O RACIONALISMO DE DESCARTES (XV) – O PROBLEMA DO MUNDO FÍSICO
A ESSÊNCIA OU NATUREZA DO MUNDO MATERIAL
Provada pela via da causalidade a existência de um Deus não enganador e garantia da objectividade das ideias claras e distintas e sobretudo das essências matemáticas, falta saber como recuperar a existência das coisas materiais.
Mas, antes disso, tal como diz Descartes, devo considerar a essência das coisas materiais, isto é, o que as coisas são enquanto pensadas clara e distintamente.
A questão de saber o que as coisas são verdadeiramente é a anterior à questão de saber se elas existem.
«Antes de examinar se existem tais coisas fora de mim, devo considerar as suas ideias, i.e., as coisas enquanto estão no meu pensamento e ver quais as que são distintas e as que são confusas»
Como já sei que Deus não é enganador e que garante a objectividade das ideias claras e distintas das coisas, aquilo que eu conceber como pertencendo clara e distintamente às coisas será realmente a sua essência, aquilo que elas são.
Concebemos, acerca das coisas materiais, que são possuidoras de qualidades quer sensíveis quer inteligíveis. Segundo Descartes, só as qualidades inteligíveis ou primeiras são qualidades claras e distintas, ou seja, verdadeiramente essenciais. As qualidades sensíveis ou secundárias tais como a cor, a sonoridade, o odor, a dureza são puramente subjectivas: estão, propriamente falando, em mim e não nas coisas. A sensação ou ideia de calor está em mim e não nas coisas. Só a extensão, qualidade primeira, é a essência ou a verdadeira realidade do objecto material.
Exemplo: Um bocado de cera não é algo que se me impõe pela sua cor, a sua dureza, o seu odor, a sua figura? Só aparentemente. Basta aproximar esse bocado de cera do fogo e verificamos que «a figura perde-se odor evapora-se cor muda, etc.». O que fica, o que permanece, de modo a afirmar a identidade da cera? Nada mais do que uma realidade extensa. A extensão é a essência dos corpos porque é uma qualidade permanente, objectiva, que se mantém mesmo quando o corpo perdeu todas as outras qualidades ou as viu alteradas. Deste modo a essência das coisas materiais não é algo sensível porque não vemos a extensão mas sim coisas extensas. É uma qualidade inteligível: a extensão é uma realidade geométrica.
A essência é uma característica permanente: de todas as qualidades que uma realidade física possa ter, ela não pode nunca deixar de ter comprimento, largura e altura. Estas são as três qualidades que definem uma coisa como extensa. Onde não houver comprimento, largura e altura não há realidade física. Como não vemos o comprimento, a largura e a altura mas sim coisas compridas, largas e altas, devemos dizer que a extensão não é uma qualidade sensível ou subjectiva mas sim uma qualidade inteligível que constitui a essência das realidades físicas ou materiais.
Temos assegurada uma concepção clara e distinta do que o mundo é: é claro, distinto, indubitável, que a essência das coisas sensíveis é a extensão e isto mesmo estando ainda em dúvida a existência real das coisas sensíveis.
Qual a importância de revelar a essência das coisas materiais, do mundo físico, antes de mostrar que este existe efectivamente?
A importância desta atitude reside no facto de que quando reencontrarmos o mundo perdido já saberemos que tipo de mundo iremos encontrar: um mundo que está de acordo com aquilo que nós consideramos real, um mundo à medida do nosso entendimento, inteligível. Vamos ao encontro do mundo já com uma concepção clara e distinta do que esse mundo é, e, no fundo, sempre foi: um conjunto de coisas cuja essência é a extensão (comprimento, largura e altura) e o movimento.
Contudo, que as minhas ideias claras e distintas sobre as coisas tenham a sua validade assegurada não implica que as coisas que elas representam existam. Mais precisamente, é claro e distinto, indubitável, que a essência das coisas materiais é a extensão: ao conceber o que é uma coisa material, mesmo estando em dúvida a sua existência, o meu entendimento considera evidente que a sua essência, a sua característica essencial e permanente, é a extensão.
