quarta-feira, 13 de abril de 2011

PLATÃO E O ESTADO IDEAL COMO REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA (I)

O PROBLEMA DO PODER POLÍTICO OU DO ESTADO
"A história do pensamento político é a história das diversas tentativas de resposta à pergunta: "Porque devo obedecer ao Estado" A questão permanece. As respostas variam desde
a pragmática - "Porque se não obedeço sou punido ou morto"
 à teológica - "Porque é a vontade de Deus"
 e da contratual- "Porque o Estado e eu fizemos um acordo'"
 à metafísica - "Porque o Estado é a realização da ideia ética (da ideia de justiça)" Nenhuma resposta existiu isolada, embora algumas tenham sido dominantes em determinados séculos. Uma ou outra foi definitivamente abandonada. Interessa referir que a tentativa de resposta àquela questão desperta outras: "O que é e o que deveria ser o Estado?"; "Não estaríamos melhor sem ele?"; "Como pode ser ele superado?»
Brian Redhead, O Pensamento Político de Platão à NATO (adaptado)
Pórtico de las Cariátides (Atenas - Grecia)Image by Jorge Orte Tudela via Flickr
PLAT ÃO E O ESTADO IDEAL COMO REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA

«Ao escrever a Politeía (termo, como se sabe, de acepção riquíssima e mal traduzido por "República", que se impôs), Platão não teve o propósito de optar, após debater convenientemente as razões favoráveis e as desfavoráveis, por esta ou aquela forma de governo existente. O que ele quis foi oferecer a Constituição perfeita; mostrar o que seria uma política dominada pelo mais elevado princípio de justiça; e como se comportaria uma Cidade - Estado onde se exprimisse de maneira perfeita a Ideia do Bem. Nada há de estranho, por outro lado, em ter o autor, nessa obra extraordinária, sido levado a tratar de metafísica, de moral, de educação, de psicologia, de religião e de arte, tanto quanto de política propriamente dita, porque tudo isso estava de certa forma contido na Cidade, centro de vida individual e social tão intensa.
Quem é, pois, que Platão pretende combater? Os Sofistas, o seu materialismo subjacente, o seu realismo curto, a sua aceitação e exploração dos instintos, opiniões e paixões. Que males se obstina em denunciar? Os das Cidades existentes, oligárquicas ou democticas (em especial os de Atenas, sua pátria, outrora pintada em tão belas cores, em cores belas de mais, por Péricles); a incompetência; a ignorância; a volubilidade; o amadorismo que a torto e a direito de tudo se ocupa; e também o egoísmo, a indiferença pela coisa pública; a venalidade; enfim e sobretudo a discórdia, que divide cada Cidade em duas Cidades inimigas, a dos ricos e a dos pobres. A esse quadro sombrio, o discípulo de Sócrates opõe mentalmente o de uma Cidade governada por homens competentes, que sabem, e desinteressadamente servem, e com quem os governados comungam no amor à Cidade una.
O que é a justiça e quais as condições para a sua realização? Cabe a Platão dar uma resposta muito elaborada a essas indagações. Daí resultam três teorias especificamente platónicas: a da justiça; a da educação (condição positiva e primordial para a realização da justiça); a da comunidade ou "comunismo" (condição negativa e contudo necessária).
1. A justiça

Conhece-se a resposta de Trasímaco à pergunta: o que é a justiça? Para ele, é o inte- resse do mais forte. Quanto a Glauco('), expõs a tese daqueles para quem, segundo uma lei da natureza, sofrer injustiça é um mal e cometê-Ia é um bem, mas os homens, depois de compreenderem que, bem pesadas as coisas, maior mal em sofrê-Ia do que bem em praticá-Ia, acabaram por aceitar o acordo híbrido que é a justiça e aprovaram leis e convenções que a fizessem respeitar. Assim, não é a justiça, de modo algum, uma coisa apreciada como um bem em si mesma; é, antes, um acordo, resultante de uma espécie de contrato.
Se quisermos atingir as verdadeiras raízes do que está em debate, temos, segundo Platão, de nos debruçar primeiro sobre a justiça na Cidade e somente depois sobre a justiça no indivíduo, pois o Todo social é, comparado com o indivíduo, como que um amplo quadro onde as mesmas letras, escritas em caracteres maiores, se lêem com menos esforço: a justiça, portanto, lê-se melhor nesse quadro, e depois torna-se mais fácil de reconhecer, em caracteres menores, no indivíduo, mas continua sendo a mesma, precisamente a mesma.
Conm, pois, examinarmos primeiro em pensamento a maneira como se constitui uma Cidade, para só então vermos como nasce a justiça.
A formação de uma Cidade explica-se, na natureza das coisas e dos homens, simples- mente pela impossibilidade da cada individuo se bastar a si mesmo e pela necessidade que tem ele de uma infinidade de objectos que só os outros lhe podem fornecer. Diferença de aptidões individuais e divisão do trabalho (resultante dessa diferença) constituem assim o duplo fundamento do que se pode chamar Cidade Primitiva, modelo de inocência feliz e de justiça elementar, verdadeira Cidade natural, sã e simples, que desconhece todos os refinamentos artificiais.
Para Glauco essa Cidade é demasiado sã, excessivamente simples e natural: é por ele chamada de Cidade de "suínos".  Tornemo-Ia mais ampla, mais complexa, com toda uma série de profissões novas que respondem a necessidades secundárias, talvez supérfluas; os poetas com o seu cortejo de rapsodos, actores, dançarinos, empresários teatrais, artífices de toda a espécie, "sobretudo os que se ocupam do adorno das mulheres". Mas, ao mesmo tempo, para alimentar tanta gente, a nossa Cidade vê-se obrigada a invadir as terras dos seus vizinhos e a mover-lhes guerra (havendo sempre o risco de tomarem estes a dianteira, desde que também se entreguem ao insaciável desejo de possuir mais do que o necessário). E, com a guerra, surge uma nova profissão: a de soldado, de cão de guarda, de guardião [phúlax] da Cidade, para a qual se exigem qualidades muito especiais.


