quarta-feira, 13 de abril de 2011

SANTO AGOSTINHO: O ESTADO VERDADEIRAMENTE JUSTO É O ESTADO CRISTÃO

SANTO AGOSTINHO: O ESTADO VERDADEIRAMENTE
JUSTO É O ESTADO CRISTÃO
A filosofia social e política de Santo Agostinho parte do princípio aristotélico, estóico e ciceroniano da sociabilidade natural do homem, à qual o dogma cristão da unidade da
espécie humana confere o valor autêntico. Esta sociabilidade natural dá lugar à constituição da família, instituída por Deus no Paraíso Terreal antes do pecado, e conduz à cidade, caracterizada pela maior complexidade do seu fim, pois abarca uma multidão de seres racionais unidos pela comunidade dos objectos que amam. O mandato, dado por Deus ao primeiro casal, de crescer e multiplicar-se, é prova inequívoca da vocação original do homem para a vida social; e, como toda a sociedade, inclusive a de seres perfeitos, exige uma autoridade, conclui-se que são de carácter primário certas relações de subordinação, e que o pecado só podia significar, quer na família, quer, em seguida, na cidade, um agravamento das mesmas no sentido de converter em coactivo o poder, que sem o pecado seria livremente e espontaneamente acatado.
A sociedade política, como tal, corresponde, pois, a uma inclinação natural do homem, seja ele santo ou perverso, e a sua função primordial consiste em assegurar a paz e realizar a justiça dentro dos limites da ordem natural. Neste aspecto, não nos parece que o pensamento de Santo Agostinho levante sérias dúvidas. Que a paz que a sociedade política assegura e a justiça que põe em prática sejam por si mesmas imperfeitas, não invalida esta fundamentação jusnaturalista. Trata-se de simples consequência de um facto mais geral, que, em maior ou menor medida, qualquer pensador cristão não deixa de afirmar: a insuficiência da natureza, abandonada às suas forças; a sua necessidade de perfeição pela sobrenatureza, para a qual está ordenada. O que acontece é que, em Santo Agostinho, esta insuficiência é sentida com maior angústia do que, por exemplo, em S. Tomás.
Cidade de Deus e Cidade terrestre
Historicamente, a sociedade política aparece inserida na luta irredutível que entre si sustentam a civitas Dei ou civitas coelestis, e a civitas terrena, também chamada civitas deaboli. Os dois sujeitos da história universal são sociedades em sentido místico: formam-nos, respectivamente, os anjos bons e os homens santos de todos os tempos, e os anjos maus e os homens perversos de todos os tempos - uns e outros seres racionais, unidos entre si por dois amores de sinal contrário: o amor-próprio até ao desprezo de Deus (os segundos), e o amor de Deus até ao desprezo próprio (os primeiros). São sociedades supratemporais, visto que nasceram com a queda dos anjos rebeldes, e o seu antagonismo durará até ao dia do Juízo Final. Mas ambas as cidades têm, em qualquer momento, uma dimensão temporal e terrena, na medida em que dividem entre si o género humano. (... )
A cidade celeste, de que Deus é fundador e rei, está aqui em baixo em peregrinação entre os ímpios. Ela acha-se no exílio e como que prisioneira. É a família dos homens que vivem da fé, aguardando pacientemente a estabilidade da eterna morada e todos. Os bens eternos, pois ela já está munida da promessa de redenção. Ela usa, aqui em baixo, mas como estrangeira, os bens temporais, que a família dos homens que não vivem da fé usa na busca da paz terrena. Desse modo, as duas cidades, sem terem nem a mesma fé, nem a mesma esperança, nem o mesmo amor, usam igualmente os bens temporais, assim como sofrem também os males temporais. Isso é o mesmo que dizer que elas se acham
