O RACIONALISMO DE DESCARTES (VIII)
SÍNTESE DO PERCURSO JÁ EFECTUADO
Descartes pretende fundar em bases novas e seguras o edifício do saber. Este é um sistema constituído pelos primeiros princípios do conhecimento humano e pelas verdades que deles se deduzem em cada ordem das ciências.
À primeira parte, aos alicerces, à base que sustenta o edifício, dá Descartes o nome de metafísica. Esta é conhecimento dos primeiros princípios que são como que a raiz a partir da qual se desenvolve o tronco da árvore do saber (a Física) e os ramos (a medicina, a mecânica e a moral).
Para constituir em bases firmes a ciência é necessário partir de um princípio que cumprirá duas exigências:
1 - Deve ser de tal modo evidente que o pensamento não possa dele duvidar.
2 - Dele dependerá o conhecimento do resto, de modo que nada pode ser conhecido sem ele, mas não reciprocamente.
Como atingir tal conhecimento primeiro, fundamental, seguro?
Pondo em acção a regra (1ª) de nada aceitar como verdadeiro, a não ser o que é absolutamente claro e distinto, totalmente indubitável.
Para chegar a uma certeza absoluta Descartes decide examinar todo o âmbito do saber. Não quer fiar-se cegamente numa certeza, melhor dizendo, numa ideia que não foi radicalmente examinada, posta à prova.
Então a forma mais rigorosa e mais simples para descobrir o absolutamente indubitável é duvidar. Não há, com efeito, senão um meio para descobrir aquilo de que não podemos duvidar, o mínimo que seja: é inventariar antes de mais tudo aquilo de que podemos duvidar. Levemos a dúvida a limite e quando ela se revelar impossível teremos a «experiência» do indubitável, que é a da verdade primeira, da qual as outras serão deduzidas.
A dúvida está associada ao projecto cartesiano de re-começo absoluto, de plena posse da razão por si mesma; através dela a razão vai anular a sua subordinação a princípios exteriores. Com efeito, a ordem e tudo o que há de racional nas coisas, precisamente porque é racional, deve a razão procurá-lo em si e por si. A razão fracassa quando se subordina ao que lhe é estranho. Ela não deve portanto partir da fé, das opiniões, do sensível. A razão deve recomeçar «como se desde o início tivéssemos o uso inteiro da razão». A dúvida é catártica, pois purifica a razão libertando-a progressivamente dos falsos pontos de partida, reconduzindo-a à sua pureza. As filosofias anteriores quiseram constituir um sistema ou edifício de verdades racionais mas não fizeram da razão a base ou o fundamento desse edifício.
A generalização e radicalização da dúvida foi motivada pelo desejo de pôr em evidência o carácter único e privilegiado do conhecimento que nenhuma dúvida pode abalar. O percurso efectuado permitiu habituar o pensamento a desviar-se da influência dos sentidos (do corpo) e vai pôr em relevo a certeza absoluta da verdade que a dúvida mais hiperbólica não atinge.
A descoberta desta certeza corresponde a uma conversão do pensamento: este retorna a si mesmo, à sua pureza original. Estamos no plano puro da interioridade, da subjectividade. Com efeito, como diz E. Bréhier, para evitar o vazio da dúvida Descartes não pôde virar-se para um mundo de objectos, quer objectos sensíveis quer inteligíveis, que teriam escapado àquela. Considera então a dúvida nas suas condições de exercício, ou seja, enquanto é um acto do pensamento, o qual implica um sujeito que, pensando, necessariamente existe. A dúvida, acto do pensamento, está ligada á existência do Eu pensante. Assim, Descartes chega a um primeiro juízo de existência, reconhece uma verdade indubitável, ao substituir a vã procura dos objectos (inútil naquele momento) pela reflexão sobre o sujeito que duvida. Pensar é neste momento igual a duvidar, mas tenho a certeza de que existo enquanto condição indispensável do acto de duvidar.
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