terça-feira, 26 de abril de 2011

NIETZSCHE E O CRISTIANISMO (II)- PARA QUE SERVE O «OUTRO MUNDO»


NIETZSCHE E O CRISTIANISMO (II)- PARA QUE SERVE O «OUTRO MUNDO»
«Este mundo não é senão aparência, logo há um mundo verdadeiro. Este mundo é relativo, logo há um mundo absoluto. Este mundo é contraditório, logo há um mundo isento de contradições. Este mundo está em devir, logo há um mundo do ser. Tantos raciocínios falsos (cega confiança na razão; se A existe, o seu contrário B deve também existir) é a dor que inspira esses raciocínios: no fundo, é o desejo de que exista um tal mundo; de igual modo, o ódio de um mundo que nos faz sofrer exprime-se no facto de imaginarmos um outro melhor: é o ressentimento dos metafísicos contra o real, que é aqui criador.»
"O conceito de "além", de "mundo verdadeiro", foi inventado para desvalorizar o único mundo que existe - para destituir a nossa realidade terrena de todo o fim, de toda a razão, de todo o propósito»
"O mundo condenado, perante um outro mundo artificialmente construído, um mundo "verdadeiro, autêntico". Afinal, descobre-se com que materiais se construiu este "mundo verdadeiro"; e não fica mais nada senão o mundo condenado e atribui-se esta suprema decepção a uma culpável maldade.»

Para Nietzsche, aqueles que se ressentem, que são incapazes de tolerar o sofrimento, a instabilidade, os enganos e desenganos que a vida encerra são «os fracos», os falhados. Não conseguem afirmar a vida na sua totalidade, o bem e o mal, a alegria e a dor que dela emergem no seu devir multiforme. Sofrendo com a vida e com a sua impotência perante ela, o fraco procura uma consolação para o seu fracasso. Podeamos comover-nos perante estes seres falhados, a quem a vida inflige amargas derrotas, se por trás da necessidade de consolação não descobríssemos a vontade de desprezar, de desvalorizar, de rebaixar aquilo que os faz sofrer. A vida é estilhaçada em dois por uma operação determinada pelo ressentimento. Surge assim a invenção do «além», do «outro mundo», da «outra vida», Invenção nada inocente nem piedosa porque a sua intenção é condenar «este mundo», «esta vida», para a qual os fracos se sentem inaptos. Esta cisão da vida em dois é uma fuga à realidade, é a projecção para um mundo que só existe sob a forma de desejo, um mundo cujas características são absolutamente opostas às do mundo que se rejeita. O decadente transforma em realidade suprema um mundo ideal, produto irreal do seu desejo de segurança, de repouso, do seu ódio à mudança, à novidade, à imprevisibilidade. Não preparado para enfrentar a realidade, o fraco vinga-se e procura transformar a sua impotência em vitória, efectuando uma inversão de valores: o mundo fictício criado pelo ressentimento é considerado o «verdadeiro mundo», o «mundo real» e «este mundo» um seu vago reflexo, uma sombra. Ao «verdadeiro mundo» dá-se o nome de «mundo do Ser», ao «mundo das aparências» dá-se o nome de «mundo do devir», A dimensão do ser é a da permanência, da eternidade, da imutabilidade, do suprassensível. A dimensão do devir é a dimensão do mutável, do corpóreo, do sensível, do terrestre. Esta clivagem, que vem desde Platão (distinção mundo sensível - mundo inteligível e sobrevalorização deste) e percorre toda a filosofia ocidental, tem um fundamento moral. O ser, o permanente, é a verdadeira realidade
porque ele é o Bem. E é o Bem porquê? Porque as suas características apolíneas permitem fugir ao sofrimento, à instabilidade do mundo dionisíaco do devir.
O mundo do ser é o mundo do bem porque é útil a um certo tipo de homem: o homem hostil ao devi r, à mudança, ao carácter inevitavelmente trágico da existência humana. A estabilidade reconfortante do mundo inteligível opõe-se à instabilidade angustiante do mundo sensível. O critério da verdadeira realidade é um critério moral, o critério de uma certa forma de avaliação da vida. Os fracos e os falhados encontram no outro mundo um remédio para a sua intolerável condição. A este mundo mau (porque os faz sofrer) opõem um mundo que consideram o único realmente existente porque bom (aí a sua alma encontra o repouso e a paz). O mundo no qual vivemos não devia existir. Daí a considerá-lo uma simples ilusão vai um pequeno passo. O homem fraco e doente, ressentido com a vida, pronuncia o seu veredicto: «Só é verdadeiramente real o mundo tal como deve ser, o mundo feito à minha medida
A análise genealógica revela que o «Além» é simplesmente o desejo da vontade de poder fraca e vingativa. Ao analisarmos a génese do mundo do Ser, desocultamos os valores que ele justifica (a vontade de repouso, a incapacidade de criar, viver e agir) e o tipo de homem que estabelece esses valores (o homem minado pelo ressentimento a respeito de uma realidade que despreza e rebaixa porque se sente cobarde perante ela). A genealogia da moral ocidental revela quanta mediocridade e imoralidade está na raiz do mundo do Ser, do Bem, do mundo dito superior.

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