enredadas e como que misturadas uma na outra no século, para só se diferenciarem no Juízo Final, onde cada uma alcançará o seu fim próprio. A sua própria natureza impede-as de poderem um dia conciliar-se. Mas necessariamente elas coexistem, coabitam enquanto dura aqui em baixo a peregrinação da cidade celeste. Necessariamente os cristãos fazem parte de uma e de outra. Eles são cidadãos da cidade terrestre. Obedecem às leis que asseguram a sua boa administração "em tudo o que é exigido pela substância da vida mortal". Suportam os ónus impostos em troca dos benefícios recebidos, que são essencialmente a concórdia, a ordem, a paz definida como "a tranquilidade da ordem". Têm até o dever, como cristãos, de ser melhores cidadãos que os outros, cidadãos inatacáveis. Mas isso (como frisará E. Gilson) não por devoção a uma pátria, mas a Deus. (... )
Grande é a tentação, fortalecida por certos textos da monumental obra, de crer que a Cidade celeste ou Cidade de Deus coincide com a Igreja e que a cidade terrestre coincide com o Estado, o Império, a respublica ou o regnum em sentido amplo, em suma, com a sociedade política. Ora, não é nada disso. A Igreja, ao menos como estrutura concreta, histórica, empírica, não é e não poderia ser a Cidade de Deus, pois abriga, ao mesmo tempo justos, eleitos, predestinados (que, aliás, aqui em baixo, não se sabe quem são), e homens que não serão salvos. Inversamente, as sociedades políticas concretas, "realizadas materialmente no tempo e no espaço", que abrigam, por força, futuros eleitos e, ao mesmo tempo, futuras almas danadas, não poderiam coincidir com essa entidade mística que é a Cidade terrestre. Depois do Juízo Final, que procederá à triagem definitiva, "o que se manterá frente a frente não será, é claro, de um lado a Igreja e, do outro, o Estado, mas a sociedade divina dos eleitos e a sociedade diabólica dos condenados; tomados na sua significão essencial, esses dois pares de termos são portanto inteiramente distintos".
Voltamos a encontrar nele, na Cidade de Deus e em outras obras, o tema patrístico, de
raiz estóica, do domínio do homem sobre o homem, estranho à natureza humana íntegra e pura de antes da Queda. Esse domínio não é mais do que o preço do pecado, e o orgulho que o acompanha, esse intolerável orgulho da alma que despreza a igualdade natural dos seres humanos, é apenas o sinal da corrupção devida ao pecado.
Acrescenta Agostinho que, para além dos tempos, no Reino de Deus, todas as soberanias, todas as dominações humanas serão eliminadas, sendo Deus tudo em todos. Mas, enquanto isso, o escravo deve obedecer ao amo de boa vontade (e não por temor hipócrita), fazendo assim da sua servidão uma liberdade. Essa servidão está na ordem, é legítima, pois o pecado, que perturbou a ordem natural, devia ser castigado. Da mesma forma, o governo coercitivo, também ele preço do pecado, está na ordem, é legítimo, assim como é necessário; pode-se dizer que ele é natural em segundo grau, em relação à natureza corrompida e desviada do homem depois da Queda. Devem portanto os governados obediência ao poder, nos limites das suas finalidades específicas. Agostinho lembra com firmeza o Dai a César. Labora em grande erro o criso que invoca a sua qualidade de criso para se eximir do tributo, ou para não prestar às autoridades temporais as honras que lhes são devidas: todo o poder instituído neste mundo deve ser honrado, "mesmo pelos que são melhores do que ele". Ao proceder desse modo, o cristão obedece aliás menos aos homens do que a Deus, que assim o ordenou.
No entanto, em sentido inverso (e sempre para obedecer às ordens de Deus que prevalecem sobre todas as outras), deve o cristão evitar estender a sua submissão a César "até o ponto de colocar a sua fé sob o jugo daqueles que estão revestidos dessas altas dignidades que os instalam acima das coisas deste mundo".
A Deus o que é de Deus.
