quinta-feira, 14 de abril de 2011

O RACIONALISMO DE DESCARTES (XIV) - SEM DEUS NÃO É POSSÍVEL UM CONHECIMENTO REALMENTE OBJECTIVO


O RACIONALISMO DE DESCARTES (XIV)
SEM DEUS NÃO É POSSÍVEL UM CONHECIMENTO REALMENTE OBJECTIVO


A FUNDAMENTAÇÃO METAFÍSICA DO SABER: DEUS COMO GARANTIA DAS VERDADES MATEMÁTICAS E DAS VERDADES RACIONAIS EM GERAL
No terceiro nível da dúvida Descartes apresentara a suspeita de que um Deus omnipotente podia fazer tudo inclusive enganar. Mas agora, provada a existência de Deus como ser perfeito, Descartes vai chegar à conclusão de que essa suspeita não faz sentido. Deus é omnipotente e perfeito. Enganar é sinónimo de fraqueza porque só a fraqueza e a imperfeição podem levar-nos a utilizar a arma da mentira.
Se Deus é perfeito é completo, sem deficiências ou limitações. Se enganar é sinal de limitação ou imperfeição, Deus que é perfeito não pode enganar. Se Deus enganasse não seria Deus. Mostrando assim que um ser omnipotente não pode ser enganador, Descartes anula a hipótese que lançava suspeitas sobre as evidências matemáticas e deixa de duvidar da validade ou sanidade do seu entendimento.
As evidências actuais do nosso entendimento não estão baralhadas, não temos o entendimento «virado do avesso» considerando verdadeiro o que pode ser falso e falso o que pode ser verdadeiro.
Deus acaba por ser a verdadeira «raiz da árvore do saber» porque só a sua veracidade garante a verdade dos conhecimentos que o sujeito pensante (a primeira realidade a ser conhecida mas não a realidade verdadeiramente fundamental) vai constituindo. Como Deus é uma realidade absoluta, metafísica, e garante a verdade dos nossos conhecimentos, diremos que o saber recebe uma fundamentação metafísica.
Veremos agora mais detalhadamente o papel de Deus a respeito do saber.
O papel da veracidade divina (o facto de Deus não enganar e ser a fonte de todo o saber) é duplo:
a) É a garantia da validade das evidências actuais, i.e., das que estão actualmente presentes na minha consciência.
Com efeito não há razão, uma vez provado que Deus não engana e não perverte o meu entendimento, para duvidar das ideias que estão presentes na minha consciência como claras e distintas. A hipótese do Deus enganador era uma conjectura muito fraca que Descartes, em obediência ao seu método, teve de anular. Provado que Deus não é enganador, uma determinada evidência (um triângulo é um polígono cujos ângulos somados valem 180f não pode ser posta em causa enquanto está presente no meu espírito e atentamente a considero.
b) É a garantia das minhas evidências passadas, i.e., não actualmente presentes na minha consciência.
O que acontece quando determinadas evidências abandonam o campo da minha consciência actual ou presente? Será que a evidência concebida permanece verdadeira
quando nela deixo de pensar?
Se só estou seguro da validade da evidência no momento em que a tenho, não posso garantir que aquilo que considerei verdadeiro permaneça verdadeiro. É Deus quem vai garantir que aquilo que é válido para mim num certo momento seja válido objectivamente, i.e., independentemente de mim e sempre. O saber firme, seguro e constante que Descartes ambiciona só pode ser assegurado pela veracidade e imutabilidade divinas. É Deus que me garante que a verdade não muda enquanto eu deixo de a conceber efectivamente. Por outras palavras, as evidências às quais dei o meu assentimento continuam a ser evidências, mesmo já quando nelas não penso.
A estabilidade da verdade é condição da ciência dedutiva que Descartes quer constituir.
Não podemos prestar atenção a todas as verdades ao mesmo tempo porque a capacidade de atenção do nosso entendimento é muito restrita. Ora, se queremos construir um corpo de conhecimentos científicos que progrida de verdade em verdade, que se torne cada vez mais amplo, não podemos, contudo, torná-las todas actualmente evidentes: temos de nos contentar em guardar as evidências na memória.
O que me garante que a verdade não muda enquanto eu deixo de a conceber efectivamente, por outras palavras, o que me garante que as evidências às quais dei o meu assentimento continuam a ser evidências quando já nelas não penso, quando já não estão presentes efectivamente na minha consciência? Esta estabilidade da verdade que a hipótese do Deus enganador destruiria é agora garantida pela veracidade divina.
A estabilidade da verdade é a condição da ciência dedutiva que Descartes defende e exige. Sem Deus eu ficaria reduzido a opiniões vagas e inconstantes nenhuma ciência certa e segura, nenhum conhecimento objectivo (ou seja, independente da nossa subjectividade mas não exterior ou estranho ao sujeito porque é este que conhece) seria possível.

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