terça-feira, 26 de abril de 2011

NIETZSCHE E O CRISTIANISMO (V) – A MORTE DE DEUS


NIETZSCHE E O CRISTIANISMO (V) – A MORTE DE DEUS
O homem em fúria
«Não ouviram falar daquele homem em fúria que, numa manhã clara, acendeu uma lanterna, correu pela praça pública e gritou incessantemente: "Procuro Deus! Procuro Deus!" - Como justamente aí se encontravam muitos daqueles que não acreditavam em Deus, provocou uma grande hilaridade. "Então ele extraviou - se?", disse um. "Perdeu-se como uma criança?", disse outro. "Ou está ele escondido? Tem medo de nós? Emigrou?", assim gritavam e riam em confusão.
O homem em fúria saltou para o meio deles e trespassou-os com o olhar. "Para onde foi Deus", gritou, "eu vou dizer-vos! Nós matámo-lo - vós e eu! Nós todos somos os seus assassinos! Mas como fizemos nós isto? Como pudemos nós tragar o mar inteiro? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? Que fizemos quando desligámos esta terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não continuamos sempre a cair? E para a frente, para o lado, para trás, para todos os lados? Há ainda um em cima e um em baixo? Não erramos como através de um nada infinito? Não nos sopra o espaço vazio? Não faz mais frio? Não vem a noite e cada vez mais a noite? Não se deveriam acender as lanternas em pleno dia? Ainda não ouviram nada do ruído dos coveiros que sepultam Deus? Não cheiramos ainda nada da decomposição divina? - Também os deuses entram em decomposição! Deus morreu! Deus permanece morto! E nós matámo-lo! Como nos consolaremos nós, os assassinos de todos os assassinos? Aquilo que o mundo possuiu até agora de mais poderoso sangrou sob as nossas facas - quem limpará de nós este sangue? Com que água nos poderemos purificar? Que expiações, que jogos sagrados teremos de inventar?
Não é a grandeza deste acto demasiado grande para nós? Não teremos de nos tornar deuses, nós mesmos, para parecermos agora dignos dele? Nunca houve um acto maior - e agora, quem vier a nascer depois de nós, pertence, por causa deste acto, a uma história mais alta do que toda a história que houve até então!" - Aqui o homem em fúria calou-se e olhou de novo para os seus auditores: também eles se calaram e encararam-no com estranheza. Por fim, ele lançou a lanterna ao chão, que saltou em pedaços e se apagou. "Venho demasiado cedo", disse então; "Não estou ainda na altura. Este acontecimento tremendo está ainda a caminho - não atingiu ainda os ouvidos dos homens. Relâmpago e trovão precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, os actos precisam de tempo, mesmo depois de terem sido realizados,
para serem vistos e ouvidos. Este acto está mais longe deles do que os mais longínquos astros - e eles realizaram-no!" Conta-se ainda que o homem em fúria entrou nesse dia em diferentes igrejas e aí entoou o seu Requiem aeternam Deo. Arrastado para fora e interrogado, retorquia sempre apenas isto: "O que são pois estas igrejas ainda se não as sepulturas e os monumentos
funerários de Deus?»
Nietzsche, A Gaia Ciência, 125, trad. Manuel Carmo Ferreira, Werke, ed. K. Schlechta, vaI. 11, pp. 126/28