Entre dois excessos em sentido contrário, preconiza Agostinho aquilo a que chama uma "justa moderação" (temperantia). Isto quer dizer que o mau príncipe, essa dádiva misteriosa de Deus, não pode reclamar obediência em tudo e para tudo. Agostinho volta aqui à "justa moderação" e assinala quão palpável é a sua permanência no espírito da grande palavra evangélica sobre César. Faz sobre ela o mais esplêndido dos comentários, a propósito dos soldados cristãos de Juliano, o Apóstata. Estes (diz ele) recusavam-se a incensar os ídolos, mas aceitavam marchar para o combate arriscando as suas vidas, porque no caso a causa do Cristo não se achava em jogo; esses cristãos modelares faziam distinção entre "o seu Senhor eterno e o seu senhor temporal, e no entanto, em face do Senhor eterno, obedeciam ao senhor temporal". O Senhor eterno entendia que o senhor temporal (César, a respublica, o regnum em sentido amplo, o Estado) por ele desejado, por ele instituído, natural em segundo grau, fosse lealmente servido em tudo o que se conformava aos limites que Deus lhe determinava, e que, sob esse aspecto, recebesse todo o necessário à sua existência (como o tributo). Mas se o mestre temporal comandava contra Deus, se as suas ordens exigiam coisas injustas e ímpias, contrárias não só à lei eterna mas também à lei natural, então o dever do cristão era recusar. Simples recusa, resistência passiva, e não revolta activa (não se tratava de sublevar-se e de empunhar a espada). Lembrem-se, diz Agostinho, dos mártires cristãos que preferiram tudo suportar a abjurar as suas crenças e morreram por elas com toda a devoção e serenidade: essa atitude cobriu de vergonha as leis que proscreviam a sua fé, levando à sua modificação.
A César o que é de César
 Nada mais, nada menos. Quanto a saber quem é César, constitucionalmente falando, imperador, rei, chefe de República, conselho aristocrático, assembleia democrática, isso é indiferente. "Na medida em que isso diz respeito a esta vida mortal que se escoa e termina em poucos dias, que importa sob que autoridade vive o homem criado para morrer, se aqueles que comandam não o compelem a actos injustos e ímpios", assim nos fala, de muito alto, Agostinho na Cidade de Deus.
A cada poder o seu domínio, com total independência: ao Estado os interesses materiais, a vida exterior, as sanções físicas (a espada). À Igreja os interesses espirituais, a vida interior, as sanções puramente espirituais (todas sempre acompanhadas de caridade). A Igreja coloca-se, não obstante, num plano superior. A sua jurisdição estende-se ao universo em vez de limitar-se a um povo determinado. E, enquanto o Estado não é senão uma realidade inconstante e provisória, destinada a desaparecer quando vier o Reino de Deus, tem a Igreja a eternidade diante de si, na medida em que prefigura a Cidade celeste, sem confundir-se com ela. Na sua ordem, cada uma das duas sociedades (a sociedade religiosa e a sociedade política) é perfeita, e portanto autónoma e livre de qualquer ingerência.
Contudo, a ordem da Igreja, que tende para a ordem absoluta da Cidade celeste, é uma ordem superior. Desejável e necessária é, por outro lado, a colaboração - estreita - entre essas duas sociedades que não poderíamos conceber confinadas cada qual ao seu domínio próprio, isolada da outra e ignorando-a. O interesse do Estado o exige, exige-o também o interesse da Igreja.
O interesse do Estado.
É a Igreja a grande mestra que ensina os deveres sociais e, ao mesmo tempo, os deveres individuais, pois os deveres sociais nascem igualmente dos preceitos  divinos. Que aqueles que ousam dizer que o cristianismo é contrário à prosperidade dos Estados "nos dêem um exército composto de soldados tal como o exige a doutrina de Cristo (... ), governadores de província, reis, juízes, contribuintes e colectores de impostos segundo as prescrições da doutrina cristã!"
O interesse da Igreja.
Sendo natural professar o Estado publicamente a verdadeira fé, que ele procure desenvolver no mais alto grau o culto do verdadeiro Deus, e puna com religiosa severidade todos os actos que contrariem os mandamentos divinos! Surge, porém, aí o problema de recorrer ao braço secular contra a heresia, no caso o donatismo (do nome de Donato, cismático africano que se insurgiu contra o bispo de Cartago e foi condenado em 314 no Concílio de Arles). Agostinho começa por desaprovar as medidas violentas que o poder civil emprega para reconduzir à força os hereges à unidade cristã: é preciso, diz ele, lutar com a palavra, com o debate, vencer pela razão, mostrar a máxima paciência. No entanto (à medida que os donatistas se entregam a excessos de fanatismo), a paciência de Agostinho acaba por esgotar-se. Ele alia-se à coerção, "amenizada pela caridade", diante do que lhe parece a evidência dos factos. É inútil, explica ele, o herege invocar o livre arbítrio:
"Por que não reclamais igualmente os direitos do vosso livre arbítrio em matéria de homicídios, impudicícias e outras espécies de crimes?" Lembra a parábola da grande ceia, em São Lucas [14, 15], onde o amo ordena ao seu servo que obrigue todos a entrar para que sua casa fique cheia. Porque é que a Igreja não forçaria os seus filhos perdidos a retomarem ao seu seio, já que eles pprios empregam a força para matar os outros? Que as leis imperiais venham, pois, em socorro da verdadeira fé, graças ao temor que inspiram.
