consiste o racionalismo cartesiano. Todas as ciências são a razão humana em exercício, são objectivações da razão humana que por si só, independentemente dos sentidos e de preconceitos, constitui o edifício do saber. Esta autonomia da razão manifesta-se no facto de ela encontrar em si própria não só as chamadas verdades mas o critério da verdade. Como é evidente no itinerário metafísico cartesiano, depois de depurada, purificada, a razão descobre na certeza da sua existência enquanto sujeito puro o modelo da certeza, o critério da verdade. Só depois a procura do saber se iniciará, consistindo, como se sabe, numa descoberta cada vez mais profunda de si mesmo por parte do sujeito. É em si mesmo que o sujeito pensante (a razão) encontra uma «imagem» racional, do mundo e, previamente, de Deus.
É a exigência de autonomia da razão que determina todo o percurso metafísico de Descartes. A dúvida cumpre a função de devolver a razão à posse de si mesma, libertando-a, na constituição do saber, de dependências exteriores, não racionais. A realidade é em si mesma racional. Portanto, é a razão, e só ela, que deve conhecê-la.
É em si e por si que a razão descobre Deus como ser perfeito que garante a objectividade dos seus conhecimentos e é a razão que define em que consiste a essência da realidade física: só é real o que é racional.
Evidencia-se o tema da autonomia da razão dizendo que o racionalismo cartesiano é um inatismo. As ideias claras e distintas sobre as coisas são, no fundo, a nossa própria razão, pois só podem ser tiradas dela. As verdades racionais não provêm do exterior, caso contrário não seriam racionais mas sim factuais ou fictícias.
Deste modo, conhecer a verdade é reconhecê-la, actualizar, mediante um método correcto, algo que, enquanto seres racionais, possuímos desde sempre. O próprio Descartes diz que ao conhecer «não me parece que aprenda algo de novo mas sim que me recordo do que já sabia antes» (5.a Meditação).
Por isso as verdades racionais não se ensinam. Só aprendemos a reencontrá- Ias. As verdades racionais, como as matemáticas, não são recebidas, não têm nenhuma fonte exterior à razão. O inatismo é a plena afirmação da autonomia da razão: em termos de conhecimento, o inatismo funda ou justifica a recusa de toda e qualquer autoridade exterior.
Compreende-se assim que Descartes defenda a constituição do edifício do saber por um só arquitecto.

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