«Um facto chama imediatamente a atenção: a notícia da morte de Deus é pronunciada por um homem em fúria. Para quem o escuta é um louco, um insensato. Procura Deus para mostrar aos outros que ele já não encontra lugar na vida humana, que a fé em Deus morreu e que os locais em que se manifestava publicamente essa crença são agora o símbolo da "morte de Deus", os seus "monumentos funerários".
A morte de Deus corresponde ao facto de Deus ter desaparecido do horizonte das coisas humanas. Pode-se considerá-lo o último acontecimento da história do Cristianismo. É um facto da civilização do século XIX. O século das luzes, com a sua luta contra o fanatismo, a intolerância e o obscurantismo da Igreja, a Revolução Francesa, com o derrube do soberano de direito divino, os sucessos da ciência positiva reflectidos na eficácia da actividade industrial e as revoluções políticas, determinaram o empobrecimento do Deus cristão e a sua desaparição, evidente no século XIX.
A "morte de Deus" é, para Nietzsche, um "acontecimento histórico", algo que aconteceu aos homens na sua relação com Deus. Vivemos num mundo histórico e cultural do qual Deus (o Deus cristão) está em grande parte ausente. O homem em fúria (furioso com a inconsciência
dos seus contemporâneos) é o primeiro a sabê-lo e por isso as suas palavras, a sua notícia, não são compreendidas e, a bem dizer, não são escutadas. As três imagens utilizadas por Nietzsche - o mar, o horizonte e o sol - remetem para a tradicional maneira de conceber - de acordo com a metafísica cristã - a "experiência" de Deus. O mar simboliza a sua infinitude. O horizonte a sua transcendência e uma orientação e sentido para o mundo humano. O sol é o símbolo da inteligibilidade, da luz que se projecta sobre o mundo tornando-o compreensível.
Deus, para Nietzsche, não é o somente o objecto da fé de certos crentes. Deus é também o pilar e o ponto culminante do mundo suprassensível ou metafísico, do qual - na linha da filosofia platónica adaptada pelos teólogos cristãos - o mundo sensível ou do devi r dependia: Deus era a luz do mundo e o horizonte em referência ao qual este se orientava.
Então, dizer que "Deus morreu" significa afirmar que o mundo metafísico ou suprassensível se desmoronou, que o dito fundamento de toda a realidade desapareceu. As imagens do sol, do mar, do horizonte, a que nos referimos, vão ser agora usadas para mostrar que, morto Deus, já nada liga a "terra" ao "céu". Já não existe nenhum sol suprassensível que nos ilumine com a sua luz e nos vivifique com o seu calor. A vida humana perdeu o seu fundamento. Já não há água em nenhum mar para saciar a nossa sede de infinito. O mundo metafísico, a que se chamava o "mundo verdadeiro", o "mundo do Ser", e do qual se dizia que tudo dependia para ser compreensível e dotado de sentido, desvaneceu-se porque Deus, que era o seu pilar, desapareceu.
A notícia do homem insensato deve ser entendida em toda a sua intensidade. Se "Deus morreu", se o mundo metafísico (fonte de toda a inteligibilidade) se desmoronou, afundou- -se também tudo o que recebia dele o seu fundamento, i. e., todo o sistema de valores e ideais da cultura ocidental, moldada pelo cristianismo.
Aquilo que iluminava o mundo extinguiu-se e reinam as trevas. Por isso, o "homem em fúria" transporta uma lanterna em pleno dia. É noite para aquele que se apercebeu da extinção da luz e do sentido. A "morte de Deus" é assim acompanhada pelo niilismo: a ausência de sentido, a falta de horizonte, de finalidade. O mundo e a existência ficam à deriva e todos os valores tradicionais perdem validade.
Nietzsche não se limita a anunciar a "morte de Deus": considera-a um grande acontecimento do qual o homem é responsável. Significa isto que ela é um "acto" do homem que não quer que Deus exista. Nietzsche é o porta-voz desta vontade de negar Deus e considera a falência da fé no "Ser Supremo" uma "Boa Nova". Que motivos o levam a aprovar o "assassínio" de Deus, o deicídio? Podemos enumerar os seguintes:

1 - Deus, como Juiz do bem e do mal, era o fundamento da moral cristã. Nietzsche critica a moral cristã como moral que atrofia e nega a vida porque inventa uma outra vida para desvalorizar a que vivemos. O objectivo dessa crítica é libertar a vida, libertando-a de uma moral que se vai denunciar como imoral e indigna porque intoxica a vida. Ora isso só é possível
mostrando que DEUS, o suporte ou o fundamento dessa moral antinatural, não é digno de crença porque é uma invenção ou ficção dos que não conseguem suportar a vida, ou seja, é a negação da vida. Para suprimir a moral cristã, que condena a existência, é portanto necessário suprimir Deus. «Bem e mal são os preconceitos de Deus".
Em nome de Deus, puro espírito, declara-se guerra à sexualidade, a fonte da vida. A santidade, entendida como espiritualização castradora da sexualidade, é o ideal que a moral cristã aponta ao homem como seu dever, para agradar a Deus. Um Deus a quem agrada este tipo de homem, mutilado, este tipo de vida doentia, é uma realidade corrompida e degenerada. Em nome de tudo o que é sagrado (a vida é o sagrado por excelência), devemos desmascarar como ficção nociva este Deus profanador da vida. O conceito cristão de Deus é a suprema das contradições - é considerado fonte da vida eterna mas está ao serviço de tudo o que nega e desvaloriza a vida. Porquê? Porque a «Vida eterna» nada mais é do que o resultado do ódio a «esta vida», à terra, à natureza.
Declara-se, mediante esse conceito (vida eterna), a guerra à vontade de viver, de glorificar a vida. Assim a vida acaba onde começa o «Reino de Deus». Que Deus, que não passa de uma realidade imaginária, de ilusão, sirva para crucificar «esta vida», negando-a nos seus fundamentos mais profundos, é algo que não se pode suportar mais. Um tal Deus é incrível, é um contra-senso. Só a sua morte (a declaração de que Ele é uma ilusão nociva, é indigno de crença) pode libertar e desintoxicar a vida, salvá-Ia da prisão do Absoluto.