A RECUPERAÇÃO DA EXISTÊNCIA DAS REALIDADES FÍSICAS
Concebo clara e distintamente que sou uma substância pensante, que Deus existe e não me engana e que posso confiar na validade do meu entendimento quando concebe que as coisas sensíveis são extensas.
O problema da existência do mundo, da realidade física em geral, não é resolvido pelo nosso entendimento: a zona racional da nossa consciência só nos assegurou a existência de Deus. Tudo isto quer dizer que a convicção da existência do mundo não é um conhecimento mas uma espécie de crença, um sentimento. Não é clara e distintamente que mostramos a existência do mundo. O que nos conduz a crer na sua existência é um sentimento obscuro que não é uma certeza clara e distinta, embora seja, segundo Descartes, uma certeza intensa, viva, na qual devemos confiar.
Para mostrar a existência das coisas temos de garantir que a consciência do sujeito pensante não pode por si só explicar determinadas representações que temos das coisas corpóreas, i.e., que aquelas supõem a existência efectiva de corpos exteriores.
Ora, é verdade que temos na nossa consciência representações das quais não somos autores, pois temos sensações, emoções e dores que acontecem muitas vezes contra a nossa vontade. Estas sensações e sentimentos chamam-nos, antes de mais, a atenção para nós mesmos, não como simples sujeitos pensantes mas como realidades corpóreas. Por outras palavras, nós somos também o nosso corpo, e este, apesar de ser material e extenso, ao contrário da nossa alma, está intimamente ligado a esta. Embora o espírito, i.e., a realidade imaterial e inextensa, seja aquilo que caracteriza profundamente o homem e seja a primeira certeza existencial, a verdade é que o sentimento prova a união entre alma e corpo. Essa união é experimentada como vivência não intelectual, logo necessariamente obscura e confusa.
No entanto, isso não impede que a dor ou qualquer atentado à nossa integridade corporal seja experimentada como ameaça ao nosso ser total. Isto é o sinal da unidade entre duas substâncias distintas como o são a alma e o corpo. A dor ou o prazer não teriam qualquer sentido se no homem corpo e alma não estivessem indissoluvelmente unidos. A realidade existencial do meu corpo é uma «evidência» do sentimento, ou seja, apesar de incognoscível, é uma «crença irresistível»: é uma evidência que não é produzida pela razão.
E quanto às coisas exteriores, quanto aos corpos diferentes de mim? Certas sensações que eu experimento apresentam um carácter de constrangimento, acontecem contra a minha vontade. Não sou o seu autor, pois então aconteceriam quando eu quisesse e como eu quisesse: não sou a sua causa mas simplesmente aquele que as experimenta ou vive. Essas sensações exigem algo de exterior a mim que seja a sua causa adequada. A crença de que são as coisas corpóreas ou sensíveis a causa das sensações é uma crença irresistível, ou seja, uma espécie de ensinamento da natureza, um instinto, uma fortíssima inclinação. De tal modo assim é que para a considerar falsa teríamos de supor um Deus enganador, o que, agora, sabemos ser impossível. Logo é preciso «confessar» que as coisas corpóreas existem.
Pode-se agora compreender que nunca a dúvida acerca da existência da realidade sensível foi equivalente a pôr seriamente em causa a sua realidade existencial: a rejeição foi, simplesmente, a de uma confiança cega no sensível. A essa confiança acrítica sucede agora uma crença fundada na veracidade divina: o mundo não é um sonho.
Do exagero da dúvida resultou a afirmação de uma 1.ª verdade absolutamente inabalável. Todo o percurso efectuado tinha por função dar uma base metafísica a todo o nosso saber, afirmar a supremacia do espírito e a sua evidente distinção face ao corpóreo ou ao material além de formar e justificar uma nova concepção da moral e do mundo físico. É da física cartesiana que, nos seus traços mais gerais, trataremos em seguida.
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