PLATÃO E O ESTADO IDEAL COMO REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA(II)
2. A educação
A teoria platónica da educação, ao serviço da teoria da justiça, consorcia o cuidado do aprimoramento individual com o da eficiência social. Para o filósofo da Ideia do Bem, educar não é enfiar o saber numa alma que não o possui, tal como se transplantaria uma córnea para olhos cegos. Educar é virar o "olho interior" do aluno (isto é, a sua faculdade de aprender, ou seja, essa força activa constituída pelo seu espírito) na direcção conveniente para que ele reaja da melhor maneira possível aos dados da experiência.
Se, porém, na juventude domina a plasticidade da alma, na idade madura é a faculdade de iluminação que emerge e se desenvolve. Ela deve ser orientada para o fim último: a Ideia do Bem. Essa distinção segundo a idade dá origem à distinção de duas fases no processo educativo: a da formação dos auxiliares, até aos 20 anos, que corresponde à formação da mocidade em geral; depois, a fase da formação dos filósofos-reis. Observe-se que Platão preocupa-se exclusivamente com a classe superior, a que estão afectas a guarda simples e a guarda perfeita. A educação da classe económica, visivelmente, pouco o interessa.
A formação dos auxiliares compreende a educação do corpo pela ginástica e a da alma pela música, isto é, todas as artes das Musas, que têm por função temperar a violência dessa aristocracia guerreira, infundindo-lhes o gosto do belo, tanto moral como estético, mas sem com isso enfraquecer-lhe a coragem, que é a sua virtude específica. Esse apelo às Musas não deixa, aliás, de suscitar sérias restrições. A poesia, em especial (inclusive a tragédia e a comédia), é olhada com uma suspeição e uma vigilância muito particulares. O autor censura-lhe o entregar a direcção da alma à parte "Iamentosa" desta, ao amor, à ira, a todas essas paixões que, em vez de comandar, deveriam obedecer. Por isso só caberia admitir na Cidade, em matéria de poesia, hinos dedicados aos deuses e elogios aos homens de bem, proscrevendo-se as demais formas, que têm por base a ficção, a imitação com os seus perigosos sortilégios. Reservando-se o direito de despedir para outra sociedade (depois de lhe haver espargido perfumes sobre a cabeça) todo o poeta dessa espécie, ameaçadoramente hábil na arte de tudo imitar! Da mesma forma, serão objecto de vigilância os ritmos e harmonias tão próprios a impressionar fortemente a alma. O mesmo ocorre com as artes plásticas e a arquitectura, tão qrande é também o poder corruptor das formas e das imagens. .
Depois dos 20 anos, inicia-se a formação dos guardiães perfeitos ou filósofos-reis (os governantes futuros), escolhidos entre os auxiliares. Ela só se completa de facto aos 50 anos de idade. Segunda fase, e árdua, pautada por rigorosas selecções sucessivas. Dos 20 aos 30 anos, os escolhidos dedicar-se-ão ao estudo aprofundado das ciências matemá- ticas (principalmente a geometria), assim como da astronomia e da harmonia. Todas elas são ciências que permitem ver mais facilmente a Ideia do Bem, mas que não passam em si mesmas de preparações para a dialéctica, cujo estudo estará reservado, dos 30 aos 35 anos, àqueles que forem escolhidos numa nova selecção. Nessa fase, cumpre tomar as maiores precauções para escolher realmente os melhores talentos, os espíritos mais penetrantes, que sejam ao mesmo tempo moderados e firmes. Tão importante, tão fundamental é com efeito a dialéctica que, sozinha, conduz realmente à Ideia do Bem; sozinha, pode arrancar pouco a pouco o olho da alma [psukhês ómma) do " espesso atoleiro" em que está mergulhado para elevá-lo até as alturas; sozinha, é capaz de proporcionar a futuros governantes o treino necessário para discernir, definir e defender essa ideia do Bem que lhes deve iluminar e orientar as acções.
Os dialécticos aprovados - após um estágio prático (nova descida "à caverna") que dura 15 anos e exerce o papel de último obstáculo - são finalmente, aos 50 anos, admitidos na carreira de filósofos-reis, ou guardiães perfeitos. Capazes, por definição, de "volver o olho da alma para o Ser que tudo ilumina, de contemplar a essência do Bem", eles guiarão os indivíduos e a Cidade para a luz. Responderão alternadamente pelo governo, como é seu dever e sua função específica. O que não os impede de consagrar à contemplação filosófica a maior parte do seu tempo. Por fim, depois de terem instruído permanentemente outros cidadãos para substituí-los na guarda da Cidade, passarão desta vida "às ilhas dos bem-aventurados" .
Por outro lado, entre esses governantes, como Platão faz questão de frisar nesse trecho do diálogo, incluem-se também as mulheres. Só se levam em conta os predicados, não o sexo. As mulheres são, por natureza, chamadas a todas as funções. Ressalva, porém, que, em todas, são elas inferiores aos homens. Certas mulheres têm temperamento "de guarda", como certos homens; mas o temperamento de guarda dos homens é mais forte. Convém, portanto, que ambos os sexos participem igualmente da guarda da Cidade, tanto da sua guarda perfeita como da sua guarda guerreira. A formação prevista para os guardiães aplicar-se-á, pois, também às mulheres.
Vê-se como e porquê o sistema educativo da República é a pedra angular de todo o edifício. A formação dos guardiães da Cidade perfeita deve torná-los mentalmente impermeáveis ao amadorismo e ao individualismo, essas duas "enfermidades mentais" que corroem as Cidades reais e sobretudo Atenas.
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