Pode-se porventura conceber um Estado verdadeiro, um Estado digno desse nome, sem justiça, sem verdadeira justiça? Mas o que é a verdadeira justiça senão a justiça cristã, de ordem sobrenatural? "A verdadeira justiça só existe nessa coisa pública criada e governada por Cristo (... ) nessa Cidade a cujo respeito diz a Sagrada Escritura: coisas gloriosas foram ditas sobre ti, Cidade de Deus." Eis, contudo, algo bem absoluto e categórico. Tanto mais que a afirmação visa directamente, por oposição, à coisa pública ou respublica que foi a Roma pagã da época de Cícero: Agostinho pretende mostrar que ela nunca foi uma verdadeira coisa pública, porque jamais houve nela verdadeira justiça.
Daqui deduzem-se duas consequências importantes.
a) A Igreja cristã tentará modelar a sociedade civil de acordo com os seus princípios celestiais de conduta: ela tem a missão de actuar como bússola da terra. A Igreja deve
incutir no Estado os seus princípios eternos.
b) A Igreja é assim a única sociedade verdadeiramente perfeita, sendo indubitavelmente superior ao Estado, porque se o Estado tem como dever orientar-se pelos princípios da Igreja, não pode estar acima dela nem ao mesmo nível.
Estes pontos de vista fizeram com que Santo Agostinho fosse considerado o inspirador da exaltação medieval da Igreja perante o Estado.
ACTIVIDADES
1 - Que justificação dá Santo Agostinho para a existência de um donio político de certos homens sobre outros?
2 - Por que razão não se pode confundir a Cidade celeste com a Igreja nem a Cidade terrestre com o Estado?
3 - Ao passo que os Gregos tinham exaltado o Estado como sendo o fim supremo do homem, Santo Agostinho exalta sobretudo a Igreja e a comunhão das almas em Deus. A Civitas terrena - a qual não cor responde precisamente a um Estado, mas, em geral, ao reino da impiedade, resulta do pecado original, sem o qual não existiriam senhorios políticos, juízes e penas.
Explicite este texto.

4 - «O Estado terreno possui finalidade louvável, e deriva também da vontade divina e da natureza enquanto se propõe manter a paz temporal entre os homens; mas é sem pre subordinado à cidade celeste, isto é, praticamente à Igreja, a qual procura obter a paz eterna. A sua justificação, de valor relativo, reside sobretudo na sua aptidão a servir de instrumento por meio do qual a Igreja atinge os seus próprios fins (deve, por isso reprimir as heresias). O Estado terreno desaparecerá um dia, a fim de dar lugar ao estabelecimento do reino de Deus.»
Giorgio dei Vecchio
Explicite, a partir do texto e da exposição do pensamento de Santo Agostinho, as razões da superioridade da Igreja perante o Estado.

5 - «O governante perfeito será o governante cristão,» Justifique.

6 - «É um o domínio da realeza, outro o do sacerdócio.
O Rei tem a seu cargo as coisas cá em baixo, o Padre as coisas do céu.
O Rei tem a seu cargos os corpos, o Padre as almas.
O Rei perdoa as dívidas, o Padre perdoa os pecados.
O Rei impõe, o Padre exorta.
O Rei usa a força, o Padre usa a persuasão.
O Rei faz a guerra com as armas materiais, o Padre fá-la com os meios espirituais.
Um combate os bárbaros, o outro combate o demónio,»
Identifique a doutrina aqui exposta e explique em que sentido Santo Agostinho concorda com ela.

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