Falta ainda um ofício, de todos os mais elevado: o de governante. Trata-se novamente de um guarda, mas de grau superior ao do guerreiro (guarda simples [epíkouros]). Guardiães perfeitos [phúlakes panteleis ou téleoi phúlakes], assim chama Platão aos governantes, para distingui-los dos simples "auxiliares" ou "defensores". Deles exige, é claro, qualidades compatíveis com função tão elevada. Ao valor militar devem eles reunir a excelência em filosofia, competindo-lhes materializar o pensamento que está por trás do autor (pensamento nascido, como ninguém ignora, de inflamada e sofrida meditação): na sua personalidade excepcional de filósofos-reis estarão aliados o poder político e a filosofia, a verdadeira, a recta filosofia.
A Cidade (o Estado), tal como se apresenta ao cabo dessa génese - puramente lógica e de nenhum modo histórica -, assenta portanto na seguinte hierarquia social, de cima para baixo: filósofos-reis ou guardiães perfeitos; simples auxiliares ou defensores; por fim, os lavradores, artesãos, comerciantes, que, juntos, formam a classe econó- mica ou profissional. Trata-se de uma hierarquia rigorosa, já que esta última classe é evi- dentemente inferior; e a classe dos guardiães, auxiliares e perfeitos, guerreiro e governan- te, tomada como um todo, é evidentemente superior. Cada uma dessas categorias caracteriza-se por uma virtude própria. A dos filósofos-reis é a razão ou ciência do Bem; a dos guerreiros, a coragem. Quanto à classe económica, o que se lhe pode exigir é apenas certa moderação nos seus apetites ou desejos, nas manifestações do instinto cego e necessário que a domina.
Platão compara essa hierarquia social à dos metais: do ouro e da prata dos filósofos- -reis e dos guerreiros, baixa-se para o ferro e o bronze da classe económica. Contudo, esse "mito dos metais" não implica de modo algum (como em geral se crê) uma pertença hereditária automática. Ele não cria, em princípio, castas fechadas. Se da raça de ouro ou prata, nasce um filho de ferro ou bronze, será relegado à classe económica. Se da raça de ferro ou bronze nasce um filho de prata ou ouro, será elevado a um dos dois corpos de eleição que formam a classe superior. Quem pronunciará a sentença? Os governantes, é claro, obrigados a observar atentamente as crianças e a "identificar o metal que entra na composição de suas almas" - sem qualquer consideração de piedade para com seus próprios filhos se estes apresentarem alguma mescla de bronze ou ferro.
Nessas condições, o que vem a ser (para retornarmos ao tema específico da República) a justiça lida em caracteres maiores no Todo social, na Cidade? Nada mais que o respeito pela hierarquia social e funcional que acabámos de descrever: exercer cada qual, na Cidade e pela Cidade, a função que lhe compete, que se ajusta às suas aptidões. Aptidões essas - ao menos para a classe superior - reforçadas pela educação. Em síntese, nada mais do que guardar cada um o seu lugar. Nisso reside a saúde, a harmonia da Cidade.
E a justiça no indivíduo, lida em caracteres menores, mas a mesma, precisamente a mesma, não é, por sua vez, senão o acordo hierarquizado, a harmonia (no sentido musical do termo) das três partes da alma individual: razão-rainha, coragem, apetite ou turbulento desejo - cujo desacordo constitui a injustiça. O indivíduo é justo, são, harmonioso, exactamente como a Cidade. Reciprocamente, a Cidade só pode ser justa e os indivíduos que a compõem também o são. De contrário, como poderíamos explicar as suas características e os seus costumes? Cada um de nós, como integrante da Cidade, os traz em si, pois só podem passar à Cidade "por nosso intermédio".
(') Interlocutores no diálogo platónico "A República".

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