2 - A negação de Deus é acompanhada pela preocupação de permitir a expansão da vontade criadora do homem. Ora, se Deus existisse, existiria uma ordem de valores absolutos que seriam dados objectivos que a vontade humana encontraria já estabelecidos. O homem, que Nietzsche concebe como criador de valores, veria a sua criatividade atrofiada e negada por Deus. Ora saber estar à altura desse enorme acontecimento, desse acto tremendo que é a morte da fé no Absoluto, exige que o homem se torne diferente do que tem sido até agora. Esta transfiguração do homem, que cria novos valores e se supera a si mesmo como vontade que afirma plenamente esta vida, tem como símbolo o super-homem.
Nietzsche espera que a "morte de Deus" seja o começo de uma nova etapa da história. Chegou o momento de o homem ser o senhor de si mesmo. Há que fazer da "morte de Deus" um grandioso renascimento, e uma contínua vitória sobre nós mesmos. Há que corresponder à grandeza desse acto. O homem que assume a responsabilidade do acto que fez desaparecer o juiz absoluto do Bem e do Mal vive o calafrio da liberdade, da inocência: esta vida não está sujeita a juízos morais absolutos, ela está para além do Bem e do Mal.
Como é eternal, sobre ela não se pode pronunciar nenhum «Juízo Final». A vertigem da infinitude que se apodera do espírito - uma infinitude não limitada pela presença do Infinito - é simbolizada por Nietzsche mediante a imagem do horizonte e do mar: «O horizonte tornou-se novamente livre... o mar, o nosso mar, está de novo aberto. Talvez nunca tenha existido um mar tão aberto.»
Comentário baseado em Eusebi Colomer, EI pensamiento alemán de Kant a Heidegger, 1.3 Editorial Herder, Barcelona, pp. 268 a 278

2 comentários:

  1. A história pode mudar tudo. Quando iniciei minha pesquisa diletante acerca da origem do cristianismo, eu já tinha uma ideia formada que pode parecer esdrúxula: a perseguição aos judeus. Portanto, nada de Bíblia, teologia e história das religiões. Todos os que haviam explorado esse caminho haviam chegado à conclusão alguma. Contidos num cercadinho intelectual, no máximo, sabiam que o que se pensava saber não era verdade. É isso o que a nossa cultura espera de nós, pois não tolera indiscrições. Como o mundo não havia parado para que o Novo Testamento fosse escrito, o que esse mesmo mundo poderia me contar a respeito dessa curiosidade histórica? Afinal, o que acontecia nos quatro primeiros séculos no mundo greco-romano, entre gregos, romanos e judeus? Ao comentar o livro “Jesus existiu ou não?”, de Bart D. Ehrman, exponho algumas das conclusões as quais cheguei e as quais o meio acadêmico de forma protecionista insiste ignorar.

    http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/paguei-pra-ver

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  2. A história pode mudar tudo. Quando iniciei minha pesquisa diletante acerca da origem do cristianismo, eu já tinha uma ideia formada que pode parecer esdrúxula: a perseguição aos judeus. Portanto, nada de Bíblia, teologia e história das religiões. Todos os que haviam explorado esse caminho haviam chegado à conclusão alguma. Contidos num cercadinho intelectual, no máximo, sabiam que o que se pensava saber não era verdade. É isso o que a nossa cultura espera de nós, pois não tolera indiscrições. Como o mundo não havia parado para que o Novo Testamento fosse escrito, o que esse mesmo mundo poderia me contar a respeito dessa curiosidade histórica? Afinal, o que acontecia nos quatro primeiros séculos no mundo greco-romano, entre gregos, romanos e judeus? Ao comentar o livro “Jesus existiu ou não?”, de Bart D. Ehrman, exponho algumas das conclusões as quais cheguei e as quais o meio acadêmico de forma protecionista insiste ignorar.

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